MOURINHO. Independentemente do que acontecer daqui para a frente, José Mourinho terá o seu nome ligado a uma época de ouro do FC Porto. Ele foi a conquista da Taça UEFA; ele foi o título da Superliga; ele foi a Taça de Portugal; ele só não foi a Taça Intercontinental porque não calhou. Mas nada disto o coloca a salvo de críticas, e não falo de críticas miúdas que resultam da dor de corno ou da clubite aguda. Não é novidade para ninguém que Mourinho é arrogante, fala como se tivesse o rei na barriga e não hesita em recorrer à canelada sempre que aí vir proveito — como o último Sporting-Porto veio, aliás, demonstrar. Tudo práticas que eu abomino e não me perturbariam por aí além caso Mourinho não falasse a toda a hora nas televisões, a propósito de tudo e de nada. Valha a verdade que não é só ele que fala demais. Tirando um ou outro, é toda a clique da bola que fala demais, e não só nas televisões. Não que eu seja contra a bola ou o desporto em geral — e até vivo disso. Mas pela simples razão de que passamos a vida a ouvir a mesmíssima coisa da boca dos mesmíssimos personagens durante anos a fio. Como não bastasse, raramente vão além do lugar-comum, do paleio de circunstância e do pontapé no enquadramento. Além das caneladas na gramática, em que alguns demonstram ser mais exímios que no pontapé na bola. Concordo que não haverá muito mais a dizer além do trivial. Mas, nesse caso, falem menos. Até porque, como diz o ditado, quem muito fala, pouco acerta. [Originalmente publicado em 3-2-2004]
O FADO. Confesso que sou um amante de música, mas não um amante de fado. Quaisquer dois ou três fados seguidos, mesmo os que dizem ser os melhores, chegam e sobram para as necessidades. Se for fado de Coimbra, ainda vá que não vá. Se for fado de Lisboa, um quase sempre é demais. Mas o que me custa mesmo a engolir são os que pensam que são precisos especiais conhecimentos (ou será um dom?) para se apreciar o fado, como se o fado exigisse especiais conhecimentos para ser apreciado. Ora, é preciso que se diga que o fado não é grande coisa em termos musicais. O fado não é só voz ou poema, como às vezes nos tentam fazer crer. Antes de mais, o fado é música — e como tal deve ser tratado, entendido, apreciado. Eu sei que um bom poema e uma boa voz fazem toda a diferença, mas nem por isso o fado deixa de ser pobre musicalmente — além de repetitivo, óbvio, previsível. A letra e a voz mudam, mas não muito. A música, nunca. Ouvem-se dois ou três fados e fica-se com a sensação de que se esteve a ouvir sempre a mesma música. Isto para já não falar dos maneirismos que rodeiam a interpretação, que os amantes do fado apreciam e eu embirro particularmente. Depois, os intérpretes também não ajudam. Porque será que os fadistas têm tanta relutância em assumir-se como tal? O que distingue um fadista de outro intérprete qualquer? Mistérios que me cheiram a pretensiosismo — ou mesmo a superioridade. Ora, a vida ensina-nos que os melhores são humildes, seja na música ou na vida. Naturalmente que há excepções, mas não é de excepções que reza a história. [Originalmente publicado em 19-1-2004]
DROGA. Miguel Sousa Tavares defende que o Estado deve fazer «uma espécie de nacionalização do tráfico de drogas duras» de modo a «concorrer com o mercado» na venda das ditas «a preço de custo e sem adulteração». Mas com condições: «que os compradores sejam portadores de documento emitido pelas autoridades que os reconheça dependentes; que a venda se faça sob vigilância médica e assistência psicológica e social em locais determinados para o efeito; e que, paralelamente, sejam agravadas as penas para o tráfico de droga clandestino». Ora, com o devido respeito, eu acho um perfeito disparate. Tal como Miguel Sousa Tavares, há anos que também eu defendo a legalização do consumo de drogas, mesmo o consumo das drogas duras. Mais: há anos que defendo que a droga deve ser livremente vendida como outro produto qualquer. Não por estar convencido de que é a melhor solução, mas porque me parece a menos má. A venda livre de droga tem enormes vantagens: passa a ser mais barata e de melhor qualidade, e paga impostos em vez de os consumir. Acaba, ainda, com o mito do fruto proibido, e com a violência associada ao tráfico e consumo. Além de que não me parece que deva ser o Estado a vender droga, mesmo a pretexto de um controlo de qualidade e de a vender a preço de custo. Tal medida mais não seria de que uma forma de o Estado substituir o traficante — além de incentivar o consumo do que condena. Quanto à repressão, está mais que provado que nenhuma forma de repressão impediu o tráfico de droga. Ir por aqui, é continuar a gastar rios de dinheiro e não resolver coisa alguma. Além de que os primeiros beneficiados com a repressão ao tráfico são, precisamente, os traficantes. [Originalmente publicado em 5-1-2004]
O BRASIL. Tirando os actores das novelas quando visitam Portugal, onde confessam ter parentela algures na província, os brasileiros têm um problema com os portugueses. Não me refiro aos brasileiros que integram o chamado «povão», onde o problema seria mais fácil de explicar, mas às elites que escrevem na imprensa. Contrariamente ao que acontece com os portugueses — que tantas vezes se referem às proezas dos brasileiros como se das suas se tratasse —, os brasileiros só falam dos portugueses... para dizer mal. Exemplos? Há inúmeros. E não é necessário recorrer às «piadas de português», algumas tão engraçadas como certeiras. Recordo-me que no Europeu de Futebol de 2000 — de que a elite dos cronistas brasileiros falou abundantemente e onde Portugal atingiu as meias-finais — raramente vi um comentário acerca da nossa selecção. Mais recentemente, quando o Real Madrid venceu a Taça Intercontinental, a imprensa brasileira justamente destacou o desempenho de Ronaldo, que marcou um golo decisivo. Depois acrescentou que Ronaldo joga ao lado de estrelas como Roberto Carlos, Zidane e Raul, e de Figo — também ele um dos homens do jogo — nem sinal. Mas não é só no futebol que os brasileiros têm um problema. Podia citar outros casos, variadíssimos outros. Espanta-me, por isso, ouvir o nosso ministro da Cultura dizer, durante uma recente viagem ao Brasil, que é necessário «acabar com a imagem estereotipada de Portugal que existe entre determinadas camadas da população brasileira», porque «o Portugal de hoje nada tem a ver com a imagem que muitas pessoas conheceram através dos imigrantes portugueses que rumaram ao Brasil no século XIX ou no princípio do século XX». Porque isto quer dizer que o nosso ministro não está a par do que se passa — ou finge não estar a par do que se passa —, porque não é verdade que a má imagem de Portugal no Brasil seja apenas no «povão», como julgo que ele pretendeu dizer quando se referiu a «determinadas camadas da população brasileira». A má imagem de Portugal está, também, nas elites, como qualquer leitor da imprensa brasileira saberá. E todos sabemos que o que pensa o «povão» não está dissociado do que pensam as elites. [Originalmente publicado em 9-12-2003]
HISTÓRIAS. A história de Jessica Lynch tem várias versões. Mesmo sem ter acompanhado em pormenor, conheço, pelo menos, três: a que foi contada pela tropa americana no calor da refrega; a que foi contada pelo Washington Post após exaustiva investigação; e, agora, a que foi contada em livro pela própria. Qual delas é a verdadeira? Provavelmente um pouco de todas elas; provavelmente nenhuma em especial. O facto de Jessica Lynch resolver contar em livro a sua própria versão não é, por si só, garante de que a história seja verdadeira. Além de outros factores, é bom ter presente que um livro do género é um grande negócio (recorde-se que Jessica embolsou um milhão de dólares de adiantamento), e é mais que provável que a primeira ideia da donzela tenha sido fazer dinheiro. Se o expediente nada tem de condenável, é bom não esquecer este pormenor. Devo dizer que a versão posta a correr pela tropa americana não me convence, como não convence ninguém. Mas convém não andar para aí a dizer que a versão que Jessica decidiu contar é a verdadeira história, até porque há partes que diz não se lembrar. Procurar desfazer-se do rótulo de «heroína de guerra» em que a terão querido tornar, pode não ser um gesto tão desinteressado assim. Afinal, nada garante que tudo isso não passe de uma mera jogada de «marketing» destinada a torná-la em anti-heroína — ou numa heroína ao contrário, o que vai dar ao mesmo e também rende os seus proveitos. É uma mera possibilidade, mas quem quer fazer juízos de valor — e há inúmeros candidatos a fazer juízos de valor — tem que contar com essa possibilidade. Se a história contada pela tropa americana é condenável e não convence ninguém, a versão de Jessica também não esclarece a totalidade dos factos e levanta algumas dúvidas. De modo que seria recomendável um pouco mais de prudência e menos juízos apressados, porque julgar a mentira com meias-verdades é meio caminho para outra mentira. [Originalmente publicado em 4-12-2003]
LER OU NÃO LER. Sempre que caio na asneira de comentar um livro com alguém que não tem hábitos de leitura, lá vem a desculpa de sempre: gostaria muito, mas não tenho tempo para ler. Porque toda a gente pretensamente culta acha que é importante ler, não ler só mesmo com uma boa desculpa. E uma boa desculpa será a falta de tempo. Ora, acontece que não é. Porque quem não lê por falta de tempo tem tempo para outras coisas — tempo para telenovelas, tempo para reality shows, tempo para saber quem dorme com quem. Resumindo: tempo para o que interessa. De modo que seria bom que esta gente não perdesse tempo com desculpas, ainda por cima desculpas tão mal-amanhadas, até porque ninguém precisa de pedir desculpa por não ler. Além de que desculpas do género só convencem quem, como eles, tem tempo para tudo menos para ler, e a ideia não é bem essa. Pior só quando se julgam cultos e tentam comportar-se como tal. Como não conseguem, acabam a exibir aquele ar de pseudo-eruditos. E não há nada pior que os pseudo-eruditos para me darem cabo dos nervos. Mil vezes prefiro quem está convencido de que ler é coisa de mulheres e faz mal à vista — o que até tem o seu quê de verdade. Mil vezes prefiro quem pensa que ler é coisa de gente esquisita ou mesmo anormal — o que nem é tão errado assim. É que estes têm o mérito de serem verdadeiros, enquanto os outros não são eles nem quem julgam ser. Muito menos por quem tentam passar. Como só enganam quem não pretendem enganar, os primeiros enganados são os próprios. Não digo que não tem a sua graça, mas já me cansei desta anedota. [Originalmente publicado em 19-11-2003]
O BENFICA. O Benfica foi a votos para escolher aquele que vai ser, nos próximos três anos, um dos homens mais influentes do país. Apesar do descalabro desportivo e financeiro que o clube atravessa, as últimas eleições demonstraram que a presidência do clube da Luz continua a ser um lugar apetecível e a levar alguns a fazer tudo — ou quase tudo — para a alcançar. Até as boas acções, como diria Eça. Luís Filipe Vieira, presidente do futebol profissional «encarnado» que fez fortuna no negócio dos pneus, prometeu apostar na formação, construir um centro de estágio, manter e reforçar o actual plantel e transformar o Benfica num dos maiores clubes do Mundo. Jaime Antunes, economista e empresário que se tem distinguido como um dos opositores sistemáticos às várias direcções do clube lisboeta e para quem Valentim Loureiro é «uma referência», prometeu uma gestão profissional e dinheiro para comprar jogadores, nomeadamente Caneira e dois brasileiros (Denilson e Carlos Alberto). Guerra Madaleno, advogado e empresário actualmente a contas com a justiça (é acusado de ser co-autor de nove crimes de burla qualificada e associação criminosa), prometeu investir 75 milhões de euros e reforçar a equipa de futebol com uma mão cheia de jogadores de renome internacional (Rui Costa e Rivaldo, entre outros), duplicar o número de associados e investir nas chamadas modalidades amadoras. Tirando a demagogia barata e a mais pura mentira, os candidatos prometeram toda a espécie de êxitos desportivos e financeiros. Em duas palavras, o paraíso. Com 90 e tal por cento dos votos — um resultado histórico —, Luís Filipe Vieira arrasou a concorrência. Curiosamente, o candidato que menos prometeu. Resta saber se ganhou o Benfica. [Originalmente publicado em 3-11-2003]
CULPADOS E INOCENTES. Depois de tudo o que tem sido dito e do que tem ficado por dizer, continuo sem saber se a Justiça errou ao decretar a prisão preventiva de Paulo Pedroso ou se errou ao decretar a sua liberdade. Tenho dúvidas, também, que a Justiça está a funcionar (bem), como agora se diz a propósito de tudo e de nada, pois isso significa que dantes não funcionava (bem) e eu não sei se era assim. Antes de mais, há uma coisa que não consigo entender: porque haveria um juiz de decretar a prisão preventiva de um cidadão que lhe vai causar grandes dissabores — além de «um terramoto político» —, a não ser por razões muito fortes? Porque haveria um juiz de, na dúvida, optar por medida tão drástica (a prisão preventiva) quando dispõe de outras mais leves? Evidentemente que eu não acredito que o dr. Paulo Pedroso tenha sido preso — ou continue arguido — sem razões muito fortes. Também não creio na tese da cabala — ou maquinação, como agora se diz —, que os socialistas se fartaram de repetir. Não, não faço parte dos que desejam que os mais fortes devam ser condenados só por serem mais fortes, embora entenda quem assim pensa e seria bom que a Justiça mostrasse que também castiga os mais fortes. O que eu espero é o que espera qualquer cidadão: que sejam condenados os culpados, sejam eles fortes ou não. O que eu espero — e desejo — é que a Justiça trate Paulo Pedroso do mesmo modo como trataria qualquer outro cidadão. Não sei se o procurador-geral da República tem agido bem em todo o processo, mas concordo quando ele diz que «o Estado de direito só será uma realidade neste país quando um político for tratado perante a justiça como um simples cidadão». E também quando ele chama a atenção para aquilo que considera um atentado ao Estado de direito, pois «sempre que neste país um político está a contas com a justiça há uma tendência para politizar a justiça». É bom que se diga que não há qualquer indício de que a acusação a Paulo Pedroso tenha razões políticas. Políticas têm sido as pressões de que a Justiça tem sido alvo, nomeadamente por parte dos órgãos mais altos do Estado, que deveriam ser os primeiros a não o fazer. E como custa a crer que a Justiça seja surda e cega às pressões dos mais altos representantes do Estado — como, de resto, os últimos desenvolvimentos dão a entender —, é de temer o pior. Sem dúvida que mais vale um criminoso à solta do que um inocente na cadeia. Mas falhar no caso da pedofilia seria trágico para as vítimas e o descrédito total na Justiça. Além de que abriria caminho para que as vítimas se transformem em culpados, como já há quem ameace fazê-lo. [Originalmente publicado em 17-10-2003]
ÁRBITROS. O presidente do Vitória de Guimarães resolveu disparar contra os árbitros. Porque os árbitros espoliaram o Vitória em quatro jogos seguidos, deixando por assinalar não sei quantos penalties e um golo limpo. E reclama uma intervenção do Governo, porque é preciso pôr cobro a esta vergonha. Se caso for, contratem-se árbitros espanhóis. O futebol português é assim: sempre que as coisas não correm bem — e o Vitória perdeu os cinco últimos jogos —, arranjam-se bodes expiatórios. E os bodes expiatórios são sempre os mesmos: os árbitros. Porque, como agora é moda dizer-se, os árbitros são o elo mais fraco, porque eles são quem menos ganha, porque as pressões dão resultado. É um cenário conhecido e que se repete todos os anos: hoje foi o Guimarães, ontem foi o Sporting, amanhã será o Benfica. Com certeza que nem todos os árbitros são competentes e sérios, embora toda a gente tende a julgá-los competentes e sérios se nos favorecem e o contrário se nos prejudicam. Além de que nos esquecemos com frequência de que os árbitros são obrigados a ajuizar em segundos situações complicadas que a clubite insiste em ver da maneira que lhe interessa, mesmo após as televisões terem demonstrado o contrário. Culpar sistematicamente os árbitros por aquilo que se passa de mau nos campos — quantas vezes um mero expediente destinado a desviar a atenção de problemas bem mais complicados —, não só é pouco sério como contribui para adensar o clima de suspeição generalizada de que o futebol português tarda em livrar-se. Além de que é bom não esquecer que esse clima tem pouco a ver com os árbitros, e quase tudo com os dirigentes de clubes e órgãos que mandam na bola. De modo que seria bom que estes senhores começassem por assumir as culpas que lhes cabem, e cabem-lhes mais culpas do que possa parecer. Até lá, o futebol português continuará a ser uma casa em que todos ralham e ninguém tem razão. [Originalmente publicado em 3-10-2003]
PRIMÁRIO. Tudo leva a crer que o famoso «Roteiro para a Paz», patrocinado pelos Estados Unidos, União Europeia, Rússia e Nações Unidas, foi um fracasso. E um fracasso porquê? Porque «os patrocinadores do dito roteiro, Washington à cabeça, não mostram vontade nem interesse em exercerem a necessária pressão política sobre (...) Israel», diz Vital Moreira na sua última crónica no Público. Reparem bem: não foram a União Europeia, a Rússia ou as Nações Unidas — ou todos eles juntos — que falharam: foram os Estados Unidos, e só os Estados Unidos. Ora, se isto não é anti-americanismo primário, então eu não sei o que é anti-americanismo primário. Aliás, o sr. Vital não se limitou a destilar o habitual anti-americanismo. O ilustre senhor aproveitou o conflito israelo-palestiniano para dar largas ao seu ódio contra os judeus, também ele a roçar o irracional, atribuindo todas as culpas a Israel e nenhuma aos palestinianos. O que o sr. Vital não disse é que tem havido cedências por parte de Israel e nenhuma da Autoridade Palestiniana, e que o abominável Sharon foi o primeiro chefe de um governo israelita a defender a criação de um estado palestiniano. O que o sr. Vital não disse é que a Autoridade Palestiniana nunca previu a existência do Estado de Israel na região. O que o sr. Vital não disse foi que o moderado Mahmud Abbas não se demitiu por causa de Israel ou dos Estados Unidos, mas por causa do sr. Arafat, que não hesitará em liquidar o sucessor do primeiro-ministro caso desobedeça às suas ordens. E quem esconde verdades que não lhe interessam não merece respeito. Muito menos o respeito de quem, discordando, reconhece o direito de quem pensa o contrário, mesmo que se trate de disparates grosseiros e mal-intencionados. Além de que, sobre a questão judaica, cansei-me de quem defende a «solução final» mas não tem coragem de assumir. [Originalmente publicado em 19-9-2003]
CHOVER NO MOLHADO. Miguel Sousa Tavares não se cansa de sacudir o rótulo de anti-americano. É um exercício que se compreende, embora tenha o seu quê de curioso. Para não variar, começa com a justificação do costume: não se pode confundir a política da administração Bush com a América. A seguir, lá vêm os argumentos também já conhecidos: «Bush é apenas um servidor dos profetas da extrema-direita americana, que acreditam que a América é o modelo universal e definitivo das virtudes políticas e morais a quem Deus cometeu o encargo de exportar a sua doutrina»; a América é «dirigida por um presidente notoriamente inculto e ignorante, incapaz de compreender ou de se interessar por qualquer coisa para além dos dogmas básicos de vida em que acredita qualquer camionista do "cowboy country"»; «saber que o Iraque não tem armas de destruição maciça e mentir deliberadamente sobre isso para justificar uma guerra de conquista não é apenas imoral, é perigoso». Enfim, nada que seja novo e que já não tenha dito e repetido, mas nem por isso a última crónica no “Público” merece passar sem reparo. Para começar, dizer-se de Bush-filho que é «um servidor dos profetas da extrema-direita americana» não passa de um gesto gratuito, e só faz aumentar a minha estima por George W. Bush — e eu nunca nutri especial simpatia por George W. Bush. Depois, essa estória de que Bush é «inculto» e «ignorante» faz-me sorrir. Além da arrogância intelectual que uma afirmação desta natureza não deixa de pressupor, é bom lembrar que também Reagan foi considerado «ignorante» e «senil», e nem por isso deixou de ser considerado um dos melhores presidentes americanos. Quanto às famosas armas de destruição maciça, também nada de novo: uma vez que o presidente americano sabia que não havia armas de destruição maciça, o argumento não passou de um mero expediente para «justificar uma guerra de conquista». E baseada em quê esta «evidência»? Invariavelmente nos argumentos do costume: suposições e coisa alguma. Miguel Sousa Tavares defende que seria interessante recuperar alguns textos anteriores à guerra e confrontá-los com a realidade dos factos. Ora, aqui está um ponto em que estamos de acordo. Sem dúvida alguma que seria interessante confrontar alguns textos anteriores à guerra — e não só anteriores à guerra — com a realidade dos factos. Que tal começar pelos textos de Miguel Sousa Tavares? [Originalmente publicado em 5-9-2003]
CRUZADAS. Depois de ter proibido o fumo em tudo o que é sítio e de ter transformado os fumadores numa espécie de criminosos, a cruzada americana contra o tabaco há-de levar à proibição de fumar nas ruas. Tudo porque o tabaco faz mal à saúde, e porque as seguradoras dizem gastar rios de dinheiro com doenças e mortes por causa do fumo. Há anos que esta cruzada passa pela proibição de publicitar os cigarros em tudo o que é lado, mas agora o cerco aperta-se mais. Tudo isto perante a passividade de toda a gente, especialmente dos fumadores, enquanto os pronto-a-comer continuam a publicitar os seus produtos por todo o lado e por todos os meios, sobretudo junto dos mais indefesos (as crianças), sem que alguém se incomode com isso. Mas se alguém se incomoda e decide agir, logo aparece quem se indigne com os processos às multinacionais do junk food, alegando que o expediente mais não tem por propósito que extorquir uns milhões. Ora, se é certo que isso não deixa de ser verdade, não é menos verdade que só com métodos destes se consegue chamar a atenção para o problema do junk food e da publicidade dirigida às crianças, porque a publicidade dos pronto-a-comer dirigida às crianças é infinitamente mais grave que qualquer campanha para promover o tabaco. E estou à vontade para dizer o que digo: sou ex-fumador, e toda a gente acusa os ex-fumadores de serem os piores inimigos do fumo. Além de ninguém me tirar a suspeita de que a indústria do pronto-a-comer tratará de se converter à comida saudável uma vez sujeita a pressão. [Originalmente publicado em 21-8-2003]
FOGO POSTO. Se bem me lembro, há anos que as autoridades nos garantem que foram reforçados os meios de combate aos incêndios, que jamais se repetirão as catástrofes dos últimos anos, que está tudo a postos para o que der e vier. Uma vez chegado o Verão, dois ou três dias chegam e sobram para se provar precisamente o contrário: milhares e milhares de hectares de floresta são consumidos pelo fogo num abrir e fechar de olhos perante a aparente impotência de tudo e de todos. Pior: apesar dos meios que garantem existir — e salta à vista que foram reforçados nos últimos anos —, os incêndios continuam a aumentar. Paradoxal? Nem por isso. Não é verdade que há demasiados interesses à volta dos incêndios? Das companhias de aeronaves às empresas especializadas no ramo, passando pelos madeireiros e pelos próprios bombeiros, há um sem número de gente que tem tudo a ganhar com os incêndios. Assim sendo, qual é a solução? A resposta é: não sei. O que eu sei é que isto valia uma profunda investigação. Pelo menos assim se tiravam a limpo as suspeitas que por aí correm à boca pequena, e a Judiciária já disse que 30 por cento dos incêndios tem origem criminosa. Em última instância, proteger-se-ia o bom-nome de quem está inocente, nomeadamente o bom-nome dos bombeiros, cuja credibilidade já viu melhores dias. Dir-me-ão que não será apenas por esta via que o problema se resolve, porque os factores que levam aos incêndios são de variadíssima ordem. Pois seja. Mas é urgente começar por algum lado. [Originalmente publicado em 6-8-2003]
SER OU NÃO SER. Gostam de música clássica — mas só ouvem música clássica quando vão a concertos onde é de bom-tom ir e onde passam o tempo a olhar para o relógio à espera que aquilo acabe. Gostam de ler, sobretudo best-sellers e autores premiados — mas os reality shows não lhes deixam tempo para ler. Gostam de se fotografar frente aos ex-líbris deste mundo — para que possam provar aos parolos como eles que estiveram lá. Gostam de conversas «eruditas» — mas sempre que lhes toca abrir a boca só dizem lugares-comuns. Gostam do politicamente correcto e do pensamento único — porque o politicamente correcto e o pensamento único não são fáceis de contrariar e eles fogem da discussão como o diabo da cruz. Gostam de desvalorizar quem faz coisas que não entendem ou não conseguem fazer — porque não admitem que haja alguém que saiba coisas que eles não sabem e que faça coisas que eles não sabem fazer. Gostam de ver os amigos alcançar o sucesso — mas tratam de os menorizar mal lhes viram as costas. Gostam de lançar a calúnia sobre quem tem sucesso — porque a mediocridade os impede de admitir que haja alguém com sucesso por mérito próprio. Gostam de se rodear de medíocres — porque assim se sentem menos medíocres. Gostam de toda a espécie de acontecimentos mundanos — onde compram e vendem sorrisos e frases de circunstância. Gostam dos jornais ou revistas de referência — mas só lêem os tablóides e a imprensa do coração. Está bom de ver que a vida é boa para esta gente. Afinal, estas são as chamadas pessoas normais (ou normalizadas, como queiram). Deve ser por isso, aliás, que eu sempre me senti anormal. Como diria Sérgio Godinho, pode alguém ser quem não é? Evidentemente que não pode. Mas já lá vai o tempo em que era melhor sê-lo do que parecê-lo. [Originalmente publicado em 24-7-2003]
TRABALHO POLÍTICO. Depois de ter ameaçado os senhores deputados com um «Código de Conduta» e ver os discursos sempre que estes se desloquem ao estrangeiro em representação da Assembleia da República, Mota Amaral voltou a ser um desmancha-prazeres. Desta vez porque não viu motivo que justifique as faltas de três dezenas de deputados que decidiram baldar-se aos trabalhos parlamentares para irem ver a bola. Como seria de esperar, choveram reacções de todo o lado mal foram conhecidas as intenções do presidente do Parlamento. Em jogo estava uma representação de Portugal ao mais alto nível, lembraram os deputados. Assim sendo, a ausência dos cavalheiros justificava-se plenamente com «trabalho político». E o que é «trabalho político»? Vasco Pulido Valente, contando a sua experiência como deputado, dizia que «trabalho político» era uma figura à sombra da qual se podia fazer quase tudo. Desde ir ao cinema a ficar em casa a dormir. O Diário de Notícias lembrou que nunca um deputado perdeu um mandato por exceder o número de faltas injustificadas (três) ou pagou multa (cerca de 170 euros cada), apesar de ter descoberto que dezena e meia de deputados atingiu (ou ultrapassou) as três faltas injustificadas em 2001. Quer isto dizer que nem foi necessário recorrer ao «trabalho político» para justificar o que, de outro modo, não seria justificável? Pelo menos é a ideia que fica. E como já não bastasse mais esta pouca-vergonha — que o presidente da AR diz ter prejudicado o prestígio da classe política —, já se anuncia uma outra: os deputados que habitualmente participam nas reuniões da Organização Mundial de Comércio foram substituídos por outros no próximo encontro, porque este se realiza... em Cancun. Um verdadeiro caso de «turismo parlamentar», terá dito ao DN um dos preteridos. João Vieira de Almeida dizia, ainda no DN, que «os deputados devem a si mesmos a péssima imagem que têm». Alguém tem dúvidas? [Originalmente publicado em 9-7-2003]
EQUÍVOCOS. Fátima Felgueiras decidiu dar uma conferência de imprensa e uma entrevista para explicar a versão dela dos factos. E qual é a versão dela dos factos? Para começar, acha que a querem «amordaçar e impedir» de se defender. Depois, não tem dúvidas de que é uma vítima do (mau) funcionamento da justiça, que pretende ver alterado. A seguir, que não fugiu à justiça, que o seu caso é «estritamente político» e se considera uma «exilada política», a primeira após o 25 de Abril. Que só tomou conhecimento de que tinha sido decretada a sua prisão preventiva já no Brasil — para onde foi com «bilhete de ida e volta» —, e que quer regressar a Portugal o mais depressa possível — onde pretende cumprir o seu mandato como presidente da câmara. Tudo isto servido à hora dos telejornais, e nem sequer faltou a voz embargada e o drama familiar para compor o papel que cuidadosamente entendeu representar. E que era, se bem se lembram, o de vítima. Ora convém lembrar que Fátima Felgueiras é suspeita de ter cometido três dezenas de crimes, entre os quais os crimes de corrupção, de desvio de dinheiro e de participação ilícita em negócio. Com certeza que enquanto a Justiça não demonstrar que é culpada, a senhora é inocente. É o que diz a lei e manda o bom senso. Só que mandaria igualmente o bom senso que a senhora Felgueiras tivesse um pingo de vergonha e assumisse, ao menos, parte da culpa, em vez de a jogar integralmente para terceiros. Decidindo apresentar-se como vítima sem a mais leve culpa, a senhora Felgueiras acabou por dar um tiro que lhe saiu pela culatra. Pior só o comportamento da televisão pública, que lhe deu uma eternidade em directo sem que se perceba porquê. Se aquilo é serviço público ou tem relevância informativa, então eu não percebo nada de jornalismo. Com certeza que o show de uma foragida à justiça garante audiências, mas essa é a lógica das televisões privadas. De modo que seria bom que os responsáveis da televisão pública não tentem, agora, passar de culpados a vítimas, porque não comovem ninguém e só convencem quem nem sequer duvidou. [Originalmente publicado em 24-6-2003]
O SUCESSO DOS OUTROS. Impressionante a quantidade de gente que não se conforma com o sucesso dos outros. Os outros, quando têm sucesso, invariavelmente o devem... aos outros. Se não fosse o apoio de A ou o padrinho B não teriam o sucesso que têm. Ou então devem-no a situações pouco claras ou nada dignificantes. Na melhor das hipóteses, tiveram sorte. Assim fica explicado que o sucesso dos outros nunca depende dos próprios mas... dos outros. Assim fica explicada a mediocridade de quem, com este expediente, procura menorizar o sucesso dos outros e, por arrasto, justificar o fracasso dos próprios. O sucesso dos outros sempre há-de incomodar os medíocres, quem passa a vida a desculpar-se com toda a espécie de obstáculos que os impede de ser mais profissionais, mais competentes, menos medíocres. E se for o nosso vizinho o protagonista desse sucesso? Muito pior! Tem sucesso, o nosso vizinho? Mas isso é imperdoável! E o nosso amigo, como foi ele foi capaz de nos fazer uma coisa dessas? E assim por diante. Se mais razões não houver para menorizar o sucesso dos outros, inventam-se. Se for preciso recorrer à calúnia, que se recorra à calúnia. O que importa é que o sucesso não fique impune. E nisso somos mesmo um sucesso. [Originalmente publicado em 9-6-2003]
O MEU CÃO. A esmagadora maioria das pessoas fala muito, diz pouco e pensa menos. Ouvir o que os outros têm para dizer é tarefa reservada a uns poucos. O que as pessoas querem é falar, falar e falar. Seja ele do futebol, do vizinho de cima, do que for. O que mais me espanta é como esta gente tem sempre tanto para dizer, quando eu me esforço para arranjar assunto sempre que tenho que abrir a boca. Isto para já não falar das certezas que sempre têm sobre tudo e dos veredictos que estão sempre prontos a lavrar, invariavelmente com base em dois ou três factos e quase nenhuns argumentos. É extraordinário como se tem opinião sobre tudo e se sentencia como quem fuma um cigarro. Já Eça de Queirós lamentava o hábito dos juízos ligeiros: «Com excepção de alguns filósofos escravizados pelo método, e de alguns devotos roídos pelo escrúpulo, todos nós hoje nos desabituamos, ou antes nos desembaraçamos alegremente, do penoso trabalho de verificar.» E depois acrescentava: «Principalmente para condenar, a nossa ligeireza é fulminante. Com que soberana facilidade declaramos "Este é uma besta! Aquele é um maroto!" Para proclamar "É um génio!" ou "É um santo!" oferecemos uma resistência mais considerada.» Infelizmente eu vivo rodeado de gente assim e não há nada a fazer. Deve ser por isso que eu cada vez gosto mais do meu cão. [Originalmente publicado em 24-5-2003]
O MANIFESTO. Depois de um manifesto contra a guerra do Iraque — que se distinguiu por uma pobreza e um facciosismo notáveis —, o mesmo grupo de personalidades resolveu subscrever mais um documento contra os americanos. Esta gente, que se tem distinguido por uma série de disparates (para não ir mais longe), vem agora dizer que a «formidável máquina de guerra» anglo-americana foi lançada contra o povo iraquiano e que a pilhagem do Museu de Bagdad mais não foi do que uma forma de «facilitar o controlo da sociedade e das elites iraquianas». Depois, que «a violência exercida contra jornalistas» e «a censura organizada» constituíram «elementos centrais da operação "choque e pavor", (...) de modo a minimizar a oposição dentro dos próprios Estados Unidos da América e da Grã-Bretanha e o repúdio generalizado da opinião pública mundial». Por último, que a tropa anglo-americana infligiu um «tratamento brutal e vexatório» aos prisioneiros de guerra e que o Iraque não é um país livre, como se viu nas «imponentes manifestações ocorridas em Bagdad» que a queda do regime de Saddam — esqueceram-se os senhores de dizer — tornou possível. Tudo isto para exigirem «a retirada das tropas invasoras» de modo a que a ONU possa enviar «uma comissão de observadores de reconhecida credibilidade internacional», e que eu não resisto comentar. E o comentário que se pode fazer é só um: além da evidência de que a retirada da tropa anglo-americana iria tornar aquilo num verdadeiro caos (ou será essa a ideia?), o documento assenta na interpretação abusiva dos factos e na mais pura mentira. Porque esta gente não se conforma com o facto de as coisas terem corrido melhor do que se esperava — e ao contrário do que previram e desejaram —, tudo serve para dar largas ao ódio contra os americanos. Curioso só o facto de, para o fazerem, terem necessidade de recorrer à manipulação e à mentira. Por que será? [Originalmente publicado em 8-5-2003]
MENTIRAS. Impressionante a quantidade de jornalistas que, sobre o Iraque, não conseguiu transmitir uma visão imparcial do que lá se passou. Foi vergonhoso assistir a toda a espécie de omissões, interpretações abusivas dos factos e à mais pura mentira. Foi chocante constatar até que ponto se confundem deliberadamente factos com meros desejos. Robert Fisk, por exemplo, insistia em não ver tropas americanas em Bagdade numa altura em que toda a gente sabia que elas lá se encontravam. Só podia ser propaganda, dizia ele na cegueira dos que se recusam a ver. Com certeza que a propaganda se presta a estes comportamentos, mas não me venham dizer que a propaganda impede de ser rigoroso quem quer ser rigoroso. Se é verdade que a propaganda é útil a quem pretende revelar apenas a «verdade» que lhe interessa, também não é menos verdade que ela não impede de ver quem quer mesmo ver. Dir-me-ão que a objectividade total é uma utopia e que um jornalista também tem sentimentos. Pois seja. Só que factos são factos; opiniões são opiniões. Há que distinguir claramente uma coisa e outra, custe lá isso o que custar. E não me venham com essa dos jornalistas «incorporados», por quem eu nunca nutri simpatia, porque desses conheciam-se as regras. A deliberada mistura de factos com mentiras e de omissões com opiniões é muito mais grave. Além de descredibilizar o jornalismo e os jornalistas, é uma manifesta vergonha. [Originalmente publicado em 23-4-2003]
AS VÍTIMAS. Numa altura em que se começou a insinuar que a estratégia militar anglo-americana para o Iraque não estava a alcançar os resultados previstos — pelo menos os resultados que a comunicação social avançou com base em não se sabe o quê —, algumas cabecinhas não esconderam a satisfação que lhes deu saber que, afinal, há resistência do lado iraquiano, e que os soldados americanos não foram recebidos com flores mas com balas. Esta gente está tão obcecada com aquilo que julga ser a verdade (estou a falar dos bem-intencionados, é claro) que até se esqueceu que, caso a guerra fosse rápida e a tropa encontrasse pouca ou nenhuma resistência, haveria menos vítimas. Miguel Sousa Tavares, por exemplo, não teve qualquer problema em dizer que o seu coração balança entre o desejo de «um desastre que puna merecidamente esta aventura [do Iraque] e fique como lição para o futuro» e «o milagre de uma guerra rápida e relativamente indolor». Está visto que, para esta gente, as vítimas da guerra (do lado iraquiano, é claro) servem, apenas, como arma de arremesso contra os americanos. Assim sendo, quanto mais vítimas houver, melhor. Não vítimas civis iraquianas feitas pelo próprio regime, que destas não querem eles saber. O que «preocupa» esta gente são as vítimas dos alegados mísseis americanos que terão caído no sítio errado, mesmo sabendo-se que há um enorme cuidado em não atingir alvos civis e que, do outro lado, se violam todas a regras. No afã de serem contra os americanos a qualquer preço (é curioso notar como nunca falam nos ingleses), esta gente não olha a meios. Até as vítimas inocentes, que choram pela frente mas aplaudem por trás, servem para esse fim. Com certeza que são respeitáveis os motivos com que alguns se opõem à guerra. Mas já não são respeitáveis a interpretação abusiva dos factos e a mais pura mentira. Muito menos a utilização de vítimas inocentes, que chega a ser obsceno. [Originalmente publicado em 8-4-2003]
OS MÉDICOS. Uma senhora de setenta e tal anos dirige-se a um Centro de Saúde para uma consulta marcada há semanas. Uma vez lá chegada, é informada que a médica decidiu fazer greve. Três semanas depois, a mesma senhora dirige-se ao mesmo Centro de Saúde para nova consulta e de novo é informada que a médica não está — nem vai estar — durante um mês. Algum congresso num país exótico a convite de uma multinacional? Tudo indica que sim. E outro médico para substituir a doutora, não há? Não havia, que a senhora diz que não há médico que a queira. E porquê? Porque os médicos alegam ter doentes a mais. Exactamente. Doentes a mais nos Centros de Saúde, que não consta que haja doentes a mais na medicina privada. A cena passou-se algumas semanas após a enésima greve dos médicos, desta vez por três dias e por causa da reestruturação dos Centros de Saúde. Evidentemente uma greve que pretendeu «defender os interesses dos utentes», como outras greves no passado pretenderam defender os interesses dos utentes. Aliás, há anos que os médicos fazem greves para defender os interesses dos utentes, não se percebendo por que é que os utentes continuam tão indefesos e mal servidos. Pior, muito pior, só o facto de não poderem reclamar e, muito menos, fazer greve. Muito pelo contrário. Há que ir para o médico com paninhos quentes; há que tentar convencer (às vezes subornar) a empregada para ver se ela dá um jeito de não ter que esperar tanto tempo pela consulta; há que não fazer ondas porque eles têm o faca e o queijo na mão. Simplista, o retrato? Só se pecar por defeito. [Originalmente publicado em 31-3-2003]
O PROFESSOR. J. M. Nobre-Correia resolveu descer do pedestal para nos vir dar uma lição de jornalismo. Numa prosa manhosa e por vezes incompreensível, o professor começou por dizer que «a história mostra suficientemente que os media norte-americanos há muito mais não são do que porta-vozes de círculos que só reconhecem como limites dos seus procedimentos os seus próprios interesses económicos e estratégicos». E depois que os media norte-americanos «adoptam uma postura de soldadinhos, o dedinho na costura das calças, em relação à megalomania guerreira do seu Presidente». Estas e outras pérolas a propósito das regras que o governo americano impôs aos jornalistas interessados em cobrir a guerra ao lado das suas tropas, que a mim me merecem reservas e ele discorda mas não explica porquê. Além de muito convenientemente omitir que só entra no «jogo» quem quer e de não ter escrito uma linha a condenar as reportagens que todos os dias nos chegam de Bagdad — cozinhadas com base em «material noticioso» muito convenientemente colocado à disposição dos jornalistas pelas autoridades iraquianas, como muito bem avisou Pacheco Pereira no Flashback —, assim demonstrando Nobre-Correia que não é a verdade que o preocupa mas apenas parte dela. Disse mais o professor no Público: que os EUA são «uma plutocracia em perda de identidade democrática». E com base em quê que ele disse isto? Evidentemente com base nos argumentos do costume: preconceitos e ignorância. Coitados dos alunos do senhor professor. [Originalmente publicado em 14-3-2003]
MEXER NA DITA. Clara Pinto Correia acha que a cópia quase integral de um texto publicado na New Yorker — e depois servido aos leitores como se de prosa sua se tratasse — não passou de um «"fait-divers" absolutamente trivial». Em entrevista ao Expresso, a ex-cronista da Visão voltou a justificar o «copianço» com uma explicação absolutamente estapafúrdia, como se o cansaço ou os problemas familiares explicassem o que se passou. E depois não se coibiu de chamar «abutres» a quem se atreveu a criticá-la. Porque há pessoas que gostariam que a sua vida «ficasse toda em cacos»; porque a comunicação social tentou «fazer um casaco a partir de um botão»; porque existe na comunicação social «a voragem de tentar demolir pessoas visíveis». Enfim, um autêntico «circo de feras» destinado a liquidá-la. Além de um manifesto exagero, é claro. Porque é preciso não esquecer que aquilo que se passou pode acontecer a qualquer um, diz ela, embora depois tenha garantido que jamais lhe volta a acontecer. Além disso, o «copianço» não tem a importância que se lhe deu, já que «não é um trabalho académico», «não é um artigo científico», «não é sequer um exercício de investigação jornalística». Ou seja, foi mesmo um fait-divers. E, porque assim foi, Clara acha que merece uma segunda oportunidade. Só que a entrevista ao Expresso, claramente uma segunda oportunidade para explicar melhor o que se passou, não ajudou mesmo nada a demonstrar essa tese. Muito pelo contrário. Acabou por ser um puro mexer na merda que, como seria de esperar, voltou a cheirar mal. [Originalmente publicado em 6-3-2003]
A GUERRA. A discussão à volta da política norte-americana para o Iraque está irremediavelmente dividida entre «antiamericanos» e «seguidistas». Não que muitos dos contendores não sejam «antiamericanos» ou «seguidistas», mas é bom lembrar que há quem não seja nem uma coisa, nem outra. Eu, por exemplo, não estou seguro que uma intervenção militar seja a melhor solução, mas já não tenho dúvidas que é necessário fazer alguma coisa. E o quê? Bom, ninguém sabe. Ou ninguém diz, o que vai dar ao mesmo. Sim, é preciso dar uma oportunidade à paz; há que esgotar todas as soluções; a guerra é uma coisa medonha. Só que, além de abstracções, ninguém diz qual é a alternativa. E não havendo alternativa fica à mostra uma evidência: além da guerra, não há solução. É a triste realidade mas é assim. Bem podem andar para aí descaradamente a mentir e a omitir verdades pouco convenientes. Além de demonstrarem uma confrangedora falta de argumentos, só serve para reforçar a opinião de quem pensa o contrário. E quem pensa o contrário também é, por princípio, contra a guerra. Só que ser contra a guerra não significa que ela não seja, por vezes, necessária. E, no caso do Iraque, tudo indica que evitará um problema maior. É isto precisamente o que está em causa. [Originalmente publicado em 24-2-2003]
VITAL. O senhor Vital Moreira, que em tempos escreveu uma crónica onde demonstrou a sua indignação perante um massacre que nunca existiu (e depois nunca teve a hombridade de admitir o erro), resolveu, na sua última crónica do Público, insurgir-se contra os países que assinaram um documento de apoio à política norte-americana para o Iraque e, de um modo geral, contra a mais que provável intervenção militar na região. Acontece que, para o fazer, o senhor Vital socorreu-se de argumentos muitíssimo convenientes mas, infelizmente, falsos. E o que disse Vital Moreira? Bom, para começar, que os inspectores da ONU «sublinham a cooperação das autoridades iraquianas nas tarefas de inspecção». Depois, que «o relatório [dos inspectores da ONU] enuncia a lista da destruição de armas desde a guerra do Golfo». Ora acontece que, sobre o primeiro caso, é público que os inspectores se queixaram de falta de cooperação do regime de Saddam. Ou seja, precisamente o contrário do que diz Vital. E toda a gente sabe que o relatório não contém qualquer lista de destruição de armas, que o senhor Vital exibe como se de um facto se tratasse. Com certeza que o ilustre senhor tem todo o direito de defender os seus pontos de vista e de proferir os disparates que muito bem entender. Mas convinha que alguém lhe lembrasse que não é correcto fazer passar por factos aquilo que não passam de meros desejos. Até porque, assim, qualquer tese cai pela base. Como caiu pela base a tese que defendeu na sua última crónica, embora não se tenha perdido grande coisa. [Originalmente publicado em 9-2-2003]
A BANDA. A Universidade de Vila Real anunciou a criação de uma banda pop-rock. Trata-se de um projecto pioneiro que em breve deverá estender-se a outras universidades, e até já se fala num encontro de bandas universitárias de rock. O seu principal responsável diz que a ideia é «dar oportunidade aos estudantes universitários de ouvirem outro tipo de músicas que gostam». E que o grupo tocará apenas temas originais com base em «algumas músicas clássicas adaptadas», diz o Semanário Transmontano, citando o mesmo responsável. Responsável que acha necessário «acabar com os preconceitos em relação à música pop-rock» e «dar aos jovens a música que eles gostam». E, para mostrar que não brinca em serviço, até já anunciou um concurso para escolher o nome da banda, o logótipo e o traje. Ora aqui está o que se chama uma boa notícia. Embora não se tenha percebido bem o que é isso de «músicas clássicas adaptadas», sem dúvida que a iniciativa é meritória. Espera-se agora que a Universidade de Vila Real avance para a criação de bandas punk, rap, trance, reggae, hip hop, new age, heavy metal, folk, rhythm & blues, soul, gospel, por aí fora. Sim, porque é preciso dar aos estudantes universitários oportunidade de ouvirem outro tipo de músicas que eles gostam. E ninguém duvida o quão importantes são estas iniciativas para os currículos universitários e, consequentemente, para o país. Palavra de honra que eu até já comecei a escrever uma letra. Começa assim: «Oh bila, serás pioneira,/ na pop e na cegueira. /Oh bila, serás a primeira,/ no rock e na asneira.» [Originalmente publicado em 28-1-2003]
O CRIME COMPENSA. O perdão fiscal decretado pelo Governo parece ter atingido o objectivo. E o objectivo, vale a pena lembrar, era arrecadar uns milhões de euros mais ou menos de um dia para o outro, que havia desígnios nacionais urgentíssimos a cumprir. Acontece que o Governo, com este expediente, acabou por premiar quem não cumpre, não deixando o gesto de ser lido como um estímulo para que tudo continue na mesma. Além de ser um insulto aos cidadãos cumpridores, que legitimamente se interrogarão se valerá a pena cumprir as suas obrigações a tempo e horas. Está bom de ver que os fins nem sempre justificam os meios. E que não se pode tapar um buraco abrindo outro, como foi claramente o caso. Optando por uma lógica puramente economicista em vez de actuar com firmeza contra os prevaricadores — que lhe teria permitido arrecadar o que lhe é devido e castigar exemplarmente os faltosos —, o Governo acabou por demonstrar que o crime compensa. Exactamente o contrário do que devia, pois é com atitudes como esta que as coisas são o que são. [Originalmente publicado em 13-1-2003]
A CAMPANHA. Não sei se «o futebol tem sido o 'bombo da festa' deste país», como diz o senhor Valentim. O que eu sei é que mal alguém se atreve a apontar um dedo a um dirigente da bola cai logo o Carmo e a Trindade e logo nos vêm lembrar a existência de uma “campanha contra o futebol”. Realmente esta gente da bola parece sentir-se intocável e segura de que nada ou ninguém os pode enfrentar, como lembrou Vale e Azevedo em livro recentemente lançado, embora ultimamente se tenha notado algum nervosismo. Desta vez, perante uma declaração do procurador-geral da República a dizer que há mais casos no futebol português a serem investigados, o presidente da Liga de Clubes ameaçou parar os campeonatos e as obras dos estádios e o presidente do Porto sugeriu que «todos os dirigentes desportivos deviam fechar os clubes e entregar as chaves ao presidente da República». Enfim, as ameaças da praxe por parte de quem se julga intocável. A novidade de tão malcheirosa novela são as declarações posteriores do presidente do Sporting. Além de subscrever as afirmações de uma ex-directora adjunta da Judiciária, que garantiu ser o futebol «um mundo de branqueamento de dinheiros sujos», Dias da Cunha não tem dúvidas que «há muitos sacos azuis» e «muito dinheiro sujo» no futebol português. Nem mais. O presidente do Sporting confirmou, alto e bom som, o que toda a gente suspeita. Se mais razões não houvesse, isto devia chegar e sobrar para que os demais dirigentes da bola moderassem um pouco a bazófia. Até porque não há dúvida que alguns deles são responsáveis pelo que há de pior no futebol português. [Originalmente publicado em 31-12-2002]
LÁGRIMAS DE CROCODILO. O alarido que por aí vai devido ao comportamento das televisões no caso de pedofilia é um manifesto exagero. Com o agravante de muitos dos que agora reclamam andarem há anos na política ou nos jornais, onde se calcula que tenham sabido o que se estava a passar e nunca abriram a boca. Não há bicho careto com coluna nos jornais que não tenha falado mal dos média, especialmente das televisões, acabando a fazer o mesmo julgamento sumário de que acusam as televisões. Não que as televisões não se tenham excedido — eu não vi mas acredito que se tenham excedido —, mas porque o caso tinha saído de cena em dois dias se não fossem esses excessos. E sair de cena em dois dias um caso desta envergadura é meio caminho andado para que a Justiça se demita das suas funções, de que já deu mostras no passado. Divulgaram as televisões pormenores perfeitamente escusados? Tudo indica que sim. Mas é bom não esquecer que já fizeram mais as televisões contra a pedofilia de que as instituições (in)competentes em dezenas de anos. É uma triste realidade mas é assim. De maneira que a cruzada a que estamos a assistir é não só um manifesto exagero como despropositada. Além de produzir efeitos contrários, já que ela desvia as atenções do essencial. E o essencial é que a Justiça falhou em toda a linha e não foi a primeira vez. Pelo que seria mais oportuno que estes senhores concentrassem as suas energias exigindo que se apure quem falhou e porquê. É repugnante algum «jornalismo» que por aí se pratica? Sem dúvida que é. Mas ainda mais repugnante é a choradeira desta gente, que hoje verte lágrimas de crocodilo pelo que ontem fingiu que não viu. [Originalmente publicado em 16-12-2002]
SUSPEITAS. Depois do imbróglio que deu origem à criação de uma comissão de inquérito, onde se tentou apurar demissões que levantaram suspeitas e que não abonaram nada a seu favor, a Polícia Judiciária volta a estar na berlinda. Desta vez acusada de nada ter feito para pôr termo a uma rede de pedofilia envolvendo peixe graúdo, para já não falar de acusações mais graves. Defendeu-se a Judiciária dizendo que nada sabia do caso, mas a Procuradoria-Geral da República tornou pública outra versão e a PJ lá foi obrigada a admitir que sabia. Quer isto dizer que a conclusão desta estória só pode ser uma: a Judiciária já não merece confiança. E quando a Judiciária não merece confiança aos olhos dos cidadãos, como já não merece confiança praticamente toda a máquina da Justiça, caminha-se invariavelmente para o grau zero da credibilidade das instituições e para um país de opereta. E não se pense que vai ser pelo facto de este caso de pedofilia ir até às últimas consequências (coisa que eu, aliás, duvido) que vão acabar as suspeitas que recaem sobre a Judiciária e toda a Justiça. Porque é legítimo suspeitar-se que outros casos houve que ficaram no segredo dos deuses e outros se seguirão sempre que envolverem peixe graúdo. [Originalmente publicado em 2-12-2002]
A MEDIOCRIDADE. Os políticos portugueses andam muito preocupados com o comportamento... dos políticos. O presidente Sampaio apelou à «sanidade da democracia». Mota Amaral diz que é preciso «mudar o tom do debate político». Mário Soares acha que se «criou um ambiente de desânimo» e Freitas do Amaral que se está a usar uma «linguagem de carroceiro». Manuel Alegre não tem dúvidas que estamos a assistir a um «apodrecimento da vida política» e Duarte Lima que se respira «um ar viciado». Louçã acha que «a República vive uma crise muito grave» e Santana Lopes que se «ultrapassaram limites». Tudo isto numa altura em que o principal acontecimento político foi o desempenho de uma comissão parlamentar de inquérito às demissões na Judiciária, que se reuniu à porta fechada para evitar que os jornalistas divulgassem pormenores eventualmente sensíveis que depois acabaram na praça pública revelados pelos senhores deputados. Comissão que, recorde-se, acabou em águas de bacalhau e com cenas pouco edificantes. A política portuguesa é assim: um sítio mal frequentado e cada vez mais longe dos cidadãos. Onde a mediocridade é a regra e o resto excepção. [Originalmente publicado em 18-11-2002]
O FUTEBOL. O último Boavista-Sporting terminou com o presidente do primeiro a dizer que o futebol é uma «mentira» e o treinador do segundo a fazer umas declarações misteriosas acerca do comportamento do árbitro. Isto uma semana depois de Porto e Benfica se terem envolvido numa batalha campal, seguida da inevitável guerra intestina. O futebol português continua uma vergonha, mas nem por isso incomoda os seus dirigentes. O senhor Valentim, que se mostrou indignado com as declarações de uma magistrada quando esta afirmou que o futebol «é um mundo de branqueamento de dinheiros sujos» e de «promiscuidades políticas (...) altamente nocivas para as instituições democráticas», já se esqueceu do que disse e age como se nada fosse com ele. A revelação de que os clubes estão cheios de dívidas ao fisco também não o incomodou, alegando que são «atoardas» e que a comunicação social está «contra o futebol». Como não incomodou ninguém o facto de o senhor Madaíl ter afirmado que «quem diz mal do futebol português é porque não gosta» e que Jaime Pacheco admitisse que o Boavista poderá «fazer mais faltas» para atingir os seus objectivos. Como não incomoda ninguém o facto de os árbitros estarem, há anos, sob suspeita, a começar pelos próprios. O futebol português não tem emenda. Graças a estes e outros senhores, tornou-se num espectáculo indecoroso nos bastidores e inexistente nos relvados. E quando mete política, então nem se fala. Veja-se o caso do Partido Socialista, que reagiu à notícia das dívidas considerando necessário que a Administração Fiscal discuta «muito seriamente a situação com os clubes» de molde a «chegar-se a uma conclusão negociada entre ambas as partes». Ou seja, os clubes não pagam o que devem e o PS acha que é preciso mais um «totonegócio». Dir-me-ão que o futebol português é o reflexo do País que temos. Pois seja, mas a mim já me parece que o contrário é que é verdadeiro. [Originalmente publicado em 3-11-2002]
OS PALERMAS. O secretário-geral do Partido Socialista achou por bem classificar de «palermas» os que duvidam da seriedade de um contrato que ele terá assinado quando era ministro. «Não tenho medo nenhum destes palermas que pensam que me intimidam com mentiras», disse ele em Barcelos, classificando de «calúnias e falsidades» as acusações que lhe fazem. Os «palermas» de que fala Ferro Rodrigues são dirigentes do PSD e do CDS, que se apressaram a protestar. O líder parlamentar do PSD considerou que foi um «grave insulto» ao Parlamento e seus deputados, alegando que atitudes destas só contribuem para o «descrédito da política portuguesa». O líder parlamentar do CDS considerou «baixo e inqualificável» o ataque de Ferro Rodrigues, avisando que, a ir-se por este caminho, «qualquer dia seremos um bando de rufias». O líder parlamentar do PS saíu em defesa do chefe para dizer que os deputados do Governo «enfiaram a carapuça», parafraseando Vasco Santana para lhes lembrar que «chapéus há muitos». O secretário geral do PS justificou o que disse com a necessidade de exprimir a sua indignação — a famosa indignação de que Soares disse ser um direito —, alegando que também tem coração. E daí?, perguntar-me-ão os meus estimados leitores. Daí que esta estória me fez lembrar a Câmara dos Deputados dos tempos de Eça, onde era frequente os ilustres parlamentares se comportarem «como se estivessem numa praça de touros». Nos melhores dias, recorda, os deputados diziam graçolas e troçavam uns dos outros; nos piores, grunhiam obscenidades e «espancavam-se com dignidade». [Originalmente publicado em 18-10-2002]
A DIVINA PROVIDÊNCIA. Nove e pouco da manhã em Pedras Rubras. Dezenas de pessoas aguardam a vez de passar a alfândega. Um sexagenário à minha frente é interrogado por um guarda-fiscal. Bigodinho malandro e ar de chico-esperto, o cavalheiro interroga o infeliz com umas perguntas muito mal-amanhadas, às vezes mal-educadas, com o intuito de o intimidar e de mostrar que, ali, quem manda é ele. Despachado o sexagenário para um canto, onde lhe ordenaram que abrisse as malas, eis que chega a minha vez. A criatura disparou de imediato o indicador em direcção a um saco que eu trazia e quis saber se aquilo era um computador. Depois, se o «comprei cá», se o «comprei lá». A seguir gaguejou umas palermices de que eu já me não lembro mas que tinham um objectivo claríssimo: intimidar-me. Satisfeita a curiosidade do homem, lá fez o favor de me deixar seguir. A cena fez-me lembrar outra muito parecida, há uns anos atrás, cujo final recordo com gosto. Começou por perguntar-me o guarda-fiscal se eu tinha passaporte, como se fosse possível eu ter chegado à sua presença sem passaporte. Lembro-me de me ter deixado sem resposta e de lhe ter apontado um saco de mão onde o dito espreitava, mas o que o cavalheiro queria realmente saber era se eu tinha «alguma coisa a declarar». Como não tinha, começou a fazer-me umas perguntas sem pés nem cabeça. Esgotada a cartilha e não lhe cheirando a nada, mando-me avançar. A cena podia ter morrido ali se não fosse a divina providência, ou lá o que foi no lugar dela, que decidiu agir em meu nome. Especando os pés de maneira a fazer avançar o carrinho das malas pela porta que a criatura ciosamente guardava, acabei por pisar generosamente o pé do cavalheiro com umas botas que eu trazia cujo piso tinha uns bons cinco centímetros de altura. Lembro-me de a criatura ter aberto a goela com estrondo e de não ser caso para menos. É claro que eu apressei-me a pedir-lhe desculpa, procurando demonstrar-lhe que, afinal, foi um mero acidente. E depois prossegui o meu caminho com os olhos do guarda nas minhas costas, seguramente a pensar se eu não fiz de propósito. É claro que vontade não me faltou, mas eu posso garantir-vos que não fiz de propósito. Mas, quem quer que o tenha feito por mim, lá sabia o que estava a fazer. [Originalmente publicado em 2-10-2002]
DISPARATES. Como seria de esperar, o aniversário do 11 de Setembro serviu para dar largas ao antiamericanismo primário e a mais um cortejo de disparates. Até Miguel Sousa Tavares, por quem nunca escondi admiração pela coragem com que assume as suas ideias, não ficou imune à hecatombe de parvoíces. Disse Sousa Tavares, no Público, que George W. Bush é «estúpido», «cabotino» e «esteticamente insuportável» (!), e que «cem milhões de americanos (...) são exactamente iguais e revêem-se nele». E ainda que os EUA se foram «tornando cada vez mais parecidos com os seus inimigos emergentes do mundo árabe extremista», nomeadamente no que respeita ao «mesmo fanatismo religioso, o mesmo voyeurismo moralista sobre as ovelhas tresmalhadas do rebanho, a mesma paranóia nacional de perseguição ao outro, às suas diferenças, gostos ou vícios». Enfim, evidências para ele que, para mim, que aqui vivo há 15 anos, nunca o foram. Essa estória de os americanos serem estúpidos, por exemplo, só mesmo para me fazer rir. Já quanto ao facto de os americanos serem «fanáticos religiosos», confesso que essa nunca ouvi. Julgava eu que os EUA são dos poucos países do Mundo onde as «diferenças, gostos ou vícios» de cada um são respeitados, não só na lei mas na prática, mas parece que assim não é. Quanto à «paranóia nacional de perseguição ao outro», não vislumbro onde foi buscar semelhante disparate. Eu sou ateu, bebo uns copos quando me apetece e faço outras coisas que agora não digo e nunca me senti perseguido. De maneira que há aqui um equívoco: ou eu não vivo nos EUA, ou o Miguel não sabe do que fala. [Originalmente publicado em 13-9-2002]
TUDO NORMAL. Meio-dia em ponto num restaurante portuga. Ao balcão, dois patrícios enchem as ventas de peixe. O mais velho arrota sem cerimónia e não se cansa de gabar o tintol. Que não quer saber da viagem, que a ele ninguém o apanha a guiar; que esta vida são dois dias, quem cá ficar que se amanhe. O mais novo faz que sim com a cabeça e depois dá uma risada nervosa. Já no brandy, o mais velho informa o mais novo que a taxa de álcool é agora de 0,2 por centro. Zero vírgula dois por cento, repete ele ao mais novo, certificando-se de que este ouviu bem o que ele disse e ignorando que a lei já não é assim. «Mas atão isso é só uma cerbeija», concluiu o mais novo num golpe de lucidez. E depois abaixou o focinho para a sobremesa e resmungou um palavrão. Numa mesa, numa daquelas onde se vê tudo quanto se passa, um casal fala alto e põe defeitos em tudo. Que a comida não devia ser assim mas assado; que o serviço é uma merda; que está sol mas devia chover. A pouco distância, um jumento assobia um fadinho enquanto observa quem sai e quem entra. Às vezes mete o mindinho numa orelha, escarafuncha generosamente e depois fica a olhar a merda que fez. Completa este magnífico cenário um cavalheiro todo vestido de branco com manchas de surro por todo o lado, que se entretém a bater com o garfo numa faca enquanto aguarda a manjedoura. Trata-se do cozinheiro, um tipo baixote que eu nunca vi sem a fardeta naquele estado e sem um lápis encavalitado numa orelha. A novidade é que agora espirra que se farta, nem sempre em direcção a um lenço num estado miserável, e eu começo a imaginar a criatura na cozinha a espirrar gafanhotos por todo o lado. Mas nada que não esteja dentro da normalidade, não senhor. Anormal, aqui, só eu. [Originalmente publicado em 30-8-2002]
O ESCALDÃO. Estava eu a reler a descrição do almoço do Jacinto e do Zé Fernandes em Tormes, após uma atribulada viagem de Paris (A Cidade e as Serras), quando o empregado que me serviu o almoço tropeçou em não sei quê e despejou um café no balcão à minha frente que, por um triz, não me atingiu as canelas. Afastadas as ditas mesmo a tempo de me livrar de um escaldão, reparei na cara do infeliz que, lembrei-me logo, uns dias antes eu tinha avistado numa cena muito parecida. Reconstituí mentalmente o episódio: um tropeção em não sei quê e uma sopa a escaldar que, por pouco, me não caiu em cima. Espantoso! Observei o empregado pelo canto do olho mas não me pareceu haver razões para suspeitar que tudo não passou de uma coincidência, uma daquelas coincidências sem importância quando acontece aos outros. Tanto mais que, metida a mão na consciência, não vi razão porque haveria alguém de querer fazer-me mal. Pelo menos foi esta a conclusão a que cheguei quando, na noite a seguir ao incidente, acordei a meio de um sonho em que eu tinha apanhado um escaldão. [Originalmente publicado em 14-8-2002]
JUSTIÇA. Francisco Moita Flores afirmou recentemente, no Diário de Notícias, que a «actual figura jurídica do segredo de justiça» é hipócrita, já que ela permite que se revelem aos jornalistas «segredos por debaixo da porta» que, «pelo postigo», se não podem revelar. Com «essa forma vigarista de fazer justiça de pacotilha», diz ele, não são poucos «os homens e mulheres que há anos pagam uma factura pesada», já que a «impotência de condenar arguidos» resulta num verdadeiro atentado contra «a dignidade e a honradez de muitos cidadãos». Moita Flores acusa ainda os jornalistas de entrarem neste jogo nada sério e eu só posso concordar. Acontece que, não defendendo eu o actual modelo de segredo de justiça de que ele fundadamente discorda, é bom não esquecermos que ele tem um mérito: o de «fazer justiça» na praça pública a alguns tubarões que, devido às prescrições ou engenhosas faltas de provas, jamais seriam condenados pelos tribunais. [Originalmente publicado em 30-7-2002]
INCOMPATÍVEL. Bem pode argumentar-se que o exercício simultâneo dos cargos de deputado e jornalista é compatível que salta à vista de todos que não é. O que diz a lei? Não sei nem me interessa. O que me interessa é que o exercício simultâneo dos cargos de deputado e jornalista cria um inevitável conflito de interesses. Quer se queira, quer não. Aliás, estou mesmo convencido de que qualquer pessoa pouco familiarizada com a matéria detectará a evidência se pensar um pouco no assunto. Infelizmente Maria Elisa assim não pensa e até já veio dizer-se vítima de «uma campanha» contra a sua pessoa, logo após ter sido obrigada a suspender a sua actividade como jornalista a «convite» do seu próprio partido. Extraordinário que, como pessoa inteligente que todos dizem que é, Maria Elisa não tenha visto a incompatibilidade logo desde o início, não é? A justificação para o exercício em simultâneo dos dois cargos com base na premissa de que nunca foi sua intenção «fazer informação política» na RTP mas apenas «entrevistas culturais ou sociais» enquanto for deputada é um argumento tão frágil que chega a ser caricato. Além de um verdadeiro insulto à inteligência de todos nós e de não a abonar mesmo nada como deputada e como jornalista. [Originalmente publicado em 16-7-2002]
VERGONHAS. Agora que a poeira parece ter assentado, apetece-me dizer umas coisas acerca da selecção nacional. Em primeiro lugar, nunca me passou pela cabeça que a participação portuguesa no Mundial de Futebol fosse a vergonha que foi, não propriamente pelos resultados em campo mas por aquilo que não jogámos. Em segundo, pela atitude demonstrada por jogadores como João Pinto, inadmissível numa selecção nacional e merecedora de castigo exemplar por parte de quem manda na federação. Em terceiro, pelo comportamento do senhor Oliveira, que depois de errar descaradamente ainda foi preciso que o pusessem na rua senão ainda agora lá estava. Por último, a patética conferência de imprensa do senhor Madaíl para anunciar o afastamento do seleccionador nacional demonstrou a quem dúvidas tivesse que o senhor Madaíl não serve. Ser o único dirigente da bola com coragem para enfrentar a multidão na Portela, como ele fez questão de lembrar, pode abonar a seu favor mas não o isenta de culpas. E se há um culpado por aquilo que se passou na Coreia parece-me evidente que é o senhor Madaíl. [Originalmente publicado em 1-7-2002]
BESTAS. Na terça éramos os melhores. Na quarta, os piores. Na segunda a seguir, de novo os maiores. Na sexta... bem, na sexta passámos a ser uma vergonha. De bestiais passámos a bestas, para usar (ao contrário) a terminologia do senhor Oliveira. Com certeza que o Figo devia ter ficado no banco. Sem dúvida que o Rui Costa devia ter jogado de início. É claro que o João Pinto nem sequer devia ser convocado. Pauleta? Por amor de deus. Ele nem português é! O senhor Oliveira!? Será que o senhor não vê que ele não percebe nada de bola? E por aí adiante. Exactamente o contrário do que ontem foi dito e do que será dito amanhã. Porque está escrito que a nossa selecção tem que ser a melhor, custe lá isso o que custar. Se não for, os jogadores só podem ser umas bestas e o seleccionador um jumento. Isto para já não falar dos «mafiosos» que controlam a selecção, como se diz por aí a torto e a direito mas depois ninguém se atreve a revelar os nomes dos cavalheiros e muito menos que poderes eles têm. E do regresso do D. Sebastião (ou do Humberto Coelho, como queiram), que os mesmos que ontem disseram não servir já mostraram querê-lo de volta. É claro que a estratégia frente à Coreia tinha sido brilhante... se não tivéssemos perdido. Mas a verdade é que perdemos e a música passou a ser outra. Muito pimba e bem portuguesa, como seria de esperar. Sobretudo por não se lembrarem estes músicos de ocasião que estão hoje a apupar o que ainda ontem aplaudiam. Por mim, só gostava de dizer a estes senhores que duvido que os nossos artistas pudessem ter feito melhor. Mas já não tenho dúvidas que esta gente não merecia melhor. [Originalmente publicado em 4-6-2002]
O ÚLTIMO A RIR. Apesar de reconhecer que o País atravessa um momento difícil, o doutor Aberto João já veio dizer não aceitar que a crise penalize a Madeira, pela simples razão de que quem «descarrilou» foi o Estado e não ele. «Eu não pago as asneiras dos outros», disse ele num relatório, e ninguém duvida que assim será. Aliás, porque haveria ele de pagar as asneiras dos outros se nunca pagou as que ele próprio cometeu? Evidentemente que não faria sentido. Como não faz sentido que a informação da RTP-Madeira continue a não ser «isenta», «objectiva» e «plural», como ele não se cansa de dizer, apesar de a oposição lhe chamar um «telejardim». Mas não será por muito mais tempo, já que Alberto João promete transformar a televisão da Madeira numa sociedade anónima, obviamente a controlar pelo Governo Regional de que ele, por um mero acaso, é o seu presidente. Mostrando estar em belíssima forma, o presidente da Madeira não se ficou por aqui. Numa altura em que a ordem é congelar as contratações na Função Pública, na Madeira o doutor Alberto João já disse que vai admitir mais 1.395. Com certeza que todos estes desmandos, vindos de quem vem, têm sempre muita piada e hão-de morrer por aqui. E, para não variar, ele há-de ser o último a rir. [Originalmente publicado em 2-6-2002]
RTP. Independentemente das razões que assistem aos funcionários da RTP para manifestarem a sua discordância em relação à decisão do Governo sobre o futuro da estação pública de televisão, nomeadamente aos seus jornalistas, é inadmissível e vergonhoso o tratamento claramente privilegiado que a mesma RTP, através dos seus telejornais (só tenho visto os telejornais), tem dado ao caso, demonstrando não ter pudor em usar os meios de que dispõe para chantagear a tutela e, muito pior, ajuizar em causa própria. Isto para já não falar das manifestações «espontâneas» protagonizadas por funcionários da televisão pública e outras «forças vivas», que se multiplicaram por todo o País de modo a coincidirem com os telejornais, e do tão falado telenegócio, como se a RTP tivesse qualquer autoridade moral para se insurgir contra supostos telenegócios. E como se já não bastasse mais esta vergonha para o jornalismo português, andam agora a dizer que o Governo se prepara para acabar com o «serviço público». Eu pergunto: de que serviço público está esta gente a falar? Do serviço público que toda a gente dantes dizia que a RTP não cumpria? Ou será do serviço público que toda a gente diz ser fundamental mas depois ninguém sabe dizer o que é? Infelizmente ninguém está interessado em esclarecer estas dúvidas. Mas nem tudo foi lamentável nesta novela de mau gosto, já que a decisão do Governo teve o mérito de pegar o touro pelos cornos e de trazer à ribalta a discussão sobre o que deve ser o serviço público de televisão. É claro que discutir esta matéria é mais ou menos como discutir o sexo dos anjos e não vai ser pêra doce chegar a um consenso. Mas só depois de se saber que serviço público se pretende para a televisão do Estado faz sentido discutir o futuro da RTP, nomeadamente quantos canais serão necessários. E se ainda tem razão de existir um Conselho de Opinião, que se cobriu de ridículo da última vez que foi chamado a intervir e demonstrou nem saber quais são as suas competências. [Originalmente publicado em 18-5-2002]
MARGARIDAS. Margarida Rebelo Pinto acha que tem «uma intuição filha da puta» para o negócio dos livros. Numa extensa entrevista concedida a O Independente, há uns tempos atrás, a jornalista fez questão de assumir que escreve livros com um olho no mercado e que teve o cuidado, no seu último, de suprimir toda «a lixeira» contida nos anteriores. Sobre os seus estimados leitores, que diz serem entre 200 mil e 300 mil, Margarida garantiu que eles vão das tias da linha aos ciganos não sei de onde. Dos «colegas» escritores, Margarida queixou-se de que não lhe ligam nenhuma e que se perdem em masturbações intelectuais, embora eu suspeite que ela queria dizer outra coisa. Dos críticos que acham os seus livros uma magnífica estopada, e que diz serem 10 em 50 mil, Margarida irrita-se porque nem se deram ao cuidado de os ler. Sobre o Mundo em geral, Margarida espera «purificar um bocado as coisas» com a publicação dos seus livros, e sobre o seu em particular, às vezes sente-se inútil porque não sabe se está «a ajudar as pessoas». E daí?, perguntar-me-ão os meus queridos leitores. Daí que eu acho muito bem que Margarida publique os livrinhos que muito bem lhe apetecer com o intuito de purificar as coisas e, de caminho, embolsar uns dinheiros. Só acho extraordinário é que haja tanta gente a ler margaridas quando todos os estudos dizem que ninguém lê. E que todo o bicho careto que faz sucesso nas tvs tenha desatado, de um momento para o outro, a escrever livros sobre tudo e mais alguma coisa apenas com o intuito de explorar o filão. Dizia Vasco Pulido Valente (entrevista à Ler do último Inverno) que se acalma a ler «trash». Será que ele é um caso isolado ou são os portugueses que andam demasiado nervosos? [Originalmente publicado em 10-5-2002]
CAUSAS. Finalmente começa a surgir algum bom senso na discussão à volta do conflito que opõe israelitas a palestinianos. Ou, se quiserem, algum equilíbrio de posições. Depois de dias e dias com toda a espécie de notícias e comentários em que os palestinianos aparecem como uns mártires e os israelitas como um bando de assassinos, começa a ouvir-se quem assim não pensa e proteste contra este lamentável «jornalismo de causas», como já lhe chamou Pacheco Pereira, que nos quer fazer crer que os israelitas são um bando de malfeitores e os palestinianos uns pobres coitados. Mesmo quem não conhece em profundidade o conflito que opõe uns a outros é capaz de já ter descoberto que ambos têm as mãos tão manchadas de sangue que se torna difícil condenar apenas uma das partes. Por muito forte que seja a imagem nas tvs dos palestinianos a defenderem-se à pedrada dos tanques israelitas isso não significa que toda a verdade esteja do lado dos palestinianos. É bom também não esquecer que, no que respeita às personalidades em conflito, o senhor Sharon pode ter falhado em toda a linha e cometido erros gravíssimos, mas já outros no seu lugar tentaram a paz com o senhor Arafat com os resultados que se conhecem. De maneira que seria bom que a imprensa, rádio e tv começasse por revelar todos os factos conhecidos dos dois lados do conflito, deixando que cada um ajuíze pela sua própria cabeça aquilo que houver para ajuizar. Porque a primeira causa do jornalismo deve ser divulgar os factos, todos os factos. Não apenas os que nos convêm para defender esta ou aquela tese. [Originalmente publicado em 27-4-2002]
OLHA O QUE EU DIGO. A Igreja Católica Portuguesa decidiu criticar «a excessiva tolerância da comunicação social para com comportamentos sociais que não se coadunam com a matriz tradicional da sociedade portuguesa» (Público, 10 de Abril). D. Tomaz da Silva Nunes, secretário da Conferência Episcopal Portuguesa, considerou, ainda segundo o Público, que os média concedem uma «tolerância ilimitada para com comportamentos que não correspondem às tradições portuguesas», embora não esclarecesse a que tradições se referia. O bispo auxiliar de Lisboa defendeu ainda que «os média devem ter um papel mais activo na manutenção dos valores dos povos» e que, referindo-se a temas como o aborto ou a infidelidade, eles têm contribuído «para anestesiar a consciência de valores fundamentais». O senhor bispo não tem dúvidas que «a comunicação social deve ter em vista a promoção da dignidade das pessoas e a sua formação», denunciando o que está mal e aplaudindo o que está bem. Resumindo e concluindo, o secretário da Conferência Episcopal Portuguesa deixou claro pelo menos duas coisas: em primeiro lugar, que a Igreja Católica portuguesa ainda não percebeu o papel dos média numa sociedade em que a religião está separada do Estado; depois, que os pasquins retrógrados de que é proprietária por esse país fora não lhe confere qualquer autoridade moral para vir dar lições sobre o que deve ser o papel dos média. [Originalmente publicado em 12-4-2002]
BARROSO. Parabéns dr. Barroso. Também eu não dava um tostão por si como líder do PSD e jamais me passou pela cabeça que chegasse a primeiro-ministro. Mas a realidade encarregou-se de demonstrar que eu estava errado e já decidi que, a partir de agora, em matéria de política e afins vou seguir o método do João Pinto, que só faz prognósticos no final do jogo. Antes, porém, permita-me que eu arrisque um último palpite: com ou sem aliança com o PP, não tarda nada que o dr. Portas lhe coma o caldo na cabeça. Como se isso não bastasse, o prof. Cavaco já demonstrou largamente que não resiste a meter o bedelho sempre que lhe dá na bolha, o prof. Marcelo tudo fará para o fritar em lume brando e o inevitável Alberto João já avisou que os deputados da Madeira não são favas contadas. Ou seja, o senhor tem um militante do seu partido ou arredores em cada esquina disposto a liquidá-lo mal surja uma oportunidade. Tudo por causa do matrimónio de conveniência com o dr. Portas, que há-de sair incólume caso as coisas corram para o torto. E ninguém duvide que estão criadas as condições para que as coisas lhe corram mal, apesar de a procissão ainda ir no adro. De maneira que aconselharia a mais elementar prudência que o senhor se precate, pois é a si que cabe pagar a conta caso alguém apresente a factura. [Originalmente publicado em 29-3-2002]
A IMAGEM. Numa altura em que toda a gente não se cansa de dizer que a Saúde está moribunda, a Justiça precisa de um fueiro e a Educação é uma balda, o presidente da República elegeu como prioridade nacional intervir na comédia da bola. A ideia do senhor presidente terá sido apelar à continência verbal das partes desavindas e lembrar aos ilustres cavalheiros que está em jogo o Europeu de Futebol e a imagem lusitana no Mundo. Ou seja, que tenhamos uma Saúde cada vez pior, uma Educação que não educa ou uma Justiça que não funciona, são coisas que não importam ao senhor presidente da República. O verdadeiro desígnio dos portugueses que ele superiormente representa é provar ao Mundo e arredores que somos capazes de realizar o Europeu ou outras enormidades do género. De maneira que só nos resta esperar que o Mundo nos veja conforme lhe pretendemos mostrar e não como um bando de pelintras, que disfarça com um casaco vistoso a camisa que lhe fica curta nas mangas. [Originalmente publicado em 15-3-2002]
A CARTA. Naquele dia levantei-me decidido a renovar a carta de condução portuguesa, custasse lá o que custasse. O primeiro passo a dar, tinham-me dito, era dirigir-me a um escritório da Direcção-Geral de Viação. Uma vez lá chegado e esperada meia hora na fila, uma simpática menina informou-me que eu necessitava de um atestado médico passado pelo delegado de saúde, presumo que a garantir que eu via bem e estava bom da cabeça. Lá fui em busca da Delegação de Saúde, que eu já não sabia onde era. Parei o automóvel logo que avistei um polícia, a quem pedi que me avivasse a memória. O polícia consultou um livrinho durante alguns segundos, coçou generosamente a careca por debaixo do chapéu e decidiu que não sabia. Mas comunicou com a esquadra pelo rádio e lá conseguiu dizer-me onde era. Já dentro da repartição, uma funcionária informou-me que eu necessitava de preencher o impresso modelo x à venda na livraria y, ao qual deveria juntar mais não sei quanto de selos. Depois era só entregar a papelada e dali a dois dias apresentar-me para ser visto pelo médico. Ocorreu-me perguntar-lhe porque razão não tinham eles ali os impressos de que eu necessitava, mas achei melhor calar-me ao imaginar que ela me ia responder que não sabia, que não era nada com ela, e às tantas ainda me ia emperrar o processo por causa do atrevimento. Perguntei-lhe apenas a que horas devia eu estar ali para ser visto pelo médico e se ela achava que eu iria ter que esperar muito tempo. Respondeu-me que o ideal seria logo pela manhã e que o médico tanto podia chegar de manhã como de tarde. Consultei o relógio já a descer as escadas da repartição e concluí que, para apanhar o tal impresso na livraria y, tinha que me apressar, pois estava a fechar para almoço e depois só dali a duas horas. Já a caminho da dita imaginei-me umas horas na delegação à espera que o cavalheiro se dignasse pôr lá os pés e assinar-me a papelada, provavelmente sem se dar à maçada de me consultar, e decidi logo ir almoçar e a carta que se lixasse. Já quase esquecido da aventura, cruzei-me com um amigo meu que eu não via há anos e a quem acabei por contar a minha desgraça. O meu amigo ouviu a estória calado e no fim perguntou-me: «Tens a papelada contigo?» Não tinha mas podia-se arranjar. «Então arranja lá os papéis que eu trato-te disso», rematou. Ainda me ocorreu perguntar-lhe se me estava a dizer que eu não necessitava de ser visto pelo delegado de saúde, mas achei melhor meter a viola no saco. Quis apenas saber quando poderia eu ter o processo de volta. «Se me deres hoje os papéis, fica pronto amanhã. Serve?» Servia. Despedi-me do meu amigo e fiquei a cismar no assunto. Realmente assim era tudo muito mais simples e eu não tinha que me incomodar. Além disso era uma maneira muito portuguesa de resolver este tipo de coisas, convinha não esquecer. A verdade é que fiquei tão revoltado que ainda hoje não tratei do assunto. Mas já tratei de saber onde encontrar o meu amigo. [Originalmente publicado em 4-3-2002]
MONTEIRO. O dr. Manuel Monteiro admitiu, no Verão passado, criar um novo partido político caso o CDS/PP não o quisesse para líder. Realizadas as eleições nos populares, em que Monteiro foi candidato a líder, o partido respondeu com uma estrondosa derrota. Passado um mês após o resultado humilhante, o dr. Monteiro volta a ameaçar criar um novo partido, agora depois de 17 de Março, supõe-se que depois de saber como ficaram as modas. Apesar de a ideia já ter quase um ano, ninguém sabe ao certo o que pretende Monteiro com este novo partido. Por junto, sabe-se apenas que pretende coligar-se com o PSD e, assim, chegar ao poder. E que Monteiro quer ser líder de um partido político, custe lá o que custar. Nem que, para tal, tenha que criar um. E depois queixam-se os nossos políticos de que a credibilidade de que desfrutam no mercado do voto já não é o que era. Como se não fosse por estas e por outras que deixamos de acreditar neles. Como se não fosse por estas e por outras que os nossos políticos se transformaram em pessoas a quem temos receio de confiar um simples guarda-chuva. [Originalmente publicado em 17-2-2002]
PORTUGAL DE FACHADA. Esta história do diz-que-disse à volta do novo Estádio da Luz ainda agora começou e já ultrapassou o que seria previsível. Segundo percebi, a grande questão é saber se Soares prometeu, ou não, dois milhões e meio de contos ao Benfica, e se garantiu, ou não, que iria rever o Plano Director Municipal de modo a permitir o aumento da área pretendido pelos seus dirigentes. Quer isto dizer que, se o doutor Soares admitir que prometeu aquilo de que é acusado, o novo presidente alfacinha satisfará as pretensões do Benfica? Tudo indica que sim. Apesar de qualquer leigo saber que este tipo de compromissos só é válido se existir no papel, o doutor Lopes aparece a querer legislar com base no diz-que-disse ou em hipotéticos compromissos verbais, julgando assim livrar-se de tão delicado imbróglio. Mas, se não há compromissos verbais, bem pode o doutor Lopes garantir que a Câmara não dará um tostão ao Benfica e o ministro José Lello insistir que o Governo não irá «alterar uma vírgula» ao que foi acordado. Ele há-de aparecer um expediente qualquer que permita dar a massinha ao senhor Vilarinho e, ninguém duvide, ela há-de sair dos bolsos de todos nós. Razão têm os dirigentes do Benfica em avançar com a obra mesmo sabendo que o ovo ainda está no cu da galinha, pois eles sabem bem que, chegado o aperto, o Governo ou a Câmara não têm coragem de lhes fazer um manguito. Como, aliás, muito bem sabem os dirigentes dos demais clubes da bola a braços com o mesmo problema, que já esfregam as mãos de contentes com a perspectiva de embolsar mais uns milhões. Porque as derrapagens orçamentais são por demais evidentes e os estádios da bola vão ter que estar prontos a tempo de exibir aos incautos o Portugal de fachada. [Originalmente publicado em 1-2-2002]
A ILUSÃO. Numa semana inteiramente dominada pelo regresso de Mourinho ao Futebol Clube do Porto, que mereceu honras de abertura dos telejornais durante dois ou três dias e directos televisivos a roçar o anedótico, apetece-me falar de um e-mail que recebi um dia destes. Dizia assim a missiva: «Somos uma empresa multinacional que tem 22 anos de mercado e está representada em 54 países. A empresa é líder mundial no seu sector e tem várias actividades para desenvolver a partir de casa ou de um escritório, podendo obter um excelente rendimento extra sem prejudicar o seu quotidiano.» Fui ver o sítio na «net» (www.trabalhe-em-casa.com) a pensar qual das minhas amigas teria fornecido o meu e-mail aos cavalheiros a pretexto, disseram eles, de que eu poderia interessar-me pelo negócio. O sítio contém mais de uma dúzia de histórias de sucesso («todas verdadeiras», evidentemente) mas não esclarece a natureza do negócio. Lá se fala vagamente de um «instrutor» que guiará os candidatos na «estrada do Sucesso» e que os ajudará a «desenvolver uma nova forma de pensar». O resto só numa entrevista, cujo formulário se encontra no sítio e as criaturas aconselham vivamente a preencher. E não se pense pedir informações suplementares por e-mail, porque eles têm mais que fazer do que responder a perguntas. Além disso, tirando a natureza da coisa, está lá tudo explicadinho em quilómetros de prosa. Não, não se trata de um daqueles esquemas para «enriquecer-depressa-sem-fazer-nada», como eles fazem questão de sublinhar. Muito menos um negócio destinado a «pessoas meramente curiosas», que eles não têm tempo para aturar curiosidades alheias. O negócio é sério e a prová-lo está o aviso de que é preciso ter muito cuidado com os «ladrões de sonhos», deixando a ideia que sabem bem do que estão a falar. Com certeza que, comparado com o negócio do senhor Pinto da Costa, esta estória de sucesso não passa de um fait divers sem qualquer importância e provavelmente nunca merecerá honras de abertura de um telejornal. Mas nem por isso deixa de ser outra forma de vender a mesma ilusão. [Originalmente publicado em 25-1-2002]
GATO POR LEBRE. Definitivamente que os escritores portugueses estão a ser maltratados nos novos suportes digitais. Depois de aqui ter alertado para o facto de o CD Vida e Obra de Eça de Queirós (Porto Editora) conter falhadas e erros de monta — alerta que provocou a arrogância dos seus responsáveis —, tenho vindo a descobrir que as obras completas de Eça e Camilo reunidas em CD (Projecto Vercial) contêm tantos erros que alguns títulos chegam a ser ilegíveis. Ele são as gralhas resultantes da digitalização (às centenas), ele são os erros de pontuação (às dezenas), ele são as omissões, ele é tudo o mais que se suspeita quando se vê tanta asneira junta. Chegam a ser tantos os erros numa só obra que se torna impraticável a sua leitura. Ou então fica-se com a sensação que não se está a ler a obra de Camilo ou de Eça mas de alguém que por ali andou a mexer. Escusado será dizer que todo este aparente desleixo (quero crer que é de desleixo que se trata) com que foi tratado Eça e Camilo não atinge só os autores, que não estão cá para se queixarem. Ele atinge também quem comprou os CDs, por sinal nada baratos, que só pode concluir que lhe venderam gato por lebre. [Originalmente publicado em 14-1-2002]
MENOS QUE ZERO. Cabeça cheia com o que vem nos jornais e já sem me lembrar bem do percurso, é sempre com precaução renovada que circulo no chamado IP4. Percorrido o dito e uma vez chegado ao destino, a conclusão a que chego é a mesma de sempre: é verdade que a estrada tem uma curva ou outra que ultrapassa a imaginação, mas não é menos verdade que está devidamente assinalada. O resto é conversa fiada e desculpas de mau pagador. Bem sei que, em pouco mais de oito anos, já lá morreram centenas de pessoas, mas ainda assim não me convenço de que o IP4 é uma estrada especialmente perigosa. Perigosos são os aceleras e os chicos-espertos que por lá circulam na mais completa impunidade, para já não falar dos alcoolizados, que os números dizem ser mais do que muitos. Um exemplo? Desloquei-me a Portugal numa altura em que estava ao rubro a famosa «tolerância zero». Como necessitava de fazer algumas viagens de médio e longo curso, tratei de me informar qual seria a velocidade a que poderia circular nas auto-estradas sem que a polícia me incomodasse. Disseram-me que até aos 140 seria razoável e... assim fiz. Mas não tardei a verificar que eu era o único que circulava àquela velocidade. A demais tropa fandanga passava por mim numa correria louca e até cheguei a sentir que eu andava ali a estorvar. E não exagero se disser que não vi a mais leve presença da Brigada de Trânsito em centenas de quilómetros de auto-estradas e vias rápidas, IP4 incluído. Ora bem, se tudo isto se passa em plena «tolerância zero», o que não se passará quando a tolerância for mais do que zero? [Originalmente publicado em 4-1-2002]
A LISTA. Baptista-Bastos tem vindo a disparar, no Diário Económico, contra todos os que têm silenciado uma extensa lista de escritores que, na sua opinião, merecem visibilidade. O ilustre jornalista chegou a ponto de revelar a lista das vítimas e deixou no ar a ideia de que sabe mais do que disse. Eu não sei se o colunista do DE tem, ou não tem, razão no que diz, mas não me custa acreditar que assim seja. Também não sei se deveria ter ido mais longe no que disse, nomeadamente revelar quem são os jornais e os jornalistas que vetam quem e porquê. O que eu sei é que esta estória me faz lembrar outro tipo de imprensa, para quem um escritor é visível, ou não, consoante tem, ou não tem, um passado antifascista. Seguramente uma imprensa que não indigna Baptista-Bastos, mas que nem por isso deixa de praticar o que ele diz repugnar. Uma imprensa onde um escritor com passado antifascista merece ser lido e estimado, mesmo que seja medíocre. Uma imprensa onde quem não tem esse passado, ou um passado «suspeito», não merece uma linha, mesmo que seja brilhante. Revoltante a lista de que fala Baptista-Bastos? Sem dúvida. Tão revoltante como todas as listas com a mesma finalidade. [Originalmente publicado em 28-12-2001]
UM MANGUITO. Numa altura em que os especialistas se debruçam sobre as últimas autárquicas e se discute a sucessão de Guterres, vale a pena lembrar o retrato que Pedro Almeida Vieira fez do poder local na última Grande Reportagem. Diz o jornalista que, salvo honrosas excepções, os nossos autarcas transformaram o País «num amálgama de problemas». E que, em vez de se envergonharem, ainda lhes deu alento para distribuir mais promessas do mesmo. A construção desenfreada, a falta de espaços verdes e de equipamentos culturais e de lazer, a insegurança nos centros urbanos, as deficiências no saneamento básico e a ausência de debate sobre as denominadas «estratégias de desenvolvimento local» constituem, segundo o jornalista, «o quadro fiel daquilo em que se tornou a gestão dos municípios». Um quadro onde impera a desresponsabilização e a fiscalização não existe. Onde a receita dos autarcas de sucesso passa por «dar muitos alvarás de construção», por «atribuir muitos subsídios» e por pressionar os governos a resolver os problemas que eles próprios criaram. Onde todos os males são da responsabilidade dos governos e o que há de bom foi feito pelos municípios. Onde as câmaras criam empresas a esmo com a única finalidade de escaparem à lei. Onde o «verdadeiro modelo de desenvolvimento» assenta nos arranha-céus, na grande construção e nas fontes luminosas. Enfim, um quadro dominado há anos por criaturas cuja maioria acaba de ser reeleita. Mas nada disto tem grande importância, como se viu no último domingo. Importante foi saber que os laranjas saíram melhor que a encomenda, que os cor de rosa apanharam uma abada, que o líder dos azuis sobreviveu ao dilúvio. Que grande parte dos autarcas continue impunemente a destruir o País em nome do «desenvolvimento», é assunto que não interessa. É por estas e por outras que me apetece fazer-lhes um manguito. [Originalmente publicado em 20-12-2001]
MISÉRIAS. Segundo O Independente, a direcção da Polícia Judiciária decidiu instaurar um processo disciplinar a um ex-director daquela polícia porque este terá ofendido a dignidade dos seus membros. O ex-director acusou a PJ de praticar ajudas de custo falseadas, de falta de coordenação nas investigações, de perda de recursos humanos e de haver agentes de departamentos diferentes a investigarem os mesmos casos. E terá perguntado: «Até que ponto tem a PJ moral para investigar fraudes praticadas por outrem, quando, no seu próprio interior, a fraude (...) é vulgar?» Convém lembrar que o agente em causa tem 35 anos de casa e é por muitos considerado um dos melhores profissionais da história daquela polícia. De maneira que seria melhor a PJ esforçar-se por resolver as misérias caseiras em vez de perder tempo e gastar energias com manobras cuja única finalidade é calar as vozes incómodas. Porque assim nada vai resolver e da fama já se não livra. [Originalmente publicado em 8-12-2001]
O PROGRESSO. Duas notícias publicadas recentemente pelo Semanário Transmontano vieram lembrar-nos as misérias do nosso poder local. A primeira dá-nos conta que o candidato do PP à Câmara de Murça anunciou que está na corrida à autarquia essencialmente por razões «de ordem moral, social e económica». Na ordem moral, o ex-sacerdote diz que, se for eleito, pretende devolver o velho crucifixo às escolas e obrigar os filhos a pedir a bênção aos pais, como se fazia antigamente. Na ordem social, o candidato afirma que pretende ganhar dinheiro. Assim mesmo: ganhar dinheiro. E, honra lhe seja feita, fez questão de deixar claro que não está a brincar. Na ordem económica, a criatura diz que pretende instalar no concelho uma fábrica de não sei quê que esteve para ser montada não sei onde. A troco de uma comissão, evidentemente, que ele está na política para ganhar o dele. A segunda notícia do Transmontano dá-nos conta de uma saibreira a funcionar numa reserva ecológica, ou seja, numa área onde este tipo de práticas devia ser impensável. E com uma pequena particularidade: é explorada por uma Câmara Municipal (de Chaves) e por diversas Juntas de Freguesia. Levantada a questão, as Juntas admitem o atropelo à lei e «compreendem» o problema, mas lembram que o saibro dali é de grande qualidade. Além disso, recordam, há que «compor caminhos e rasgar novos estradões». A autarquia local finge que não sabe de nada. Por junto, o seu presidente diz que a Câmara se limita a emprestar as máquinas às Juntas de Freguesia e que estas sabem muito bem o que andam a fazer. Aliás, se dúvidas houvesse que as Juntas sabem muito bem o que andam a fazer, o presidente apressou-se a garantir que, no lugar delas, faria na mesma. Evidentemente que tudo isto para bem das freguesias e, presume-se, do respectivo progresso. Aliás, deve ser por isso que as entidades responsáveis pela vigilância da área não sabem de nada, apesar de a saibreira ser visível a quilómetros de distância. Compreende-se. Lutar contra o «progresso» não compensa e tem inconvenientes. Excepções, estes senhores? Podem ser. Se virmos bem, a regra é capaz de ser pior. [Originalmente publicado em 27-11-2001]