PRAGMATISMO E VARIAÇÕES. Contrariamente ao que possa parecer, sobretudo aos que me lêem no blogue, desejo que as coisas corram bem a Obama. Antes de mais, porque Obama dirige o país que escolhi para viver, e onde tenciono permanecer nos próximos anos. Depois, votei nele por me parecer que Obama era o menos mau dos candidatos, e por acreditar que a simples ideia de que as coisas iriam mudar, como ele prometeu, era, por si só, positivo. Pareceu-me, finalmente, que Obama se renderia ao pragmatismo em matérias como a segurança e o terrorismo caso fosse eleito, e o que está a acontecer demonstra que não me enganei — ou que não me enganei inteiramente. Posto isto, devo dizer que vejo com apreensão as hesitações que Obama tem vindo a demonstrar em matérias como as que acabo de enunciar, que já o levou a fazer um discurso ao país procurando tranquilizar os mais cépticos. Qualquer pessoa que não morra de amores pela política em geral e pelos políticos em particular sabe bem que a questão da segurança e do terrorismo é mais delicada do que muitos pretendem, e toda a gente também já percebeu que as medidas tomadas por George W. Bush teriam que ser tomadas na altura em que foram tomadas, como também começa a ser evidente que as medidas seriam tomadas na mesma caso o presidente fosse outro, republicano ou democrata. Eu sei que estou a chover no molhado, e até já ouço dizer: «Lá está o gajo a defender Bush, esse malvado.» Acontece que eu não mudo conforme os ventos e me chateia que a importância dos factos varie consoante os protagonistas, e não aceito que hoje se aplauda pelas mesmíssimas razões o que ainda ontem se condenou. Chateia-me, por último, a mentira e a má-fé, a ponto de me fazer sair em defesa de um inimigo caso esteja a ser vítima delas. Um exagero, bem sei, mas é assim. [Originalmente publicado em 11-6-2009]
SAL A MAIS. Alertado por Alberto Gonçalves, cujas prosas na Sábado e no DN integram a dose semanal de leituras que nunca dispenso, fui ler o texto que o deputado Jorge Almeida publicou num jornal da minha terra onde defendeu a famosa lei que prevê a redução do sal no pão. Diz o deputado que não se deve pactuar com «perfis comportamentais de risco para a saúde», pois é a comunidade que paga «a factura da doença, da «invalidez», ou «da morte prematura». «Quando estão em causa problemas de saúde pública de grande relevância» resultantes de «causas modificáveis», prossegue o deputado, «faz todo o sentido introduzir alguma regulação». Ora, seguindo o raciocínio do ilustre, por que não reduzir o açúcar, as calorias, as gorduras, os fritos e tudo o resto que ponha em risco a saúde? Por que não, já agora, reduzir os deputados que nos querem salvar, provavelmente casos de saúde mental? Quando é que os políticos metem nas cabecinhas que não é função do Estado decidir o que devemos comer e quantas quecas (e com quem) podemos dar? (Sim, exagero, mas lá chegaremos.) Os políticos estão preocupados com a nossa saúde? Então obriguem as panificadoras (e demais indústrias alimentares) a expor os seus produtos no mercado acompanhados de informação acerca do teor de sal e doutras coisas que fazem mal, deixando ao consumidor a liberdade (sim, é de liberdade que estamos a falar) de escolher o que lhe interessa e de excluir o que não lhe convém. Não queiram decidir por nós o que só a nós compete decidir, e exercer funções para as quais ninguém os elegeu. E, já agora, façam o favor de não nos tratarem como se fôssemos crianças ou atrasados mentais. O facto de os termos eleito pode prestar-se a essas leituras, mas não é caso para tanto. [Originalmente publicado em 14-5-2009]
O ENGODO. Se bem me lembro, construíram-se estádios de futebol porque os estádios de futebol eram necessários para o Euro2004. Agora, pondera-se fazer o Mundial porque o Mundial seria, segundo alguns, uma forma de rentabilizar as infra-estruturas já existentes, a grande maioria construídas (ou remodeladas) por causa do Euro2004. Como se adivinha, os que agora argumentam com a rentabilidade dos estádios são os mesmos que ontem não se ralaram com isso, apesar de gente avisada os ter alertado, na altura, para a evidência. Como a generalidade dos portugueses, estou para saber se Portugal ganhou alguma coisa com o Euro2004. Sei, como todos sabem, que se gastaram milhões para construir (ou remodelar) estádios hoje às moscas e que, agora, dizem ser preciso rentabilizar, embora ninguém acredite que não vão ser necessárias mais umas obras — e correspondentes milhões. Como já perceberam, não acredito num Mundial de borla, muito menos no engodo da rentabilização dos estádios. Como ficou demonstrado com os estádios do Euro2004, que custaram não sei quantas vezes mais que o inicialmente estimado, o que ora nos parece barato há-de sair-nos caro. Esperemos para ver o que a candidatura vai dar, mas seria bom que não perdêssemos a realidade de vista. Não a realidade que nos querem meter pelos olhos dentro, mas a realidade que, apesar dos malabarismos, não deixa de ser o que é. [Originalmente publicado em 21-4-2009]
PORNOGRAFIA II. É um facto que só uma minoria se interessa por arte, provavelmente uma minoria muito reduzida. Só essa minoria estará, portanto, em condições de distinguir um Picasso de um habilidoso, um Schönberg de um chico-esperto, ou um Eça de uma «besta célere»(*). Não é assim? O recente episódio de Braga (a PSP local apreendeu meia dúzia de exemplares de um livro que na capa reproduzia uma obra de um pintor francês julgando tratar-se de pornografia) demonstra que não é assim. Como se viu por aquilo que então se disse, toda a gente conhece a obra do pintor, nomeadamente a obra que causou o incidente, excepto os nossos rapazes da PSP, unanimemente considerados umas bestas, e prontamente acusados de não estarem à altura da nossa imensa cultura. Mas o mais impressionante neste género de casos é constatar-se que qualquer analfabruto que queira botar figura e impressionar os pategos tem a arte como coisa importante, e como tal considera lacuna de monta não ter conhecimentos sobre a dita. Daí que jamais dirá que não conhece, que não sabe, que não viu. O lamentável é que o sujeito invista a esconder a ignorância em arte em vez de investir a interessar-se por ela, pois o interesse valer-lhe-ia, seguramente, a pena — além de que evitaria deixar o rabo de fora, como sempre acontece quando se escondem estas coisas. Infelizmente, não é assim que ele pensa. As aparências são, para ele, mais importantes que tudo o resto, e nos tempos que correm ninguém se espanta que a montra não corresponda ao armazém. Como se viu, aliás, pelos concertos para violino que Chopin nunca compôs e pelo livro que Sartre nunca escreveu, que um ex-primeiro-ministro nos garantiu ter ouvido e um candidato a primeiro-ministro jura ter lido — episódios que só não passaram completamente despercebidos (ou por manifestações de alta cultura) porque os adversários políticos de Santana Lopes e de Passos Coelho observam à lupa o que eles dizem, e não perdoam deslizes destes. Não porque atribuam grande importância a estas minudências, escusado será dizer. Até porque geralmente não são, nessa matéria, melhores do que eles. [Originalmente publicado em 1-4-2009]
(*) Bestseller «traduzido» por Alexandre O’Neill
PORNOGRAFIA I. Além de um atentado à liberdade de expressão de fazer lembrar os piores tempos de antigamente, como foi dito e repetido pelos «guardiões do regime» e me pareceu uma comparação obscena, quatro juristas garantiram, ao Público, que a apreensão de meia dúzia de livros que na capa contêm a reprodução de uma obra de Courbet representou «uma falha monumental» da PSP «no campo da cultura», e um episódio que, segundo eles, «identifica o baixo nível cultural» da dita. Também o deputado António Filipe, do PC, não teve dúvidas de que o episódio de Braga foi ridículo «do ponto de vista cultural», por ser tratar, segundo ele, «de um quadro mundialmente célebre», como tal conhecido do Minho ao Algarve. Ora, eu gostaria de dizer, sobre isto, duas coisas. Distinguiriam os ilustres juristas e o sr. deputado A Origem do Mundo da mais corriqueira pornografia caso não fosse tanto alarido? Com vossas licenças, duvido. Depois, qual é a diferença entre A Origem e o que vulgarmente se designa por pornografia? Como os srs. juristas e o ilustre deputado muito bem sabem, bater na PSP é barato e tem sucesso garantido, mas as razões não me convencem. Dizer que foi um atentado à liberdade de expressão o episódio de Braga é um exagero, mas ainda vá. Já aproveitar a ocasião para tecer considerações de índole artístico-cultural, acusando os agentes da polícia de ignorantes para cima por não conhecerem o artista e as suas obras, é um manifesto exagero — além de ser duvidoso que os cavalheiros tenham, sobre a matéria, autoridade para chamar ignorante a quem quer que seja. Descontando os lugares-comuns e a sobranceria com que os proferiram, por si só indicadores de parcos conhecimentos sobre o assunto, não disseram nada que um agente da PSP mais expedito não fosse capaz de dizer. [Originalmente publicado em 11-3-2009]
HOLOCAUSTO. Negar o Holocausto, só por ignorância ou má-fé. Se o primeiro motivo não é aceitável, o segundo é abominável. Dito isto, discordo frontalmente da ideia de que negar (questionar, minimizar, manipular, etc.) o Holocausto é «intolerável», como ainda há pouco disse Bento XVI, embora se desconheça até onde poderá ir o que o Papa considera «intolerável». Goste-se ou não da ideia, parece-me óbvio que um cidadão do «mundo livre» tem o direito de negar o Holocausto, como tem o direito de negar que o Homem foi à Lua, que Hitler tenha existido, ou que Estaline não foi o facínora que se sabe. Por ignorância, por má-fé, pelo que for. É que, por mais voltas que se dê, uma proibição deste teor tem um nome: atentado à liberdade de expressão, para mim mais grave que dizer-se o que se diz do Holocausto. E a liberdade de expressão inclui, naturalmente, dizer asneiras, incluindo asneiras que podem ofender, como no caso do Holocausto. Isto por uma questão de princípio. Na prática, devo dizer que ainda acho pior. Como julgo evidente, a proibição seria (é, nos casos onde existe) uma medida contraproducente. Por todas as razões conhecidas, e porque os judeus já inspiram ódio que chegue. Se fizerem questão de calar quem põe em causa o Holocausto, calem-nos com argumentos — ou, então, com os tribunais. Se nada disso for bem-sucedido, deixem-nos falar. [Originalmente publicado em 19-2-2009]
DA LIBERDADE. Como seria de esperar, as declarações do cardeal-patriarca de Lisboa a propósito do casamento entre cristãos e muçulmanos deram azo a reacções da malta do costume, pelas razões do costume. Segundo eles, D. José Policarpo foi longe de mais, pois não devia generalizar situações que estarão longe de se poderem generalizar. Curiosamente, a questão da mulher no Islão, mais precisamente a falta de liberdade da mulher no Islão e a violência a que é sujeita, nunca lhes mereceu o mais leve reparo. Avisar as católicas para o «monte de sarilhos» a que poderão estar sujeitas caso decidam casar com muçulmanos, como fez o cardeal Policarpo, é, para eles, inaceitável. Mas já é aceitável a violência sobre as mulheres muçulmanas, sobre a qual nunca se pronunciam a pretexto de que a cultura delas é assim, e há que respeitar a cultura delas. Caí na asneira de criticar Bento XVI por causa de um discurso que ele proferiu numa universidade alemã (considerei então que o Papa fez uma provocação desnecessária aos muçulmanos), mas não volto a cair noutra. Digo asneira porque o Papa não deve inibir-se de dizer o que pensa por receio de consequências, pois do Papa espera-se que diga o que pensa — e a regra aplica-se, naturalmente, ao cardeal Policarpo. Sobretudo quando estão em causa os valores da cultura ocidental (a nossa), que não caíram propriamente do céu, e que ficam em causa sempre que nos calamos perante situações que requerem denúncia, que nos rendemos ao politicamente correcto, que pedimos desculpa por existir. Como, aliás, muito bem demonstrou o episódio dos cartoons publicados por um jornal dinamarquês, que deu no que deu e causou mais estragos à liberdade de expressão do que possa parecer. Ceder em valores que temos por essenciais, é abrir caminho para nos exigirem ainda mais. Como diz o ditado, quanto mais a gente se abaixa, mais se vê o rabo. Escusado será dizer o que virá a seguir se entrarmos por esse caminho. [Originalmente publicado em 28-1-2009]
PACIFISTAS. Lembram-se do autarca que ameaçava puxar de pistola caso alguém lhe falasse de cultura? Pois apetece-me fazer o mesmo quando ouço falar de pacifistas. É que eu espero dos pacifistas o que me parece normal esperar deles: que defendam incondicionalmente o fim da guerra, seja a guerra qual for, e isso raramente acontece. Em vez de defenderem a paz, os pacifistas limitam-se a condenar uma das partes em conflito, a quem exigem que pare de agredir a outra. Pior: as vítimas inocentes de uma guerra nunca são, para eles, iguais. Se forem palestinianos ou iraquianos, saem à rua a protestar. Se forem israelitas ou americanos, calam-se muito caladinhos. Onde estavam os pacifistas quando os palestinianos se matavam uns aos outros? Que me lembre, não tugiram, nem mugiram. Pior outra vez: se pudessem, não hesitariam em pegar em armas e combater uma das partes, no caso presente Israel, mas o exemplo podia ser outro. O presidente iraniano prossegue o programa nuclear apesar das sanções da ONU e da condenação generalizada e ainda lhe sobra tempo para ameaçar varrer Israel do mapa — e os pacifistas não se ouvem. Mas já se ouvirão caso ganhe consistência a hipótese de um ataque israelita ao Irão, mesmo sabendo os pacifistas que Israel tem uma ameaça real sobre a sua cabeça, e que seria um suicídio nada fazer de forma a travar Ahmadinejad. Claro que há quem seja genuinamente pacifista, mas esses não são para aqui chamados — e, infelizmente, não contam. Falo dos pacifistas para quem a paz não é um fim mas um meio de alcançar outros objectivos, evidentemente que nem todos recomendáveis, e infinitamente menos importantes que a paz. Falo dos pacifistas que só se distinguem dos fundamentalistas que se fazem explodir por aquilo em que acreditam porque os pacifistas se limitam a legitimar estes comportamentos e as suas causas. Infelizmente, os pacifistas servem, apenas, para incendiar, ainda mais, os conflitos pelos quais juram ralar-se, quando deles se esperaria que contribuíssem para lhes pôr fim. Pena é que nem todos percebam as razões que os movem, e que ainda lhes atribuam um estatuto que não merecem. [Originalmente publicado em 7-1-2009]
PAPAGAIOS. Qualquer pedante com pretensões de passar por culto sabe de ciência certa que ler é importante, ouvir música erudita essencial, e que a pintura devia fazer parte da formação de qualquer um. Não sabe muito mais do que isto, mas sabe isto, que em lugares-comuns ninguém o supera. É vê-lo como exibe a «erudição» sempre que, para aflição dele e desgraça de quem o ouve, as circunstâncias o obrigam a elogiar um livro ou escritor, a frequentar um concerto ou exposição — pois é fundamental demonstrar que se interessa pelas «coisas do espírito». Se o escritor estiver coberto por sete palmos de terra, elogia-lhe a obra (que nunca leu), e, se for preciso, visita-lhe a campa; se o compositor for contemporâneo, desdenha-lhe da obra (que nunca ouviu), e, se for preciso, enterra-o vivo. A não ser, claro, que a vítima se apresente recomendada «pelas melhores famílias». Nesse caso, muda de posição enquanto o diabo esfrega um olho, e sem a mais leve resistência. Reparem que falo de posição, não de opinião. É que mudar de opinião implica tê-la, e o sujeito não se distingue por ter opiniões, muito menos opiniões extraídas da sua própria cabeça. Antes pelo contrário. O pedante distingue-se por «pensar» o que pensa quem conta, o que mandam as circunstâncias, o que é politicamente correcto pensar-se. Infelizmente, sei, por experiência própria, do que falo, embora preferisse gabar-me de não saber. Perguntar-me-ão o que é, afinal, um pedante. Segundo o dicionário, um pedante é um pretensioso, um afectado, um impostor, um sujeito que faz ostentação de conhecimentos que não tem. Um pedante, acrescento eu, é um personagem que vive da fachada e para a fachada, uma espécie de lojista que investe tudo na montra e descura o armazém, uma criatura que passa a vida a pôr-se em bicos de pés de forma a mostrar a altura que, obviamente, não tem. Um pedante é um papagaio quase tão bom a imitar como o verdadeiro papagaio, que o verdadeiro papagaio me desculpe a comparação. [Originalmente publicado em 11-12-2008]
DA IMPUNIDADE. Toda a gente viu as fotografias onde Leonor Cipriano aparece com o rosto repleto de hematomas, que terão resultado de uma queda nas escadas da prisão onde estava detida. Como o acto pelo qual foi condenada não mereceu a comoção de ninguém, olhou-se para as fotografias, concluí-se que a história não estava bem contada, mas ninguém fez perguntas. Pior: como Leonor é uma pobre coitada, ninguém prestou a atenção que se prestaria caso se tratasse de alguém com poder de fogo. Mas as fotografias que por aí circulam levantam algumas dúvidas. Por exemplo, quem acredita que os hematomas resultaram de uma queda nas escadas? Evidentemente que ninguém. A própria médica que a observou já disse não acreditar nesta versão, e fez questão de lembrar que os hematomas não foram, apenas, no rosto. Segundo ela, os hematomas estavam por todo o corpo — no rosto, no peito, nas costas, nos braços, nos joelhos. Mas disse mais a médica da prisão de Odemira: cair nas escadas «é uma fatalidade nacional», pois «já no tempo da PIDE era assim». Assim sendo, resultaram de quê os hematomas? Eis a pergunta que eu gostaria de ver respondida pelo tribunal que julga o caso. Infelizmente, vou ter que esperar sentado, que a Justiça já me habituou a nada esperar dela. Certamente invocando falta de provas, o tribunal não confirmará, de novo, o que está à vista de todos. E o que está à vista de todos é que Leonor Cipriano foi espancada quando esteve à guarda da polícia, e quando digo espancada estou a ser benevolente. Fosse outra a vítima, tivesse ela os meios para se defender que têm, por exemplo, alguns mariolas que se passeiam por aí, e teríamos novela. Como não é assim, o caso só pode acabar na prateleira, e fim de conversa. Como, aliás, muito bem sabe quem a convenceu a contar a história das escadas, que anos de prática certamente hão-de ter-lhe ensinado que bater nos fracos não tem consequências. Se esta história tivesse moral, a moral só podia ser esta: há uma polícia para os ricos, outra para os pobres. Como, aliás, sucede com a Justiça, e a coisa é tão evidente que só não vê quem não quer. [Originalmente publicado em 19-11-2008]
O MAL MENOR. Ainda falta uma semana e tudo pode acontecer, mas arrisco dizer que votarei Obama nas Presidenciais da próxima terça. Chego ao senador do Illinois por exclusão de partes, no caso exclusão de McCain, que não me parece o líder capaz de provocar a catarse que o país espera e necessita, e porque arrepia só de pensar que a sra. Palin o pode substituir (McCain tem 72 anos e um historial médico que não se pode negligenciar). Reconheço que a expectativa em torno do candidato democrata é muito exagerada, mas a verdade é que o país quer mudança, e Obama é o que melhor corporiza essa vontade de mudança. Mais: o mundo espera mudanças na América, como a viagem de Obama à Europa bem demonstrou e a imprensa internacional todos os dias confirma, e vê em Obama o garante dessas mudanças. A mera promessa de que algo vai mudar, naturalmente mudar para melhor, é, por si só, positivo, mesmo que nada mude de substancial. É preciso ver que Obama representa a esperança de milhões de americanos que a perderam e que, graças a ele, voltaram a acreditar, e também não se pode esquecer que Obama se apresenta como o líder capaz de romper com «o sistema», entenda-se por «sistema» aquilo que se quiser. Se isto não basta para ser eleito, ou para ser bem-sucedido caso for eleito, ajuda muito. Dito isto, devo acrescentar que não espero nada de especial do candidato, muito menos grandes mudanças (romper com o «sistema» é pura demagogia), e julgo desnecessário dizer que voto nele sem grande entusiasmo. Tenho dúvidas, por exemplo, na área económica, não simpatizo com a generalidade das posições no que respeita à política externa (que ninguém sabe bem quais são), e não fiquei convencido em questões como a energia ou a segurança — embora não duvide que o pragmatismo, cada vez mais a minha «ideologia», falará mais alto caso seja eleito. Os apoios de Mário Soares e Ana Gomes, bem como de Michael Moore e Fidel Castro, também não ajudam, pois estão sempre a lembrar-me que não estou bem acompanhado. Mas não tenho a ilusão de que estaria mais bem acompanhado caso escolhesse McCain. Aliás, em política cada vez tenho menos ilusões. Há muito descobri que os melhores não estão, necessariamente, do nosso lado, e ainda bem que assim é. Assim sendo, e apesar das reservas, resolvi conceder a Obama o benefício da dúvida, porque Obama me parece o mal menor. Isto porque considero que os candidatos têm mais defeitos que virtudes, ao contrário do que diz por aí. Mas conto dormir descansado caso ganhe McCain. [Originalmente publicado em 28-10-2008]
MANJEDOURAS. Como saberá quem me lê com frequência, sou sensível às artes, às letras e às ideias. Prezo, portanto, os seus praticantes, naturalmente mais uns do que outros, e mais as obras que os seus autores. Dito isto, a notícia de que artistas (chamo-lhe artistas para simplificar) habitam casas do município lisboeta que lhe foram atribuídas ninguém sabe como e onde vivem em condições que mais ninguém tem, aliada à tese de que é normal o Estado (ou autarquias) albergar os artistas ou ceder-lhes património público de borla, ou quase de borla, devia, por isso, deixar-me indiferente, talvez achá-la normal. Como já perceberam, não fico indiferente, nem acho normal. Não me escandaliza que os poderes públicos decidam, excepcionalmente, ajudar um artista na miséria, por considerarem que o artista na miséria produziu obra importante para o país (ou município), e que o país (ou município) ficou, de algum modo, em dívida com ele. Mas já me escandaliza a chusma de artistas a viver a expensas públicas, e que, confrontados com a evidência, ainda tenham o desplante de dizer que não vêem mal nisso. Falo das casas do município alfacinha, mas podia falar da generalidade dos artistas que vivem à custa dos dinheiros públicos (de todos nós, portanto), muitos deles enquanto alegremente vão produzindo coisas que ninguém ouve, ninguém vê e ninguém quer saber, evidentemente que, segundo eles, devido à ignorância dos portugueses em coisas do espírito. Nada contra os artistas pretenderem estar bem na vida, calma aí. O meu problema é que eles usufruem de benefícios que o resto dos cidadãos nem imagina que existem, e que alguns ainda se achem no direito de fazer exigências, acusando o país de não os merecer, ameaçando ir-se embora. Tenho saudades do tempo em que os artistas não tinham onde cair mortos, reconheço. Do tempo em que se ouviam histórias de actores que cravavam notas de vinte para tratarem das barriguinhas, de músicos que inventavam esquemas mirabolantes de modo a adiar o pagamento da renda, de escritores a viver a expensas de amigos e amantes — e que, notem bem, nem por isso deixaram de ser artistas e de produzirem as obras que lhe conhecemos. Ser pobretanas, hoje em dia, deixou de ser «sexy», para usar uma expressão muito em voga. Podem não produzir nada que exceda a mediania, mas não se privam de mordomias, incluindo mordomias que um pingo de ética bastaria para as rejeitar. Nada contra, insisto, mas desconfio que a qualidade do que produzem é proporcional ao tamanho da manjedoura. Desconfio, para ser mais preciso, que quanto maior é a manjedoura, menor é a obra que produzem. [Originalmente publicado em 16-10-2008]
FÁTIMA FELGUEIRAS. Tomem nota: Fátima Felgueiras, ilustre autarca da cidade com o mesmo nome, foi acusada de 23 crimes — cinco de participação económica em negócio, seis de corrupção passiva para acto ilícito, quatro de abuso de poder, três de prevaricação, dois de peculato, dois de peculato de uso sob a forma continuada, e um de peculato sob a forma continuada. Posteriormente, o Ministério Público entendeu retirar-lhe nove acusações, pedido prontamente atendido pelo tribunal. Refeitas as contas, Fátima Felgueiras vai a tribunal responder por 14 crimes. E o que vai o tribunal decidir sobre estas acusações? Se tudo correr conforme o habitual, vai decidir que Fátima Felgueiras não é culpada de nenhum dos crimes de que é acusada, e uma semana depois do veredicto exigirá uma indemnização ao Estado. Exagero? Veremos se exagero. Só mais uma coisa: lembram-se daquele sujeito que dizia que a perda de uma vida humana era uma tragédia, mas que a perda de um milhão de vidas humanas era estatística? Pois bem, salvo as devidas distâncias, o princípio mantém-se actualíssimo, e aplica-se inteiramente à Justiça que temos. É que a Justiça que temos demonstra que um cidadão acusado de um crime acaba na cadeia, e um cidadão acusado de dezenas de crimes acaba indemnizado pelo Estado. Sim, a lei diz que todos são inocentes até prova em contrário. Fátima Felgueiras é, portanto, inocente até prova em contrário. Aliás, ainda se há-de provar que nunca viajou para o Brasil, como as televisões largamente mostraram. Pior: ninguém se espantará caso isso suceda, que a Justiça portuguesa já não espanta ninguém. Estarei na primeira fila a fazer mea culpa caso o veredicto revele que me enganei. [Originalmente publicado em 24-9-2008]
E AS CRIANÇAS, SENHOR? Se é verdade que Paulo Pedroso nada teve a ver com aquilo de que foi acusado, a Justiça teve, de facto, um comportamento miserável, e jamais o ressarcirá dos danos (políticos, profissionais, pessoais) que lhe causou atribuindo-lhe uma indemnização de 100 mil ou de 100 milhões. Posto isto, importa, a propósito, perguntar: o que é feito das crianças da Casa Pia, hoje jovens ou adultos, que em tempos foram vítimas de pedofilia? Ninguém se indigna? Será que ainda correm o risco de acabar na prisão por terem denunciado quem delas abusou? Sim, porque houve arguidos que as ameaçaram com processos caso insistissem em os acusar, e certamente que a maioria não teve os meios para se defender que tiveram, por exemplo, alguns dos que ameaçaram lixá-los pela segunda vez. Pode ser que se tenham conformado, que tenham esquecido o episódio, e que nada mais lhes suceda. Pode ser que tenham metido na cabeça que há sujeitos perante os quais as leis se afastam para eles passarem, como diria Eça, e com quem é prudente não se meterem. Para bem deles, para bem de quem abusou deles, para bem de quem cuida deles, para bem das nossas delicadas consciências. Mas não pretendo com isto dizer mais do que disse, calma aí, e repito o que disse no início as vezes que for preciso. Acontece que me chateiam as indignações selectivas, e que o processo Casa Pia caminhe, rapidamente, para a impunidade total. Chateia-me o silêncio que se abateu sobre as vítimas e a indiferença generalizada, e que os comentários sobre o caso Pedroso não refiram, uma única vez, as vítimas, até ver os alunos da Casa Pia. Chateia-me, por último, saber que o assunto há muito estaria encerrado e os culpados na cadeia caso fossem outros os protagonistas. [Originalmente publicado em 5-9-2008]
UMA TRAGÉDIA. É fácil e barato fazer juízos de valor sobre a actuação das forças de segurança em situações-limite como a que se verificou no assalto a uma agência bancária de Campolide e a que ontem ocorreu em Loures, de que resultou a morte de uma criança. As forças da autoridade têm, em casos destes, de decidir como agir em fracções de segundo, e há sempre imponderáveis difíceis de prever ou controlar, por mais competentes e experimentados que sejam os agentes das forças de segurança. Assim sendo, umas vezes as coisas correm bem, como no caso da agência bancária; outras vezes correm mal, como no caso de Loures — num caso e noutro, porém, independentemente da competência ou da incompetência. Mas se isto me parece uma evidência a ter em conta quando se procura entender o que se passou, também é bom que se questione o papel das forças de segurança sempre que do desempenho da sua actividade resultam mortes, de bandidos ou de inocentes. Por exemplo, era mesmo necessário recorrer à força extrema para travar um caso de pequena criminalidade? Depois, se a ideia era imobilizar a viatura onde seguiam os fugitivos, como justificar que um disparo contra uma roda tenha acabado nas costas da vítima? Detesto dar razão a Fernando Rosas, mas ele parece tê-la quando diz que estamos perante o «uso desproporcionado e aparentemente incompetente» de armas de fogo. Tanto mais que havia, segundo a Lusa, «uma recomendação da Inspecção-Geral da Administração Interna» alertando as forças de segurança para o facto de só poderem utilizar armas de fogo «durante uma perseguição», e «quando está em perigo a vida dos agentes ou de terceiros». Resta esperar que a tragédia de Loures não tenha resultado do excesso de entusiasmo motivado pela bem-sucedida operação de Campolide, mais precisamente de mão leve no gatilho. É que, a ser assim, seria muito mais que uma tragédia: seria um crime. [Originalmente publicado em 12-8-2008]
PENSAMENTO ÚNICO. Tenho o péssimo hábito de me bater por aquilo em que acredito, ignorando timings, circunstâncias e eventuais prejuízos. Digo péssimo hábito porque esta prática só me traz prejuízos, e de dissabores é melhor nem falar. Como saberá quem sofre do mesmo mal, o acto de opinar é, quase sempre, visto como um delito, na melhor das hipóteses uma excentricidade tolerada, apenas, a alguns. Pior só quando a opinião vem de quem pensa pela sua própria cabeça e, ainda pior, ousa dizer o que pensa, pois há quem ache isto intolerável. Contrariamente ao que possa parecer, não são poucos os que não hesitariam em decretar o pensamento único (o deles, claro) caso tivessem poder para tal. É que contestar uma ideia dá trabalho, e são necessários argumentos. Já calar quem não pensa como nós, ou recusar discutir uma ideia com quem não pensa como nós, dá menos trabalho, e sempre permite esconder a incapacidade de quem não consegue impor-se pela força dos argumentos, quase sempre a origem do problema. Há, ainda, outro factor a considerar: é frequente contestar-se quem opina, em vez do que é opinado. Como se as opiniões valessem, ou não, por quem as defende, não pelo que defendem. Mas devo dizer que nada disto impede de me bater por aquilo em que acredito, e por vezes funciona como um estímulo. Até porque burro velho não aprende línguas, nomeadamente quando a vontade é pouca, e a motivação nenhuma. [Originalmente publicado em 30-7-2008]
MORALISTAS DA BOLA. Não deve haver um único português que não acuse a televisão de prestar demasiada atenção ao que não lhe interessa — e, por consequência, pouca ao que lhe interessa. Naturalmente que a televisão do Estado é o alvo principal, porque a televisão do Estado tem obrigações que as outras não têm, e porque todos nos achamos no direito de protestar quando se trata de serviços que vivem à custa dos nossos impostos. Aliás, falar mal da televisão sempre foi, em Portugal, um desporto nacional, embora eu não esteja seguro de que o «fenómeno» seja, apenas, português. O Europeu de Futebol, e a previsível overdose de bola nas televisões, deu azo a protestos por parte de alguma opinião publicada, à esquerda e à direita, a meu ver tão exagerados quanto o exagero das televisões. Digo exagerados porque os argumentos invocados foram, por regra, demagógicos, e a demagogia raramente alcança o que pretende. Isto para não falar da sobranceria com que abordaram o futebol e quem gosta de futebol, que geralmente tomam por gente pouco instruída, e o povo, por regra ignorante, causa-lhes repugnância. Não fossem algumas figuras respeitáveis assumirem o prazer da bola, e estaríamos fritos. Digo «estaríamos» referindo-me aos que, como eu, acompanham o «fenómeno futebolístico» com moderação, e com mais distância que paixão. Mas devo acrescentar que respeito a generalidade dos «moralistas da bola», e por alguns tenho, até, admiração. Só que as críticas são exageradas, e exageros são isso mesmo — e não levam a lado nenhum. Antes pelo contrário. São bem capazes de resultar no contrário do que pretendem, embora no caso em apreço não haja razões para lamentar. [Originalmente publicado em 25-6-2008]
UMA LIÇÃO. Como estarão lembrados, o Futebol Clube do Porto (FCP) foi condenado a perder seis pontos porque o órgão disciplinar da Liga de Clubes entendeu que o clube nortenho cometeu um crime de corrupção na forma tentada. Como se viu mal a decisão foi conhecida, o FCP acatou o castigo praticamente sem comentários, e logo anunciou que não tencionava recorrer. E por que razão assim foi? Aparentemente, pelas razão que todos suspeitam: o FCP não perdeu nada no plano desportivo, e no plano financeiro 150 mil euros de multa nem atrasam, nem adiantam. Digo aparentemente porque não me lembro de ter visto qualquer reacção do FCP, na minha opinião um erro crasso. Por uma razão muito simples: a postura do FCP não deveria pautar-se por meras razões contabilísticas, mas por uma questão de princípio. É sabido que quem cala consente, pelo que a decisão de não recorrer do castigo não pode deixar de ser vista, também, por esse lado. Isto, claro, partindo do princípio que o FCP se julga inocente e discordou da decisão da Liga, como sucedeu com o castigo imposto a Pinto da Costa, que logo anunciou recurso. Bem sei que não se pode exigir ao FCP que seja um modelo de virtudes, mas uma instituição que pretende ser respeitada devia começar por dar-se ao respeito. E dar-se ao respeito implica, a meu ver, protestar quando for caso disso, se necessário forte e feio — como, aliás, é tradição do FCP. Como nada disso ocorreu, como o pragmatismo falou mais alto que os princípios, o episódio prestou-se em demasia a leituras que não abonam o clube nortenho. Certamente que a UEFA, que acaba de suspender o FCP das competições europeias, não deixou de ter isto em consideração. Aliás, nem se compreenderia que assim não fosse. Como os patrões do futebol europeu não costumam ter contemplações quando se trata de disciplina, a coisa só poderia dar no que deu. Resta esperar que os dirigentes do FCP, e do futebol português em geral, aprendam a lição. [Originalmente publicado em 4-6-2008]
RACISMO. Como seria de esperar e os últimos desenvolvimentos confirmam, as Presidenciais americanas de Novembro vão agitar o espantalho racial, e cada vez me convenço mais que a questão pode tornar-se determinante para o desfecho do resultado. Essencialmente por duas razões: há demasiados afro-americanos que não se conformam com o facto de Obama não se assumir como o candidato deles (o caso do pastor Wright é um bom exemplo), e outros pretendem que o senador do Illinois passe por ser o candidato dos afro-americanos, ou sobretudo dos afro-americanos, pois sabem que os afro-americanos, sendo minoria, não bastam para o eleger. (O facto de Hillary Clinton ainda há pouco ter dito que tem o apoio dos white americans certamente que não foi por acaso.) Ou muito me engano, ou não tarda que a questão racial transborde das candidaturas e se generalize à sociedade americana, coisa que, a suceder, poderá tornar-se explosivo. É que eu estou convencido de que uma discussão destas numa altura destas servirá, apenas, para entrincheirar ainda mais quem já está entrincheirado, e não para esbater racismos latentes (ou reprimidos), como seria desejável. Contrariamente ao que possa parecer, o racismo, na América, está demasiado vivo para que o possamos subestimar, e agitá-lo numa altura destas, além de irresponsável, é perigoso. Infelizmente, a questão é mais complexa do que aponta Ferreira Fernandes, quando diz, com razão, que há demasiados «negócios» que dependem da América racista (como o do pastor Wright, por exemplo). É que os «negócios» alimentam, apenas, a freguesia habitual, e o «mercado» de que falo é muito mais vasto — e mais perigoso. [Originalmente publicado em 14-5-2008]
JARDIM. Há, no Brasil, uma expressão muito usada para caracterizar os detentores de cargos políticos com obra feita mas pouco escrupulosos nos métodos que diz o seguinte: «Rouba, mas faz.» Isto mesmo se poderia dizer de Alberto João Jardim caso substituíssemos o «rouba» pelos frequentes atropelos à democracia e pelos constantes insultos aos titulares dos órgãos de soberania. De facto, não há uma única vez que Jardim pise o risco que não venham logo com um «mas», como se a obra (que todos lhe reconhecem) lhe desse o direito de pisar o risco. Pior: parece que Jardim se tornou inimputável, faça ele o que fizer, diga ele o que disser. Ainda pior: o dirigente madeirense é manifestamente incapaz de encaixar uma crítica mais desabrida, como as decisões dos tribunais bem o demonstram. Ora, eu quero dizer, pela enésima vez, que as tropelias de Jardim me indignam, e ainda me indigna mais que lhe reconheçam coragem para dizer o que diz, como se o presidente da Madeira não soubesse de antemão que não haverá consequências. Afirmar, como há pouco afirmou, que os deputados da assembleia madeirense são um «bando de loucos», ultrapassa, de novo, os limites, como concordará qualquer pessoa com um pingo de bom senso. Claro que estou a chover no molhado, pois tenho o (péssimo) hábito de me bater por aquilo em que acredito quando todas as circunstâncias o desaconselham. Aliás, o silêncio do Presidente da República sobre este assunto, a pretexto de que o silêncio é mais eficaz, é só mais um aviso, e só vem demonstrar que não tenho emenda. Mas já não estou tão seguro que atitudes destas não tenham, a prazo, consequências, no caso consequências indesejáveis. Afinal, o mal que se diz dos políticos quase sempre resulta dos erros que eles cometem, e atitudes como esta só contribuem para tornar as coisas ainda pior. Em vez de fazerem de conta que não viram, os políticos deviam ser os primeiros a insurgir-se contra estes comportamentos, nomeadamente os detentores de órgãos de soberania. O silêncio, em casos destes, não pode ser a alma do negócio, pois cria mais problemas do que resolve. [Originalmente publicado em 21-4-2008]
O DESCALABRO. A Justiça portuguesa chegou a um ponto em que já ninguém se espanta com nada. Não houve, nos últimos tempos, um único caso mediático em que a Justiça se tenha saído bem, e quando a Justiça não é capaz de fazer bem quando todos os olhos estão postos nela imagina-se o que sucede quando os casos que tem em mãos não são notícia. A Justiça não é capaz de punir o crime mais evidente quando os arguidos são «importantes». Pior: não absolve quem está inocente, deixando no ar um clima de suspeição generalizada que a todos condena. Ele é a Casa Pia que se arrasta há séculos e não tem fim à vista; ele é o caso McCann que nos envergonha lá fora e nada resolve cá dentro; ele é o caso Joana que levanta dúvidas acerca dos métodos utilizados pelos investigadores; ele é o Apito Dourado que vai dar em nada; ele é o caso Bexiga em que a polícia não fez o que devia e ainda ameaça a vítima; ele é Isaltino que quer decidir quem deve julgá-lo; ele é a dona Fátima que já viu prescreverem vários crimes de que foi acusada. Como não bastasse, os agentes da Justiça não se coíbem de vir à praça pública falar mal uns dos outros, opinar sobre penaltis, e alimentar uma guerra paroquial que ninguém entende. Claro que as cadeias estão cheias de gente, o que sempre dá a ideia de que a Justiça funciona — embora, é claro, não se possa medir a eficácia da Justiça pela quantidade de gente que mete na cadeia. Funciona, claro está, para os pequenos, para quem não pode escapar-lhe, mas funciona. Tal como funciona a cobrança dos impostos para quem não pode fugir-lhes, que aqui a Justiça sempre demonstrou uma extraordinária eficácia. Quem viu o Prós e Contras onde o assunto foi discutido só pode concluir uma coisa: a Justiça está pior do que se imaginava. Basta, aliás pegar nas mais recentes declarações de alguns dos seus protagonistas. Por exemplo, nas palavras do advogado Ricardo Bexiga, que diz que a Justiça só funciona com os pequenos. Nas palavras de Moita Flores, que diz que a Judiciária está num caos. Nas palavras do presidente da Associação Sindical dos Funcionários de Investigação Criminal, que diz que a PJ «está paralisada». Nas palavras do director-adjunto da Judiciária do Porto, que diz que «a justiça não funciona neste País». Como vêem, não estou a inventar nada. E, se eles o dizem, quem sou eu para duvidar? [Originalmente publicado em 1-4-2008]
PROFESSORES. É extraordinário como a Oposição cavalgou a onda dos professores sem dizer uma palavra sobre os motivos que os levou ao protesto. Por junto, tudo o que lhe ouvimos foram generalidades, tornando-se evidente que a ideia da Oposição foi apanhar o comboio do protesto contra o Governo a qualquer preço. Ao menos ficamos a saber que os partidos da Oposição, nomeadamente os partidos que aspiram a ser Governo, deixarão, em matéria de Educação, tudo na mesma caso venham a ser Governo, pois deixaram de ter qualquer autoridade para fazer as mudanças que se impõem. Claro que ninguém pode ignorar a multidão que saiu à rua, a forma politicamente correcta de se dizer que a rua tem sempre razão. Ninguém, a começar pelo Governo, que até já disse pretender melhorar a avaliação dos professores, e acaba de descobrir as vantagens da «flexibilização». Mas eu, que não mudo ao sabor das conveniências, não fiquei impressionado com a rua, nem vejo razões para mudar de ideias. Como já disse e repeti, se todos os métodos de avaliação dos professores até agora propostos são maus, por que não apresentam os professores uma proposta de avaliação? Mais: alguém conhece as propostas de avaliação dos sindicatos dos professores? Sim, também já ouvi que os professores não estão contra a avaliação, mas contra esta avaliação. A frase soa bem, não há dúvida que soa, mas só convence os distraídos. Os professores estarão, sempre, contra a avaliação, qualquer que seja a avaliação, a não ser que ela, na prática, não avalie coisa alguma. Há muito que se percebeu que os professores querem ser eles, e só eles, a decidir o que deve ser feito e como deve ser feito, não só na área que lhes diz directamente respeito, mas na Educação em geral. Por razões que todos conhecem e se compreendem quando se olha para eles enquanto pessoas que, como as outras, têm contas a pagar ao fim do mês, mas que não podem ser obstáculo quando está em causa a melhoria das escolas e dos alunos, o bem de todos. Para os professores, a culpa é sempre do Ministério da Educação, do ministro da tutela, do Governo. De todos os ministérios, de todos os ministros, de todos os Governos pós-25 de Abril. Falo, claro, da regra, que ele há professores que não pensam assim e querem ser avaliados, embora, há que dizê-lo, sejam a minoria. Evidentemente que os professores têm razões para sorrir após o sucesso da recente manifestação. Já os pais e os alunos, não me parece que tenham. Não, não pretendo diabolizar os professores, nem culpá-los pelo que vai mal no ensino — embora, é claro, há culpas que lhes cabem que nunca vi assumidas. Pela paz podre que por aí vai e pelo oportunismo político tão descarado como irresponsável, já me contentava que não os canonizassem. [Originalmente publicado em 12-3-2008]
OBAMA. O crescente apoio dos americanos à nomeação de Barack Obama como candidato do Partido Democrático significa, antes de mais, uma coisa simples: os americanos estão fartos de políticos do passado, quer do Partido Democrático, quer do Partido Republicano. Se mais consequências não resultarem da sua pré-candidatura — isto é, se não for o escolhido pelos Democráticos para disputar as Presidenciais —, a candidatura do senador do Illinois já teve o mérito de lembrar essa evidência. É verdade que Hillary Clinton tem mais experiência política que o jovem senador, e a experiência política é um bem que convém não desprezar. Mas a experiência não é, por si só, um trunfo. Aliás, pode ser um obstáculo, como de algum modo demonstra o entusiasmo à volta da candidatura de Obama — além de que, seguindo este princípio, jamais se votaria na Oposição, pois é sabido que quem está no poder tem, por regra, mais experiência. O facto de o candidato afro-americano nunca ter usado a sua origem como matéria de campanha terá, também, contribuído para o entusiasmo à sua volta. Não digo que Obama será o meu candidato, até porque não se sabe se será, de facto, candidato. Não digo, sequer, que será o candidato mais bem colocado para bater John McCain a 4 de Novembro. Digo, sim, que Obama trouxe muita gente de volta à política, demonstrou ser capaz de entusiasmar uma juventude cada vez mais desinteressada da política, e tornou-se uma esperança que os apoios dos diversos quadrantes bem demonstram. E isso, convenhamos, não é pouco. [Originalmente publicado em 29-2-2008]
BATER NO CEGUINHO. Confesso que já não tenho paciência para essa de que os políticos são mal pagos. Se é verdade que os políticos são mal pagos (e não me custa reconhecer que, em alguns casos, são mal pagos), por que razão são mais que as mães os candidatos aos cargos políticos? Por que razão, por exemplo, há tanta polémica à volta da constituição das listas de candidatos a deputados sempre que há eleições legislativas? Não, não acho que esteja a ser demagógico ou populista, que a realidade está aí para o demonstrar. Dir-me-ão que na política a escassa remuneração afasta os melhores. Responderei que não há regra sem excepção. Também não me custa admitir que o Estado pudesse melhorar o seu desempenho em algumas áreas caso elas fossem tuteladas por técnicos de primeira auferindo ordenados de primeira, e até já houve casos que o demonstraram. Mas, insisto, é da regra que falo. A política é uma missão e não um emprego, pressupondo sacrifícios pessoais e materiais a quem nela se mete. Ganhar menos que noutra actividade, mesmo bastante menos, parece-me normal — e pedagógico. Auferir salários equivalentes aos privados seria, isso sim, obsceno. Há, ainda, outro factor a ter em conta, tão ou mais importante que os salários. Os cargos políticos abrem portas que, mais tarde, se revelam preciosas, e se traduzem em mais-valias em proveito próprio. Daí que volte à pergunta: por que são tantos os candidatos aos cargos políticos quando se diz que são tão mal pagos? A resposta não é tão simples como parece, evidentemente. Mas certamente que a questão da remuneração não é um problema. Assim sendo, convém não bater mais no ceguinho, até porque o ceguinho não é cego de todo. [Originalmente publicado em 11-2-2008]
MORRER SAUDÁVEL. Após aturadas pesquisas, descobri, finalmente, um local onde vendem alheiras como lá da terra, e não exagero quando digo como lá da terra. (Aliás, não exagero se disser que são mais saborosas que algumas lá da terra, incluindo a terra delas (Mirandela), onde as alheiras nem sempre fazem jus à fama que têm.) Isto a propósito da recente Feira do Fumeiro de Montalegre, cujas notícias não foram animadoras. Segundo os jornais, regras mais apertadas sobre as condições de comercialização e fabrico de enchidos e produtos afins afastaram, este ano, seis dezenas de produtores de fumeiro, alegando os ausentes que a escassa produção não compensa o registo nas Finanças. Depois, as novas regras não permitem que os porcos sejam abatidos de forma tradicional, coisa que, no mínimo, aumenta os custos (transporte dos animais até ao matadouro, abate, etc.). Por último, a autoridade que fiscaliza estas coisas — a ASAE — já demonstrou que está aí para nos salvar, queiramos ou não, e é tal o zelo com que actua que chega a usar «tácticas paramilitares» ministradas por «agentes dos serviços secretos portugueses» e «forças especiais norte-americanas» (Expresso de 12.01.2008). Temos, assim, que o fumeiro artesanal tem os dias contados, e a contagem decrescente já começou. Aliás, já começou a contagem decrescente das colheres de pau, das bolas-de-berlim, do arroz de cabidela, da sopa de pedra, dos cogumelos selvagens, do cozido à portuguesa, dos biscoitos feitos lá em casa, e do mais que se imagina. A não ser, diz quem manda, que tudo esteja dentro das normas, como se os produtos artesanais não se distinguissem dos outros precisamente por não estarem dentro das normas. Resta aguardar pelos restaurantes onde se possa comer pratinhos de dobrada e outras coisas «que fazem mal», se é que já não há. Evidentemente que longe da vista das autoridades e de vigilante à porta, como no tempo da outra senhora, apesar de a recente lei do tabaco relembrar que a bufaria não se extinguiu com a outra senhora. Sou, como vêem, dos que prefere morrer devido às «comidas que fazem mal» a morrer cheio de saúde, e o risco de ser «apanhado» a degustar uma cabidela (sorrio só de imaginar) é o preço a pagar. Prometo, por isso, prevaricar até onde for possível, e desde já agradeço que me avisem mal saibam de lugares onde se possa pecar. É que ele há prazeres (aqui está uma palavra a banir dos dicionários) de que não estou disposto a abdicar, e suspeito que não deve haver pior que morrer saudável. [Originalmente publicado em 18-1-2008]
DAS BOAS INTENÇÕES. Há uma lista de pessoas a abater na noite portuense, garantiram, há meses, seguranças e polícias ao Correio da Manhã. Por aquilo que se vê, não se duvida. Aliás, quem conhece, mesmo que vagamente, a vida nocturna portuense sabe que os «empresários da noite» não são flores que se cheirem, e que facilmente associamos a actividades como o tráfico de droga, cobranças difíceis, extorsão, venda de armas, exploração de prostituição e por aí fora. Naturalmente que há excepções, mas excepções são isso mesmo — e é da regra que falo. E a regra, no caso, demonstra que a noite portuense é dominada por empresários sem escrúpulos aliados ao que há de pior, pelo que ninguém se surpreende com as recentes matanças. Surpresa, a haver, só se for por existirem tão poucos casos como os ora ocorridos, embora se suspeite que outros haverá que, por não resultarem em homicídio, nunca verão a luz do dia. Surpresa, também, não será a participação de agentes da polícia na segurança de bares e aparentados — nem, sequer, o facto de o fazerem de forma ilegal, pois há anos que ouvimos falar de polícias travestidos de seguranças a protegerem dirigentes da bola. Surpresa só o director da Judiciária do Porto quando ele disse, ao Correio da Manhã, que a noite do Porto «está sem controlo», e que «é de temer tudo». E o porta-voz do Comando Metropolitano do Porto da PSP, quando admitiu ao mesmo jornal que a situação «pode piorar nos próximos tempos», e que as autoridades nem tudo podem fazer. Surpresa porque isto é uma confissão de impotência, a capitulação anunciada — e a consequente impunidade dos meliantes. Surpresa, por último, o facto de declarações destas terem passado por normais, demonstrando que a irresponsabilidade é maior do que se julga. Dir-me-ão que a recente operação na noite portuense é um sinal de que as coisas vão mudar. Olhando a práticas passadas e ao que acabo de enunciar, duvido. Têm sido tantos os erros das polícias e dos tribunais que não se espera outra coisa que não seja mais do mesmo. As boas intenções, a haver, não bastam para que as coisas mudem, além de que de boas intenções está o Inferno cheio. [Originalmente publicado em 26-12-2007]
FALAR CLARO. Devo à crítica literária e musical parte do gosto pelos livros e pela música. Mesmo à crítica de que discordei, e à que me levou por caminhos diferentes aos que me recomendaram. Mas devo acrescentar, também, que me fartei, e hoje só raramente a leio. Reconheço a crítica das artes e das letras como uma actividade ingrata, e num país minúsculo como o nosso ainda mais difícil se torna a sua prática. Admiro, por isso, a coragem dos críticos portugueses, pois certamente que se arriscam a umas bordoadas quando não morrem de amores pelas obras que analisam. Mas finda aqui a minha admiração pela crítica. É que a crítica, às vezes (demasiadas vezes), só atrapalha, complica em vez de facilitar, distancia em vez de aproximar. Por regra, a crítica diz-nos que o crítico aprova ou não aprova, mas raramente nos explica porquê — ou nos fornece dados que permitam perceber-se porquê. Dizia não sei quem que a crítica é um exercício destinado, apenas, a fazer brilhar quem o pratica — e, não raro, a esconder a ignorância de quem o pratica. Não penso que assim seja, mas não há dúvida de que há demasiados exemplos que apontam neste sentido. E é pena, pois a crítica devia, antes de mais, iluminar o que critica, e conquistar adeptos para a causa. Falando bem ou mal, mas falando sempre com argumentos — e de modo que se entendam. [Originalmente publicado em 9-12-2007]
DESACORDO ORTOGRÁFICO. Independentemente das razões que possa haver para trocar «húmido» por «úmido» ou «facto» por «fato», o que eu gostaria de ver discutido é a necessidade de um acordo ortográfico. Unificar a língua portuguesa porquê? O embaixador Seixas da Costa defendeu, há pouco, que a harmonização ortográfica irá garantir «que da expressão diversa do português não possa vir a decorrer, a prazo, um indesejável processo de ruptura comunicacional». Ora, não vejo como. É que, a verificar-se o pressuposto, como conseguimos comunicar durante tantos anos sem um acordo ortográfico? Que obstáculos terão existido no passado que se revelaram intransponíveis? Não, não quero com isto dizer que não haja razões substanciais para se defender um acordo ortográfico. Quero dizer, apenas, que nunca as vi, e não tenho andado propriamente distraído. Gostaria, por isso, que o assunto fosse discutido como deve ser discutido, e não só por especialistas. É que eu estou pronto a render-me às evidências, mas quero certificar-me que as há. Também não acho que os portugueses são os donos da língua, e o facto de o acordo resultar em mais mudanças em Portugal que no Brasil (3% em Portugal contra 0,45% no Brasil, ao que dizem) não me perturba. O meu ponto, insisto, é que ainda não vi a necessidade de um acordo ortográfico, nem para Portugal, nem para os restantes países por ele abrangidos. Claro que, a avaliar pelo silêncio que por aí vai, nomeadamente o silêncio de quem se esperaria que dissesse alguma coisa (escritores, professores, fazedores de opinião, etc.), não adianta pedir uma discussão, pois já se viu que o acordo ortográfico é um assunto tabu. Razão tem a ministra da Cultura em pedir uma moratória de 10 anos para que Portugal tenha tempo de se adaptar às novas regras. É que, assim, evitam-se embaraços, e pode ser que daqui a 10 anos já ninguém se lembre do que foi acordado. Afinal, já lá vão 17 anos que o acordo foi aprovado sem que nada — ou quase nada — se tenha feito para o cumprir, e ainda não deixámos de falar uns com os outros ou de nos lermos uns aos outros. [Originalmente publicado em 16-11-2007]
ALDRABICES. Al Gore e Michael Moore têm uma coisa em comum: ambos se especializaram em documentários ficcionados. Quer dizer, ficcionados depois de serem detectados «factos» que, afinal, não passam de ficção, mas que teriam passado por verdades inquestionáveis caso não fossem descobertos. Há, porém, uma diferença: não consta que Moore tencione candidatar-se à Presidência dos EUA. Como não é assim com Gore, que tem uma agenda política apesar de garantir o contrário, o caso muda de figura. Repare-se no tribunal britânico que decidiu que Uma Verdade Inconveniente só pode ser exibido nas escolas inglesas na condição de os professores advertirem os alunos para as partes que não têm suporte científico. O que quer isto dizer? Evidentemente que não há duas interpretações: a «verdade inconveniente» de Gore contém erros grosseiros e mentiras convenientes (nove, segundo o tribunal). Infelizmente, nada disto importou à douta academia que lhe deu o Nobel da Paz, apesar de amplamente conhecidas as aldrabices ainda antes da decisão do tribunal. Não importou, nem surpreendeu. Afinal, como ficar surpreendido com uma instituição que premeia terroristas? Dir-me-ão que Gore trouxe para a ribalta a questão do aquecimento global, e isso, por si só, merece aplauso. Com vossas licenças, discordo. Discordo porque o assunto não está a ser tratado de forma séria, inclusive pela comunidade científica, e quando assim é o que poderia ser útil apenas serve para envenenar uma discussão que se espera — e deseja — séria. Aliás, quem, nesta altura do campeonato, e apesar do que já se disse e escreveu sobre o assunto, não tem dúvidas sobre o aquecimento global? Quem está seguro de que nos estão a dizer a verdade, e só a verdade? É que se uns não estão interessados em mudar o que aparenta estar mal, outros não hesitam em aldrabar-nos. Assim sendo, em quem devemos fiar-nos? Nos irresponsáveis, ou nos aldrabões? [Originalmente publicado em 19-10-2007]
DIRECTAS. Goste-se ou não da ideia, a eleição do líder de um partido político directamente pelos seus militantes é mais democrática que a eleição pelo método dos delegados. Tem, naturalmente, inconvenientes, mas a eleição directa dá aos militantes o poder de dizerem o que pensam — e não, apenas, o poder de escolherem quem pense (e decida) por eles, como acontece pelo método dos delegados. É provável que as últimas eleições no PSD tivessem um desfecho diferente caso o método de votação fosse outro, mas isso só vem demonstrar que o resultado teria contrariado a vontade dos seus militantes. Para quem não se cansa de dizer que os partidos estão cada vez mais distantes dos seus militantes, isto devia servir de lição. Infelizmente, a avaliar pelo desprezo com que se fala das «bases», não vai servir. O ideal, para alguns, seria que apenas os iluminados pudessem votar, e não só nas eleições partidárias. O povo é demasiado ignorante para saber o que quer, e só atrapalha. Ora, é precisamente por este pressuposto que eu prefiro o voto do povo ao voto dos iluminados, mesmo consciente dos perigos que daí possam surgir. É que eu abomino o populismo e a demagogia, mas ainda abomino mais a ideia de que o povo precisa de alguém que decida por ele. [Originalmente publicado em 5-10-2007]
MEMÓRIA CURTA. O episódio que envolveu o seleccionador nacional de futebol e um jogador sérvio foi aproveitado por uns para desopilar o fígado, e por outros para se posicionarem na corrida à sua sucessão. De facto, não há melhor altura para bater em alguém que quando esse alguém se encontra no chão, e alguns não olham a meios para chegar onde pretendem. Os últimos resultados de Portugal na corrida ao Europeu também não ajudam, e quando as coisas correm mal alguém tem que levar com o sarrafo — e o treinador é a primeira vítima. Há, ainda, outros factores. Por exemplo, o facto de Scolari ser estrangeiro e — vejam lá — brasileiro; o facto de muitos não gostarem dele por razões clubísticas ou futebolísticas; o facto de Scolari ser «teimoso» e — heresia das heresias — de não admitir intromissões no seu trabalho. Claro que há razão para críticas — e, tudo indica, algo mais. Mas que a ocasião vem mesmo a calhar, não há dúvida que vem. Curiosamente, os que agora vêm com moralismos são os mesmos que ainda ontem se reviram no murro do seleccionador, e se algum erro então lhe apontaram não foi o ter-se excedido. Claro que isto, agora, só atrapalha. O que interessa, agora, é um bode expiatório, vazar o ódio acumulado durante anos, e Scolari pôs-se a jeito. Naturalmente que as desculpas lhe ficam bem, mas servem de pouco. Como dizia outro seleccionador, no futebol passa-se de bestial a besta enquanto o diabo esfrega um olho, e Scolari já era besta antes do castigo de que foi alvo. Que ele tenha um palmarés à frente da selecção portuguesa que mais ninguém tem, é coisa que não interessa — e, quem sabe, mais uma razão para o despachar. O bom treinador será o próximo, seja ele quem for, e tudo se repetirá quando as coisas voltarem a correr mal. Como está mais que demonstrado, a memória, na bola, não conta, ou só conta a parte que nos convém. Vale, por isso, a pena lembrar a evidência: a maioria dos que agora pisam Scolari é a mesma que ainda ontem o venerou. Não que adiante muito lembrar, mas é bom não esquecer. [Originalmente publicado em 20-9-2007]
CEREAL KILLERS. Pondo de parte o vandalismo gratuito, os «amigos do ambiente» distinguem-se do resto dos cidadãos por defenderem causas raramente compreensíveis ao comum dos mortais. A causa dos alimentos geneticamente modificados, que levou uns sujeitos a destruir um hectare de milho no Algarve perante a passividade das autoridades, está longe do consenso na comunidade científica, e a léguas de demonstrar que os transgénicos são um perigo para a saúde. Como se viu pelo episódio de Silves, não é assim que eles pensam. Os sujeitos têm certezas que mais ninguém tem, embora depois metam os pés pelas mãos quando toca a entrar em pormenores. Pior: não respeitam quem não pensa como eles, e não há dúvida de que não hesitariam em impor o pensamento único caso tivessem poder para tal. Há, ainda, factores que não têm em conta, e deviam. Por exemplo, esquecem-se que os transgénicos significam comida que muitos não teriam caso esses produtos não existissem. Aliás, descontando excepções, os «amigos do ambiente» não se cansam de demonstrar que as borboletas são, para eles, mais importantes que o Homem, e quem está a par das actividades que desenvolvem sabe que não exagero. Isto quando não usam a causa do ambiente com outras finalidades, o que não é raro suceder, deixando à vista que a verdadeira razão que os move tem pouco a ver com a causa que dizem defender. Mas nada contra quem defende o ambiente, notem bem. O ambiente necessita de quem o defenda, e há gente séria a fazê-lo que admiro e respeito. O meu problema é que me repugnam actos como o do Algarve, e que as autoridades se demitam de cumprir o que delas se espera. Repugna-me que políticos eleitos simpatizem com práticas destas, pois o gesto desculpa a inércia das forças da ordem e fomenta vandalismos do género. Repugna-me, por último, que os sujeitos ainda tenham o desplante de dizer que só pagarão os prejuízos causados ao agricultor caso o tribunal assim o decida, pois o que fizeram destinou-se a «evitar um mal maior» e, presumo, ainda lhe deviam agradecer. O ministro Jaime Silva garantiu que os «amigos do ambiente» vão pagar por aquilo que fizeram, nomeadamente os prejuízos causados ao agricultor, que cometeu a imprudência de não os receber a tiros de caçadeira. Tenho, porém, fundadas razões para duvidar. Afinal, outro ministro (Rui Pereira) apressou-se a dizer que a GNR «fez exactamente o que deveria», e isto é já um indício de que o caso não tarda em cair no esquecimento e na impunidade. Exagero? Infelizmente, não creio. Práticas passadas demonstram que casos destes terminam dessa maneira, e não se conhecem excepções. [Originalmente publicado em 30-8-2007]
ESQUERDA E DIREITA. Tirando Freitas do Amaral, não conheço uma única pessoa que se tenha mudado da Direita para a Esquerda, embora alguns garantam que Freitas nunca foi de Direita. Falo de quem muda de ideias, não de quem muda por outras razões. Com todo o respeito por Freitas do Amaral, parece-me que mudar da Direita para a Esquerda é como andar de cavalo para burro. Aliás, não será por acaso que se diz que todos vamos ficando mais conservadores à medida que envelhecemos, embora eu prefira dizer que vamos ficando mais pragmáticos — ponto que a Direita tem claramente a seu favor e para o caso de uma coisa não ser sinónimo da outra. O 11 de Setembro de 2001, aliado à circunstância de me encontrar próximo de um dos locais onde ocorreu a carnificina, fez-me regressar à política — ou estar mais atento à política. Como apoiei a invasão do Iraque e não sou anti-americano (coisa rara de se ver na generalidade da Esquerda), acusaram-me de ser de Direita. Reparem que eu digo «acusaram-me», pois foi disso que se tratou. Fiquei a saber que ser de Direita é coisa feia, no mínimo razão para tomarem cuidado com as carteiras. Acontece que eu não sei se sou de Direita. Para ser franco, não sei, nem me interessa. Em política (mas não só em política), sou contra o que acho errado, e a favor do que julgo acertado. Se isso implicar estar ao lado da Esquerda ou contra a Direita, que implique. Se isso significar o contrário, que signifique. Se um governo — qualquer governo — tomar medidas que eu julgar acertadas, aplaudo sem hesitar; se considerar o contrário, critico com a mesma desenvoltura. Seja o governo de Esquerda, seja o governo de Direita, seja o governo o que for. Aliás, estou convencido de que qualquer pessoa medianamente sensata que não milita num partido político (para estes não deve ser fácil conviver com o que discordam) não terá dificuldade em reconhecer boas ideias na Esquerda e boas ideias na Direita, e que a mediocridade está democraticamente distribuída. Como também julgo suceder com a maioria dos que se interessam por política, há muito que a dita se tornou, para mim, um mal necessário. Não porque a considere, em si, uma coisa má, mas porque a prática política e seus protagonistas têm demasiados episódios que me desagradam. Mas, tal como o outro, também acho que a política é um assunto demasiado sério para ser deixado, apenas, nas mãos dos políticos. Não que eu pretenda mudar o Mundo — ou, sequer, a opinião de alguém. Falo de política porque o regime me concede esse direito, porque a política é um assunto que me interessa, e porque sim. Umas vezes estarei à Esquerda, outras à Direita, outras ainda em lado nenhum. Estarei, porém, do lado que julgar acertado, e cada vez mais com a sensação de que sou um privilegiado. Digo bem: um privilegiado. Afinal, quantos se poderão gabar disso? [Originalmente publicado em 12-8-2007]
LEITURAS DE VERÃO. O Verão e a falta de notícias costuma trazer para os jornais assuntos para os quais não há espaço o resto do ano, entre eles os chamados inquéritos de Verão, onde não faltam perguntas do género: «O que vai ler este Verão?» Pressupõe a pergunta que os portugueses aproveitam as férias para ler, actividade para a qual não terão tempo o resto do ano. Como é evidente, não é bem assim. Começo logo por mim, embora sem querer generalizar. As férias constituem o período do ano em que menos leio, e não me parece que eu seja excepção. Primeiro, porque nesse período tudo se conjuga para que eu não tenha tempo e disposição para leituras. Depois, porque as férias são uma espécie de regresso ao estado bruto, isto presumindo que alguma vez saí de lá. Há excepções, naturalmente, mas excepções são isso mesmo — e eu falo da regra. Quem lê nas férias lê o resto do ano, e quem não lê nas férias não lê o resto do ano. O resto não passa de conversa fiada destinada a impressionar os pategos nos tais inquéritos de Verão, e isto partindo do princípio que os pategos lêem os inquéritos de Verão. Aliás, uma vista de olhos pelos locais onde habitualmente se concentram os veraneantes chega e sobeja para constatar a evidência: tirando os tablóides e a imprensa cor-de-rosa, os portugueses não lêem. Quando muito levam para a praia uma «besta célere», mas à terceira página já estão pelos cabelos. Tão certo como dois e dois serem quatro, e não haver regra sem excepção. [Originalmente publicado em 21-7-2007]
FACTOS E SUPOSIÇÕES. O terrorismo islâmico passa a vida a repetir que odeia o nosso modo de vida; que a sharia é a única lei que deve ser respeitada; que pretende subjugar as mulheres e derrubar os «governos muçulmanos corruptos» (leia-se governos muçulmanos moderados); que os «infiéis» que não aceitarem a conversão devem ser massacrados sem dó nem piedade, pois a vida de quem não pensa como eles não tem qualquer valor; que não há inocentes ou culpados, mas «fiéis» e «infiéis»; que os verdadeiros muçulmanos anseiam pela morte, deles e da nossa; que, finalmente, o terrorismo é um instrumento legítimo quando se destina a atingir os fins a que se propõem. Perante estes factos (repito: factos), há quem justifique o terrorismo islâmico argumentando que estamos perante gente pobre e desempregada, desesperados que vivem em guetos onde são alvo de toda a espécie de humilhações (os 45 médicos muçulmanos que ameaçaram fazer explodir carros armadilhados e rebentar granadas nos EUA são, certamente, uma excepção); quem ache que o terrorismo islâmico se deve à globalização (hoje em dia não deve haver mal no mundo que não se deva à globalização); que o terrorismo se deve à invasão do Iraque (como se os atentados de 11 de Setembro não tivessem ocorrido antes da invasão do Iraque); que a nossa riqueza os humilha e condena à pobreza (a velha tese de que os ricos são os culpados pela existência dos pobres); que o uso da força nada resolve (nunca existiram as guerras que puseram fim a inúmeros conflitos, como sabemos); que na origem dos atentados terroristas por esse mundo fora está a luta do povo palestiniano (de que eles nunca quiseram saber e despudoradamente usam como pretexto); que a ofensiva contra o terrorismo tem tido como consequência a sua legitimação política (uma estupidez pura e simples); que os terroristas são moralmente equivalentes a quem os combate (esta confesso que não tenho palavras para comentar). Resumindo, os terroristas têm razões de sobra para fazerem o que fazem. Isto porque uns acreditam nas razões que eles defendem, outros porque acreditam nas razões de quem os justifica, outros ainda porque se recusam a acreditar nuns e noutros. Entretanto, continuamos alegremente a fingir que não ouvimos nem vemos — ou a não dar a importância devida ao que ouvimos e vemos. Pior: continuamos a desculpar o que não tem desculpa, enquanto eles agradecem e prosseguem a matança. É uma visão a preto e branco, bem sei. Mas os factos são o que são, e não deixam margem para dúvidas. [Originalmente publicado em 10-7-2007]
VACAS SAGRADAS. Tal como julgo suceder à maioria dos portugueses, sobretudo à maioria dos portugueses com hábitos de consumo dos chamados bens culturais, os subsídios estatais ou municipais às actividades culturais causam-me sentimentos contraditórios — e deixam-me muitas dúvidas. Por que razão há-de uma companhia de teatro receber dinheiros públicos se ninguém vê o que ela produz? Por que razão há-de um filme ser feito à custa de todos nós se tem bilheteira e, por isso, receita? Eis o que me custa entender. Pior: por que razão hão-de ser os poderes central e local a determinar (dando, ou não, subsídio) o que é bom e o que não é? Que competência têm os poderes central e local para decidirem em matéria de gosto? Tirando o património (monumentos, museus, etc.) e a língua portuguesa, tenho dúvidas que deve ser o Governo ou as autarquias a pagar as actividades culturais. Dir-me-ão que algumas actividades não existiriam caso não fossem os dinheiros públicos, facto para o qual não tenho — nem conheço — resposta cabal. Contraporei, contudo, que há actividades que não se perdia nada que desaparecessem caso o Estado deixasse de as pagar — além de que se presta a chantagens e a equívocos a ideia de que deve ser o Estado a dar de comer aos artistas. Perguntar-me-ão qual é, então, a solução. Responderei que não sei. Aliás, já vi quem levantasse as mesmas dúvidas, mas ainda não vi quem apontasse uma solução. Sei, no entanto, que qualquer tentativa de discutir o assunto é abortada logo à nascença, geralmente por quem vive à custa do «sistema», que naturalmente não está interessado em abrir mão da mesada ou dos privilégios. E é pena, porque o assunto devia ser discutido sem preconceitos nem tabus, até porque não há vacas sagradas. [Originalmente publicado em 19-6-2007]
MADELEINE. Contrariamente ao que ouço dizer, não estou seguro de que os media não estão a fazer o que devem no «caso Madeleine». Tirando os excessos, sobretudo os excessos das televisões, parece-me que os media deram (e continuam a dar) o espaço e a importância que o caso realmente merece. Como ainda há pouco dizia um director de jornal e um respeitado cronista (não digo quem porque não me recordo exactamente do que disseram), o assunto tornou-se incontornável. Mais: não se perceberia que o desaparecimento da criança não merecesse o destaque que lhe está a ser dado, incluindo pelos media de referência. Goste-se ou não da ideia, o assunto é notícia, e quando o assunto é notícia não adianta fingir que não é. É claro que um caso destes vende jornais e conquista audiências, mas vender jornais e conquistar audiências não é, por si só, um pecado. Pelo contrário: significa, também, que os leitores (ou telespectadores) se interessam pelo assunto, e não necessariamente apenas pelas piores razões. Está por demonstrar, também, que o excesso de exposição nos media de casos como o da criança inglesa prejudicam o desenrolar das investigações e/ou o seu desfecho. Se é verdade que pode acontecer num caso ou noutro, a exposição nos media, mesmo que excessiva, produz, por regra, o efeito contrário. Pela simples razão de que a investigação tende a correr melhor quando está sob vigilância dos media. Como, aliás, o caso presente demonstra. [Originalmente publicado em 29-5-2007]
O CANUDO. Não faz muito tempo que Vasco Pulido Valente escreveu que José Sócrates foi o melhor primeiro-ministro desde o 25 de Abril. Não tendo eu conhecimento bastante acerca do trabalho desenvolvido por todos os primeiros-ministros desde essa altura como ele certamente terá, não tenho como contestar. Mais: sendo Vasco Pulido Valente insuspeito de simpatizar com os políticos em geral e a esquerda em particular, não me custa aceitar as suas razões. Mas daí até se varrer para debaixo do tapete o episódio da licenciatura de José Sócrates, a pretexto de que o assunto não tem relevância e já devia estar arrumado, vai um abismo. É possível que alguns tenham aproveitado a ocasião para facturar politicamente, mas também é provável que outros não abriram a boca porque têm telhados de vidro. É possível que alguns tenham usado a situação para fazer julgamentos de carácter, mas também é provável que outros ficaram calados porque têm o mesmo problema. Mas o que não é sério é dizer-se que o assunto não tem importância, que os media exageraram ou promoveram uma campanha contra o primeiro-ministro, como se ainda ontem os media não tivessem sido acusados de se renderem às virtudes de José Sócrates. Aliás, o recente anúncio da Procuradoria-Geral da República, dando conta de uma investigação à licenciatura de José Sócrates, confirma que o assunto está longe de ser irrelevante. Tivesse o primeiro-ministro matado a questão logo à nascença, esclarecendo o que havia a esclarecer e assumindo o que haveria a assumir, e o assunto não tinha chegado onde chegou. Pior: desde o início que se notou um grande nervosismo e algum atabalhoamento na tentativa de desvalorizar o caso, coisas que só contribuíram para surtir o efeito inverso. Goste-se ou não da ideia, há razões de sobra para ir até ao fim com o episódio da licenciatura — e nenhuma para o encerrar. Não para saber se o primeiro-ministro tem o canudo, mas para saber se o primeiro-ministro disse toda a verdade sobre o caso. [Originalmente publicado em 8-5-2007]
SABICHÕES. Contas a pagar no final do mês obrigam-me a aturar sujeitos que sabem tudo e raramente se enganam. Começando pela língua portuguesa e acabando na origem do Universo, passando pela extinção dos dinossauros e o ADN da lombriga, tudo dizem saber na esperança de passarem por cultos, e ai de quem lhes ponha em dúvida a erudição. Dir-me-ão que o expediente se justifica com a necessidade de se defenderem, mas alguém devia explicar-lhes que, assim, ainda ficam mais vulneráveis, pois acabam por demonstrar o contrário do que pretendem — e a fazer figuras escusadas. Dir-me-ão, também, que a coisa se compreende, e compreender é meio caminho andado para desculpar. Mas nada disso resolve o meu problema. E o meu problema, insisto, é ter que os aturar demasiadas vezes, e nunca tive vocação para mártir. Em matéria de ignorância, basta-me a minha, e se tiver que ser prefiro os genuinamente ignorantes, para quem a questão da ignorância nem sequer se coloca. É que estes, ao menos, poupam-se a figuras tristes para a disfarçar, e não praticam a ignorância atrevida. E se há coisa que me faz subir a mostarda ao nariz é a ignorância atrevida, sem dúvida a pior das ignorâncias. [Originalmente publicado em 19-4-2007]
GRANDES PORTUGUESES. Antes de mais, é preciso não esquecer que Os Grandes Portugueses é um programa de entretenimento, pelo que os resultados da votação não podem ter a mesma leitura que uma eleição democrática. Isto para dizer que o desfecho do concurso da RTP — que ditou a vitória de Salazar — tem que ser visto à luz desse pressuposto, como teria que ser visto à luz desse pressuposto qualquer outro resultado que ditasse outro desfecho. Posto isto, é bom, também, que não se desvalorize em demasia a vitória do ditador. Afinal, a escolha dos telespectadores, mesmo dos telespectadores que terão levado a coisa mais a peito, dá que pensar, e parece-me um erro fazer de conta que o assunto não tem importância. Com certeza que a vitória de Salazar não é «uma catástrofe» ou uma «restauração política», como salientou Jaime Nogueira Pinto, muito menos a «apologia» ou o «branqueamento do fascismo», como disse Odete Santos. A vitória do ditador significa, sobretudo, que há quem não morra de amores pelas práticas políticas vigentes e quem olhe com desencanto para o regime saído de Abril, embora também se adivinhe que entre os votantes haja quem não sabe o que foi o salazarismo e quem tenha saudades desses tempos. Nada de especialmente preocupante, apesar de os mais exaltados nos quererem fazer crer do contrário. Aliás, o resultado não seria exaltante caso esta gente pudesse escolher o vencedor. [Originalmente publicado em 28-3-2007]
JORNALISMO E BLOGOSFERA. Anda por aí um mal disfarçado ressentimento de alguns jornalistas contra a blogosfera em geral e contra alguns bloggers em particular. Parece que não se pode criticar os jornalistas, e a haver críticas só podem vir do meio — ou de alguém com provas dadas no meio. Enquanto qualquer outro sector de actividade pode ser criticado por qualquer cidadão, aos jornalistas não se lhes pode tocar — ou só podem ser criticados pelos seus pares. Tudo isto porque os jornalistas não estavam habituados a ver escrutinado o seu trabalho antes dos blogues, pois a generalidade das críticas que até aí existiam eram as que se publicavam na secção dos jornais destinada às cartas ao director, onde o editor responsável pela secção publica o que entende e rejeita o que entende — e o jornalista tem sempre a última palavra. Aliás, quantas cartas ao director acabaram no lixo por conterem críticas ao jornal ou aos jornalistas? Para o bem e para o mal, as coisas mudaram radicalmente com o aparecimento da blogosfera, e os jornalistas tardam em habituar-se à nova realidade. Afirmam alguns que a blogosfera pretende tornar-se uma espécie de provedor dos media em geral e dos jornalistas em particular, pelo menos uma parte da blogosfera. Não sei se a realidade é o que parece, mas admitamos que é verdade, que existe uma parte da blogosfera que tem essa pretensão. Ora, onde está o mal? Qual é o problema de alguns bloggers fazerem marcação cerrada aos media e aos jornalistas? Não podem? Não será bom para o jornalismo haver quem questione o que se faz e como se faz? Onde estão as contra-indicações de tal prática? Mas há pior, muito pior. Há jornalistas que não se conformam com o facto de outros jornalistas escreverem em blogues, que alguém publique artigos de opinião com impacto fora dos media tradicionais, que os blogues possam ser um instrumento destinado a conquistar um lugar nos jornais, como se isso fosse um pecado. E sabem por que razões tudo isto sucede? Por razões tão simples como miúdas: porque temem que lhes tirem o lugar ou a importância, porque receiam que lhes exponham as lacunas ou a mediocridade, por dor de corno. Há outras razões menos comezinhas? Façam o favor de me dizer quais. [Originalmente publicado em 5-3-2007]
O PIOR CEGO. O Prós e Contras sobre os problemas da Justiça tornou claro que a dita não tem capacidade para se regenerar por dentro. Pior: não tem vontade. Foi isso o que disseram os juízes Rui Rangel e Eurico Reis no programa da RTP, ao afirmarem que a única forma de mudar alguma coisa na Justiça é provocar a mudança de fora, através dos jornais ou outros media, arriscando a pele e as carreiras os profissionais do sector que a isso se atrevam. Disseram os magistrados que não se compreende a falta de transparência e secretismo de alguns procedimentos, que a Justiça se distancia dos cidadãos e usa uma linguagem que ninguém entende, que a Justiça está caduca nos métodos e de costas voltadas para as novas tecnologias. De facto, a ser verdade o que dizem — e algumas razões são detectáveis pelo mais leigo dos cidadãos —, não se compreende, e ainda se compreende menos que o principal obstáculo às mudanças na Justiça seja a própria Justiça. Melhor: compreender, compreende-se, até porque já se viu esse filme mais vezes — o que é mais uma razão para mudar. Goste-se ou não da ideia, os problemas da Justiça dizem respeito a todos. Não podem, por isso, ficar circunscritos aos técnicos da Justiça, nem a pressão dos cidadãos ou dos media deve ser vista como um factor negativo. Pelo contrário. Tirando um caso ou outro, que até se revelou inconsequente (ou sem consequências de maior), a pressão «da rua» ou dos media tem-se revelado positiva, pois tem permitido avanços difíceis de imaginar caso não tivesse havido pressão. A Justiça não pode estar acima da crítica, venha ela de onde vier, tenha ela consistência ou não. É bom, portanto, que se habitue. É bom que saia da torre de marfim em que se encerrou, que se habitue a viver com o que há de melhor e pior no regime democrático, que comece a prestar contas do que faz e como faz. É bom, em suma, que acorde para uma realidade que só ela não vê. [Originalmente publicado em 16-2-2007]
ESMERALDA. Tirando alguns dos directamente interessados, não se vislumbra uma única pessoa que defenda a decisão do Tribunal de Torres Novas de condenar a seis anos de cadeia um pai adoptivo que cometeu o crime de amar uma criança abandonada pelos pais biológicos e que acolheu como filha. Mais: não se vê uma única pessoa que compreenda a decisão da Justiça, incluindo alguns magistrados, que não hesitaram em demonstrar indignação e assinar um documento onde se pede a libertação do sargento Luís Gomes. Que terão visto no processo os juízes de Torres Novas que mais ninguém vê? Não, não pretendo dizer que a maioria tem sempre razão, e até vejo com simpatia quem decide enfrentar o mundo se achar que o mundo não tem razão. Só que, no caso da Esmeralda, não se vêem argumentos substantivos que levem um tribunal a decidir da forma que decidiu. Pelo contrário, a decisão contempla os desejos de quem não quis saber da criança quando ela mais precisou e que agora reclama uma indemnização, e não se vêem salvaguardados os interesses da criança. Por mais que não tenha sido essa a intenção, por mais inatacável do ponto de vista jurídico que seja a decisão, foi isso o que aconteceu: o Tribunal de Torres Novas não colocou os interesses da criança acima do resto. Assim sendo, quem não compreende a decisão de um pai adoptivo preferir a prisão em vez de acatar a decisão da Justiça? Aliás, que pai verdadeiro não faria o mesmo por uma filha? Eu sei que o caso se presta a emoções, e que as emoções só atrapalham. Mas como não ficar indignado com uma decisão que pune quem protegeu a criança e premeia quem não quis saber dela? Como ficar indiferente ao destino de uma criança que a Justiça arranca aos braços de quem ama e a lança nas mãos de um desconhecido? [Originalmente publicado em 26-1-2007]
O ABORTO. Votaria a favor da despenalização do aborto caso pudesse votar no referendo de Fevereiro, mas com dúvidas. Tal como as tive há oito anos, em que votaria «sim» caso tivesse votado. Aliás, estou convencido de que qualquer cidadão tem dúvidas sobre o que está em causa, mesmo os mais acérrimos defensores do «sim» ou do «não», pois parece-me evidente que qualquer pessoa medianamente informada já percebeu que há argumentos a considerar de ambos os lados. Custa-me, por isso, entender o radicalismo de alguns, nomeadamente o radicalismo de quem se esperaria moderação e bom-senso. Será que a interrupção voluntária da gravidez é comparável ao terrorismo? Bento XVI acha que sim. E acha mais: a interrupção voluntária da gravidez constitui «um atentado contra a paz». Como se vê, o bispo de Roma escolheu a demagogia. Como já não sobejasse o que vai por aí, Bento XVI resolveu levar a questão para o grau zero da discussão. Dir-me-ão que o líder da Igreja Católica é um homem sério e um intelectual de respeito. Não duvido. Mas, como político (que também é), está longe de ser brilhante. Como, aliás, já o tinha demonstrado no discurso da Ratisbona, onde fez sangue escusadamente e sem proveito algum. E é pena que assim seja, pois Bento XVI podia aproveitar a ocasião para defender a sua ideia e enriquecer a discussão, e argumentos não lhe faltariam. Optando pela demagogia, o líder da Igreja Católica escolheu o caminho mais fácil. Pior: passou um atestado de estúpidos a todos quantos não pensam como ele, incluindo aos que estão com ele noutras batalhas mas acham a interrupção voluntária da gravidez o mal menor. [Originalmente publicado em 9-1-2007]
APITO DOURADO. A corrupção em Portugal está longe de ser um exclusivo da actividade desportiva, e a actividade desportiva até nem será das piores. Como está mais exposta que as outras e mexe mais com o coração que com a razão, a actividade desportiva está sob permanente escrutínio dos media, o que não sucede noutras actividades. Vasco Pulido Valente notou que a corrupção no futebol é «uma ínfima parte da corrupção geral do país», e que há negócios que fazem discretamente «operações tão complicadas que ninguém percebe» e «com que nunca sonhou o pior aldrabão do futebol». De facto, assim é. Mas isto não invalida que se ataque a corrupção no futebol, porque os erros e a impunidade de uns não podem desculpar os erros e a impunidade de outros. Importa, por isso, saber se é verdade o que diz Carolina Salgado no livro recentemente editado e o que vem nos jornais. Se é verdade, por exemplo, que o presidente do FC Porto mandou espancar um autarca. Se é verdade que Pinto da Costa foi avisado pela Judiciária de que a sua prisão estaria eminente, e que a sua residência iria ser alvo de buscas. Se é verdade que um magistrado lhe deu guarida no dia aprazado para a sua detenção. Muito mais do que arrear na ex-companheira de Pinto da Costa, importa saber se é verdade o que ela diz. Até lá, é bom notar que o livro já motivou a reabertura de um processo judicial que tinha sido arquivado por falta de provas, e outros desenvolvimentos igualmente importantes no caso Apito Dourado. Para um livro que alguns se esforçam por reduzir a mera porcaria, ignorando outras porcarias por ele denunciadas, convenhamos que não é pouco. Pelo contrário: é bem capaz de servir para meter uns quantos na cadeia e de ajudar a alcançar o que a impotência de uns e a cumplicidade de outros não tornou, ainda, possível. [Originalmente publicado em 18-12-2006]
LIXO. Passou praticamente despercebida a notícia de que uma fundação britânica resolveu premiar um artista com uns milhares de libras por este ter realizado um «trabalho artístico» que ficou conhecido (e célebre) por ter sido retirado de uma galeria por uma senhora da limpeza, que julgou tratar-se de lixo. O «trabalho artístico» — um saco de lixo com recortes de jornais, cartão e outros pedaços de papel — pertencia a Gustav Metzger, um «artista» alemão geralmente apresentado nos meios como sendo o inventor da «arte auto-destrutiva». Infelizmente, a fundação não premiou a senhora que resolveu pôr o lixo no dito, sem dúvida um gesto que fez mais pelo «trabalho artístico» de Metzger e pela «arte auto-destrutiva» em geral que a coisa agora premiada. Sim, o trabalhinho não está ao alcance de qualquer um, até porque já se viu que há o risco de haver quem tome aquilo à letra — embora o gesto da senhora configure uma interpretação tão legítima como qualquer outra. Mas é bom não esquecer, também, de que a suposta genialidade da «obra» corria o risco de passar despercebida caso não fosse o mal-entendido, além de que ainda ninguém demonstrou que a senhora da limpeza não percebe do assunto. [Originalmente publicado em 29-11-2006]
O EMBUSTE. Cada vez se torna mais evidente que as ameaças dos (aparentes) movimentos independentistas madeirenses são um embuste. Para começar, duvida-se que existam (o SIS revelou ao Correio da Manhã que «não existem movimentos independentistas credíveis»), pelo que o embuste é bem capaz de começar logo aqui. Depois, quem tem medo dos movimentos independentistas da Madeira? Tirando os madeirenses (suponho), que seriam os mais prejudicados caso a Madeira optasse pela independência (volto a supor), provavelmente ninguém. Ora, é precisamente por estas razões que eu gostaria de ver o assunto discutido. Gostaria de ver discutido, sobretudo, o que andam a fazer alguns politiqueiros da Madeira, que não se coíbem de agitar o fantasma da independência do arquipélago a pretexto de que ele existe. É que, se ele existe, está claro que foram eles quem o desenterrou (para não dizer que foram eles quem o criou), obviamente com o pretexto do costume: chantagear o Governo do Continente e, por arrasto, sacar mais uns dinheiros aos portugueses que não vivem na Madeira. Espera-se, portanto, que a coisa morra com a aprovação da Lei das Finanças Regionais, que se espera, também, ver aplicada conforme o previsto. Mas, se não morrer por aqui, seria bom que não lhes passe pela cabeça vir lavar as mãos em público, a pretexto de que nos avisaram, porque se dispensa o fedor do exercício e não somos inteiramente estúpidos. É que qualquer pessoa medianamente informada sobre o assunto não ignora que os ditos cavalheiros são os primeiros responsáveis caso isso suceda, a começar pelos que lamentam pela frente e incentivam por trás, pelos politiqueiros de meia tigela que nem coragem têm para o mais elementar: dar a cara por aquilo que pensam. [Originalmente publicado em 9-11-2006]
CRIME E CASTIGO. As sanções económicas e militares impostas pela ONU à Coreia do Norte poderão resultar na morte de milhares de pessoas, advertem organizações humanitárias. Como o regime de Kim Yong-il já era alvo de sanções antes do ensaio nuclear, e como já era o povo quem pagava as consequências daí resultantes, é mais que certo que quem já vive na miséria ainda vai ficar mais miserável, enquanto o regime de Pyongyang — que as medidas da ONU pretendem atingir — não sofrerá o mais leve beliscão. O povo norte-coreano prepara-se, assim, e uma vez mais, para sofrer as consequências dos actos de um regime que não escolheu nem pode mudar, por mais que não tenha sido essa a intenção da ONU. Perguntar-me-ão qual é, então, a melhor solução. Responderei de forma simples e directa: não sei. O que sei é que as sanções se revelam perversas, e de eficácia mais que duvidosa. Aliás, o ditador Kim Yong-il não tem dúvida de que a resolução da ONU foi «uma declaração de guerra», e já se anuncia um segundo ensaio nuclear na Coreia do Norte. Pode ser que esteja a fazer bluff, pode ser. Mas, por aquilo que se vê, há razões para desconfiar. É que Kim Yong-il deve ter aprendido alguma coisa com Mahmoud Ahmadinejad, que vai levando a água ao seu moinho apesar de condenado por toda a gente. Aliás, o presidente do Irão não deixará de encarar o episódio norte-coreno como um estímulo para outros voos, além de aproveitar a ocasião para subir a parada. Ele e os fregueses que se seguem, pois a Agência Internacional de Energia Atómica acaba de anunciar que 30 países estão em condições de desenvolver armas nucleares. É o que dão os castigos que, na prática, não o são. Excepto, como disse, para os miseráveis do costume. [Originalmente publicado em 19-10-2006]
ISLÃO MODERADO. Estou longe de conhecer o Islão, mas não me custa acreditar que o Islão seja uma religião de paz. Acredito, também, que os muçulmanos estão a ser olhados com desconfiança, embora já me pareça um exagero falar-se de islamofobia. Mas tenho uma dúvida que ainda não vi esclarecida: o que tem feito o «Islão moderado» para se demarcar do Islão radical? Se os «moderados» são realmente a maioria — e eu estou convencido de que são a maioria —, por que não se ouvem? O Corão condena actos de violência em nome de Maomé? Os radicais não representam o verdadeiro Islão? O Islão é uma religião de paz? Provavelmente. Mas também os radicais citam o Corão e invocam Maomé quando cometem atrocidades, incluindo atrocidades contra quem «comete o crime» de não pensar como eles e, suprema ironia, contra os próprios muçulmanos. Compreende-se que o Corão se preste às mais variadas leituras, que sirva para defender uma coisa e o seu contrário, e que todos lá possam encontrar o que mais lhe convém. Mas isso não é o essencial. O essencial é combater quem nos quer matar, e nada melhor para combater quem nos quer matar que os «moderados», até porque serão eles os primeiros beneficiados caso o combate for bem sucedido. Enquanto isso não acontecer, enquanto os «moderados» permanecerem de braços cruzados e fingirem que o assunto não lhes diz respeito, enquanto não se demarcarem claramente do Islão radical — como vamos distinguir uns dos outros? Convenhamos que não é fácil. Não é fácil para nós, nem será fácil para eles. De maneira que seria bom começarem por demonstrar, com actos, que são o que dizem, e não o que parecem. Enquanto isso não suceder, assiste-nos o direito de os grafar entre aspas, de duvidar que existam. E quer-me parecer que o equívoco — a haver — não interessa a ninguém. Ou não é assim? [Originalmente publicado em 28-9-2006]
EVIDÊNCIAS. A passagem do quinto aniversário do 11 de Setembro tornou-se motivo para verter lágrimas de crocodilo e arrear no presidente americano. Curiosamente, do terrorismo e seus motivos é coisa que não se fala, e quando se fala geralmente condena-se com uma mão, e desculpa-se com a outra. Que os terroristas continuem a tudo fazer para matar o que eles designam por infiéis, de preferência aos milhares, é coisa que não sucederia caso não fosse a política de Bush e os imbecis dos americanos. Que o fundamentalismo islâmico continue a insistir que a vida de um descrente não vale nada ou que a lei islâmica é a única que deve existir, é coisa que não sucederia caso não existisse o problema do Médio Oriente e, claro, Israel. Evidentemente que a administração Bush cometeu erros, o primeiro de todos resultante de ter agido. Como é sabido, quem age arrisca-se a cometer erros, e os americanos cometeram vários. Mas atacar apenas a administração Bush quando se fala de terrorismo, não condenando os actos terroristas e os motivos que os sustentam, é pouco sério ou ignorância pura. Mais: é dar razão aos terroristas, porque passa a ideia de que o terrorismo resulta dos erros de quem o combate e não de outros motivos. Aliás, é por estas e por outras que eu, nesta matéria, estou ao lado de Bush, apesar dos erros e de nem sempre concordar com os métodos utilizados para combater o terrorismo. É que, mal ou bem, os americanos combatem o terrorismo, apesar de as evidências demonstrarem que os alvos do terrorismo islâmico não são, apenas, os americanos, mas toda a cultura ocidental, todos os que não pensam de uma certa maneira, incluindo quem os compreende e desculpa. Claro que quem não pensa desta maneira não é estúpido ao ponto de não ver a evidência, mas dar razão aos americanos, no terrorismo ou noutra coisa qualquer, é coisa que não lhes passa pela cabeça. E é pena, porque essa atitude só fortalece o terrorismo, por muito que não seja essa a intenção e lhes custe a engolir. Enquanto não percebermos que o terrorismo é infinitamente mais importante de que a forma como se combate, enquanto não assentarmos no que está em causa, enquanto fingirmos que isto é um problema dos americanos, enquanto acreditarmos que a coisa se resolve uma vez resolvido o conflito do Médio Oriente, será difícil haver progressos no combate ao terrorismo. É que eu não tenho dúvidas de que é cada vez mais por esta razão que o combate ao terrorismo não teve, até agora, os resultados desejados, como não tenho dúvidas de que, mais tarde ou mais cedo, todos acabaremos rendidos à evidência. Mas já tenho dúvidas de que, quando isso suceder, ainda estejamos a tempo de travar o processo, mesmo adoptando medidas mais drásticas das que se anunciam ou já foram tomadas. [Originalmente publicado em 14-9-2006]