DA IMPUNIDADE. Toda a gente viu as fotografias onde Leonor Cipriano aparece com o rosto repleto de hematomas, que terão resultado de uma queda nas escadas da prisão onde estava detida. Como o acto pelo qual foi condenada não mereceu a comoção de ninguém, olhou-se para as fotografias, concluí-se que a história não estava bem contada, mas ninguém fez perguntas. Pior: como Leonor é uma pobre coitada, ninguém prestou a atenção que se prestaria caso se tratasse de alguém com poder de fogo. Mas as fotografias que por aí circulam levantam algumas dúvidas. Por exemplo, quem acredita que os hematomas resultaram de uma queda nas escadas? Evidentemente que ninguém. A própria médica que a observou já disse não acreditar nesta versão, e fez questão de lembrar que os hematomas não foram, apenas, no rosto. Segundo ela, os hematomas estavam por todo o corpo — no rosto, no peito, nas costas, nos braços, nos joelhos. Mas disse mais a médica da prisão de Odemira: cair nas escadas «é uma fatalidade nacional», pois «já no tempo da PIDE era assim». Assim sendo, resultaram de quê os hematomas? Eis a pergunta que eu gostaria de ver respondida pelo tribunal que julga o caso. Infelizmente, vou ter que esperar sentado, que a Justiça já me habituou a nada esperar dela. Certamente invocando falta de provas, o tribunal não confirmará, de novo, o que está à vista de todos. E o que está à vista de todos é que Leonor Cipriano foi espancada quando esteve à guarda da polícia, e quando digo espancada estou a ser benevolente. Fosse outra a vítima, tivesse ela os meios para se defender que têm, por exemplo, alguns mariolas que se passeiam por aí, e teríamos novela. Como não é assim, o caso só pode acabar na prateleira, e fim de conversa. Como, aliás, muito bem sabe quem a convenceu a contar a história das escadas, que anos de prática certamente hão-de ter-lhe ensinado que bater nos fracos não tem consequências. Se esta história tivesse moral, a moral só podia ser esta: há uma polícia para os ricos, outra para os pobres. Como, aliás, sucede com a Justiça, e a coisa é tão evidente que só não vê quem não quer. [Originalmente publicado em 19-11-2008]