FÁTIMA E FUTEBOL. Segundo o vigário-geral da diocese de Leiria e Fátima, padre Jorge Guarda, a revelação da primeira e segunda partes do segredo da Cova da Iria, há 60 anos, projectou mundialmente o fenómeno de Fátima e provocou um grande impacto na população, desencadeando uma onda de devoção a Nossa Senhora. Terá, inclusivamente, dado origem a «diversos movimentos religiosos que fizeram da revelação o seu estandarte e a curiosidade em relação a Fátima intensificou-se em todo o mundo». Seguramente que, com a revelação da terceira parte do segredo, na última segunda-feira, nada disso se vai repetir, já que os próprios católicos não gostaram do que viram e alguns reagiram mesmo com algum estrondo. Para além da previsível reacção do padre Mário de Oliveira, para quem a revelação do terceiro segredo é uma «desgraça de todo o tamanho» e a hierarquia da Igreja andou a enganar-nos uma série de anos, também outros representantes da Igreja Católica não se coibiram de manifestar o seu desagrado com o conteúdo do texto. Tudo porque o papa João Paulo II resolveu incluir-se entre os mártires do século XX, como afirmou o professor Jacinto de Farias, já que viu a sua própria pessoa como sendo o tal bispo de branco que, segundo a irmã Lúcia, é morto por um grupo de soldados «com vários tiros e setas». Convenhamos que, para quem estava à espera que o segredo falasse de uma terceira guerra mundial ou mesmo do fim do mundo, ver João Paulo II como personagem central só porque foi vítima de um atentado, ainda por cima falhado, só podia resultar numa tremenda desilusão. Sobretudo porque, durante anos, a Igreja Católica nunca mexeu uma palha para pôr termo à procissão de teorias apocalípticas que a retenção do segredo naturalmente acabou por alimentar. Mas é evidente que, comparado com a derrota de Portugal frente aos franceses, o segredo da Cova da Iria não passa de um fait divers. Realmente importante foi aquele maldito penalty nos últimos dois minutos, muito pior do que qualquer apocalipse anunciado. Também eu tenho muitas dúvidas que aquilo é mesmo um penalty, já que me pareceu bola na mão e não mão na bola. Mas o fiscal-de-linha não viu assim e o árbitro até viu um pontapé de canto, mas já nada se pode fazer e a história não se compadece com miudezas. Além disso, o penalty trouxe-me à memória o senhor Aigner, director-geral da UEFA, que poucos dias antes disse que gostaria de ver uma final entre a França e a Holanda. Custou perder assim? Custou, mas também teria custado perder nos penalties, onde a sorte quase sempre fala mais alto do que o saber dos artistas. Mas é preciso reconhecer que, a haver um vencedor durante o jogo, prolongamento incluído, seriam os franceses, já que foram eles que mais fizeram por isso. Mesmo sem o artista Zidane nos seus melhores dias, apesar de alguns lances de encher o olho me terem gelado a espinha. Além disso, o golo espectacular do Nuno Gomes foi contra a corrente do jogo, não nos esqueçamos disso, embora a circunstância não retire mérito ao «matador», que arriscou um surpreendente remate à baliza e nos fez acreditar que, afinal, tudo era possível. Com certeza que perdemos mas saímos de cabeça erguida, como gostamos de dizer para fingir que, assim, nos resta algum consolo. Estava escrito que o guarda-redes francês haveria de desviar para canto aquela cabeçada monumental do Abel Xavier, o mesmo que mais tarde iria deitar tudo a perder. Estava escrito também que Figo não iria estar nos tais dias de inspiração e com três adversários à perna sempre que tocava na bola, claro está que por culpa dos franceses, que traziam a lição muito bem estudada. É claro que, da próxima vez, até os comemos. O problema é que ainda faltam quatro anos e toda a gente diz que santos da casa não fazem milagres. [Originalmente publicado em 30-6-2000]
DIREITOS HUMANOS. Segundo um estudo da Universidade de Columbia, publicado com grande destaque pelo The New York Times, Washington Post e em Portugal pelo menos pelo Diário de Notícias, mais de dois terços dos processos dos condenados à pena de morte nos Estados Unidos contém erros graves. O estudo da universidade americana revela ainda outro dado espantoso: dos condenados à pena capital que viram os seus processos reabertos, 82 por cento escaparam à morte. Estes dados foram revelados pouco tempo após a Amnistia Internacional ter passado um raspanete público aos Estados Unidos por usarem a tortura e outros métodos de punição degradantes. Entre outros, a Amnistia pediu aos EUA que eliminem o uso de choques eléctricos como castigo para os presos, que não mantenham crianças em cadeias para adultos e que acabem com o uso de correntes amarradas aos tornozelos dos detidos. Mais ou menos na mesma altura, o Comité das Nações Unidas Contra a Tortura pediu aos americanos que suprimam os cintos aos detidos e as cadeiras especiais que lhes restrinjam os movimentos. O Comité manifestou ainda preocupação com os maus tratos infligidos por polícias e guardas prisionais, nomeadamente a agressão sexual contra mulheres detidas. A Amnistia Internacional e o Comité Contra a Tortura só não disseram que nas prisões dos EUA estão encerrados 25 por cento de todos os presos do planeta e que o número recorde motivou recentemente vigílias de protesto em 30 cidades norte-americanas. Também não disseram que os Estados Unidos atingiram a soma recorde de dois milhões de detidos e que o número quadruplicou nas duas últimas décadas. Que 50 por cento dos detidos são negros, condenados por tráfico ou consumo de droga, apesar de as estatísticas provarem que 70 por cento do consumo de drogas dos Estados Unidos é feito por brancos e os pretos representarem apenas 13 por cento da população. Tudo isto num País campeão dos direitos humanos, como se sabe, pelo que eu suspeito que estas revelações só podem ser uma brincadeira e não devem, por isso, ser levadas a sério. Não acham? [Originalmente publicado em 25-6-2000]
A VALSINHA. «Já chegou o dez de Junho/ o dia da minha raça/ tocam cornetas na rua/ brilham medalhas na praça». Não sei se estão lembrados da música, mas foi assim que Carlos Tê escreveu e Rui Veloso cantou na célebre Valsinha das Medalhas, que me vem logo à memória sempre que se fala de condecorações. Também este ano houve medalhas no 10 de Junho e uns desmancha prazeres que as recusaram, o que já começa a tornar-se um hábito. O historiador José Manuel Tengarrinha recusou a Ordem da Liberdade porque, entre outras razões, considera que as condecorações se «banalizaram» e «perderam dignidade». O jornalista Vicente Jorge Silva decidiu recusar não sei que medalha porque, imagine-se, não gosta «de coisas penduradas ao pescoço» e porque não lhe apeteceu. Obviamente que, por morrer uma andorinha (neste caso dois passarões) não acaba a Primavera. Por isso, aos restantes 28 que aceitaram as ditas dedico uma quadra ainda da Valsinha. É assim: «Quem és tu donde vens/ conta-nos lá os teus feitos/ que eu nunca vi Pátria assim/ pequena e com tantos peitos». [Originalmente publicado em 20-6-2000]
UM DISPARATE. O governo prepara-se para apresentar uma lei que fixa em 33,3 por cento a percentagem mínima de mulheres que deverão integrar as listas eleitorais. É a famosa lei da paridade, que em breve vai ser apreciada pelo Conselho de Ministros e depois pelo Parlamento. O diploma estabelece que as listas eleitorais para a Assembleia da República, Parlamento Europeu e autarquias locais devem ter uma representação mínima de 33,3 de cada sexo, o que significa um aumento de 8,3 por cento em relação a idêntica proposta feita no ano passado e que, devido à contestação generalizada, acabou por ficar na prateleira. Apesar de sempre ter visto com bons olhos o aparecimento de mais mulheres na política e de saber que as mulheres são melhores do que os homens praticamente em tudo, parece-me óbvio que esta lei, por mais bem intencionada que possa ser, é o mais rematado disparate. Parece-me claro que, em primeiro lugar, se não há mais mulheres na política é porque as mulheres não estão interessadas na política. Além disso, não me consta que existam por aí mulheres interessadas na política que, por serem mulheres, tenham sido impedidas de exercer qualquer cargo ou até mesmo de seguir uma carreira política. Suponho que, em matéria de listas eleitorais, os eleitores querem que elas sejam integradas por pessoas competentes, sejam homens ou mulheres. Criar uma lei desta natureza é, por isso, fomentar a mediocridade, já que muitas mulheres, como já sucede com os homens, não deixarão de ver a política como uma saída profissional ou um belíssimo tacho. E de políticos destes já nós estamos fartos. [Originalmente publicado em 15-6-2000]
ENTÃO É ASSIM. Estimulado pelo lançamento da Super Elite, uma publicação portuguesa especializada em assuntos mundanos, dei por mim a folhear as três principais revistas portuguesas congéneres e meia dúzia de coisas avulsas que se publicam por aí. Meia hora depois vocês nem queiram imaginar o que eu fiquei a saber. Eis alguns exemplos: a cantora Victoria Adams confessou estar muito preocupada com a sua magreza apesar de «comer que nem uma porca»; o cantor Prince disse que continua muito amigo da sua mulher e às vezes fazem umas «coisas juntos»; a noiva que aceitou casar com um milionário num show da televisão tirou a roupa para a Playboy e as fotos estão «lindas»; Whitney Houston disse à revista Out que não é lésbica nem «essas merdas todas»; a actriz Gwyneth Paltrow torceu o pé esquerdo; a modelo brasileira Luciana, mãe de um dos filhos de Mick Jagger, conseguiu que um tribunal de família aumentasse a pensão de alimentos do petiz de 1.900 para 6.650 contos por mês; o actor Sylvester Stallone foi apanhado numa tabacaria a folhear uma revista porno enquanto telefonava à mulher; a manequim Liz Hurley foi vista em topless e de chupeta na boca numa ilha exótica; o ministro Carrilho anda de amores com a Bárbara Guimarães com a bênção do nosso primeiro; a Lili Caneças jura que nunca ficou ofendida com Mafalda Mendes de Almeida; o futuro rei de Portugal fez cinco anos de casado e que deus o abençoe; o simpático e sorridente Frederico Moreira namora com uma catraia espanhola; a namorada de Mico da Câmara Pereira faz umas salsichas de estalo quando está inspirada; a Sofia Alves sofre imenso sempre que tem que se despir; o Júlio Isidro vai dedicar-se ao ensino; a ex-mulher de Rod Stewart contou a um tablóide britânico que vive há sete meses sem sexo; o patrão da CNN está «loucamente apaixonado» por uma professora de Inglês; Madonna confessou que a gravidez lhe tem dado desejos de azeitonas, ovos e frutos secos. Chega? Então só mais uma: seis garrafas de champanhe foram roubadas da residência do senhor Carlos de Inglaterra. Não, não é desse que estão a pensar, mas também não é caso para encolher os ombros e fazer de conta que nada aconteceu. De maneira que, se alguém souber do paradeiro das ditas garrafas, agradeço que me contactem. Muito obrigado e não se esqueçam de ler a Super Elite. [Originalmente publicado em 10-6-2000]
MÚSICA QUÊ? A Casa da Imprensa decidiu atribuir o Prémio Bordalo a um conjunto de personalidades que, em seu entender, mais se distinguiram nas áreas do jornalismo, da televisão, da música, etc., etc. Tirando Vítor Cunha Rego (prémio de Consagração de Carreira), que será um caso de unanimidade (tem a enorme vantagem de estar morto e enterrado), os restantes nomes escolhidos são, naturalmente, discutíveis, se é que ainda há alguém que perde tempo a discutir estas coisas de prémios. Eu não discuto a justeza dos nomes e muito menos o método adoptado. Mas permitam-me que faça um reparo: não será ligeireza de mais considerar que o repertório de Maria João e Mário Laginha é música ligeira? Mesmo sabendo-se que os rótulos que se põem na música são enganadores e alguns até disparatados, parece-me roçar o anedótico dizer que o duo português se integra no que vulgarmente se designa por música ligeira. É claro que os senhores jurados mostraram que não fazem a mínima ideia do que estão a falar e, provavelmente, nunca ouviram a música que acabaram por premiar. É claro também que, para o digníssimo júri, música «erudita» ou música «séria» é apenas a chamada música «clássica», mesmo que ela seja do mais «ligeiro» ou «primário» que se possa imaginar. É óbvio que a ligeireza dos senhores jurados não constitui propriamente uma tragédia, mas convenhamos que não dignifica nem os músicos nem os jornalistas. [Originalmente publicado em 5-6-2000]
O JOSÉ. A propósito da passagem dos 20 anos da CNN, José Rodrigues dos Santos contou, no Público, que uma vez viu o todo-poderoso Ted Turner «dez minutos à conversa com o porteiro» na sede de Atlanta. O nosso querido José contou ainda que, durante um almoço, perguntou ao magnata «o que faria se o governo americano alguma vez o impedisse de transmitir uma reportagem, por ela ser contrária aos interesses nacionais do país», ao que o todo-poderoso terá respondido: «Mudava a CNN para as Caraíbas». Depois destas revelações espantosas, não admira que o nosso estimável José ache que, na CNN, «há sobretudo uma paixão pelo ser humano, pelo planeta» e «pela liberdade». Também não espanta que venha dizer ao mundo que, se «fosse 13 anos mais novo, não teria ido para a BBC» mas para a CNN. Aliás, o nosso estimável José é o próprio espanto em pessoa. Ainda um dia destes o vi no pequeno écran e tive dificuldade em distingui-lo do boneco da Contra-Informação. [Originalmente publicado em 1-6-2000]
CAVACO OUT. Afinal, parece que o doutor Cavaco estava a brincar quando disse, no Diário de Notícias, que «devemos todos apoiar os jornalistas e os grandes empresários» na «missão patriótica de pressionar o Governo para que passe a governar». Segundo os especialistas, trata-se de uma vingançazinha que o nosso estimável doutor resolveu servir com requintes de malvadez. Eu confesso que nunca me passou pela cabeça que o homem estivesse a brincar, mesmo quando passou um atestado de incompetência aos partidos da oposição e, a coberto de ser um defensor dos governos estáveis, disse que o Executivo do senhor engenheiro deve manter-se em funções até ao final da legislatura. Nem sequer quando apontou os jornalistas como os salvadores da Pátria, ele que nunca escondeu o seu mais profundo desprezo por jornalistas a ponto de dizer que não lia jornais. Não acreditei que fosse uma brincadeira porque toda a gente sabe que o doutor Cavaco não esconde a ambição de regressar à política activa, pelo que se esperaria que aparecesse com um discurso mais sóbrio e responsável. Enganei-me redondamente, pelos vistos, já que a prosa no DN não passou de um manifesto de ressentimento e vingança. Ou de uma brincadeira, segundo alguns, embora sem grande sentido de humor e acabe por ir dar ao mesmo. Como nunca fui um grande entusiasta do doutor Cavaco, resta-me a consolação de saber que, por aí, não vai lá. [Originalmente publicado em 27-5-2000]
CÉSAR AUGUSTO. Na sua última crónica no Diário de Notícias, João César das Neves fez uma longa dissertação acerca da imprensa que merece alguns reparos. Segundo ele, «o problema central da imprensa» de hoje resume-se na palavra «verdade», que procura com obsessão e de forma dramática. César das Neves disse mais sobre a verdade: «(...) para ser conhecida, tem de ser amada. Quem busca a verdade de forma neutra, asséptica, desapaixonada, nunca a encontrará». Se me dá licença, eu discordo. Parece-me óbvio que, mesmo que nunca se chegue a alcançar, é menos difícil encontrar a «verdade» quando ela se procura de forma neutra, asséptica e desapaixonada, como o senhor diz, do que com a sua romântica história de amor. É sabido que o amor nem sempre é bom conselheiro quando se procura a verdade, já que, por regra, este não deixa grande espaço para um sempre recomendável distanciamento. Mais adiante, César das Neves meteu-se num terreno armadilhado. Segundo ele, «a imprensa, procurando ouvir todos os lados, mesmo os irrelevantes, dá um protagonismo aos pequenos partidos marginais, PCP e PP, muito para além do seu real significado político. E isso é ainda pior nos partidos microscópicos, como o Bloco de Esquerda, que têm menos apoio e relevância que um clube da III Divisão.» Eu volto a discordar. Não é função da imprensa dar maior ou menor protagonismo a quem quer que seja. A função da imprensa é divulgar o que achar relevante e, em última análise, destacar os assuntos que mais interessam ao seu público-alvo, atribuindo importância menor, ou até mesmo nenhuma, ao que não interessa aos seus leitores. Se este critério resultar num maior protagonismo dos «partidos marginais», é uma consequência e não um fim em si mesmo. A imprensa não tem que dar um tratamento proporcional às diversas forças políticas ou outras forças sociais. A sua missão é informar o que interessa aos seus leitores. Se a notícia está no PSD ou no Bloco de Esquerda, é irrelevante. A seguir, César das Neves meteu-se por um caminho que é, no mínimo, curioso. Diz ele sobre o tratamento que deve ser dado à informação: «O maior falhanço da nossa imprensa honesta vem nos casos em que os assuntos têm apenas um lado. Em muitos dos temas da actualidade há apenas uma forma natural e razoável de os abordar. Aí é que o princípio de 'ouvir sempre os dois lados da questão' cria os piores resultados. O esforço de gerar polémica, de abrir conflito, de suscitar dúvida, para assim poder cumprir a sua função de «forma equilibrada», torna-se gravemente prejudicial, como nos casos da especulação cambial, crime, droga e tantos outros recentes.» Infelizmente César das Neves foi muito genérico sobre os assuntos que têm apenas um lado e não explicou qual é a «forma natural» de os abordar. De qualquer modo, se o esforço da imprensa consegue gerar polémica, abrir conflitos e suscitar dúvidas, onde é que está o problema? Eu acho muito bem que a imprensa gere polémica, abra conflitos e suscite dúvidas. Gravemente prejudicial porquê? Confesso que isto me cheira a Estado Novo, tanto mais que, logo a seguir, acrescenta: «Quando, por exemplo, o senhor primeiro-ministro inaugura um hospital ou uma escola, isso é informação. Mas se nesse dia um idiota qualquer do Governo ou da oposição fez uma declaração bombástica, essa notícia irrelevante sobrepõe-se à informação interessante. Aquilo que interessa ao jornalista não é informar, mas dar o prisma estranho.» Descontando «o prisma estranho», que eu não percebi, este exemplo resume bem o que o senhor César das Neves pensa acerca do que deve ser a imprensa séria. O senhor quer dizer que, no caso em apreço, o mais importante é a inauguração do senhor primeiro-ministro, quando toda a gente sabe que uma inauguração como a que referiu é, por regra, um assunto sem grande interesse informativo (para os jornais e para os leitores). Mas não acontece o mesmo se «um idiota qualquer do Governo ou da oposição faz uma declaração bombástica», porque, como o senhor diz, se a declaração é bombástica toda a gente vai querer saber. Para além de que uma declaração bombástica não é necessariamente um disparate ou um fait divers, como é óbvio. Como se vê, o exemplo é péssimo, além de me cheirar a parentes falecidos. Seguramente que há razões para criticar o que se publica por aí na chamada «imprensa séria» e é mais do que saudável (e importante) que isso aconteça. Mas assim não vamos a lado nenhum. [Originalmente publicado em 23-5-2000]
O SEGREDO. Não sei se já repararam na gritaria que por aí vai por causa do terceiro segredo de Fátima. Tudo porque o secretário de Estado do Vaticano resolveu levantar uma ponta do véu e muita gente não gostou do que viu. Segundo o cardeal Sodano, parte do segredo está relacionado com o atentado ao papa a 13 de Maio de 1981. Como seria de esperar, a notícia correu mundo e as reacções da comunidade católica não se fizeram esperar. Segundo alguns, João Paulo II contemplou demasiado o umbigo. Segundo outros, a montanha pariu um rato. Preocupado com o alarido, o porta-voz do Vaticano prometeu que a divulgação integral do segredo vai ser feita dentro de cinco semanas, mais coisa menos coisa. Mais pragmático, o cardeal Ratzinger confirmou que o terceiro segredo tem uma «ligação evidente» com o atentado ao papa mas avisou que ele não contém mais novidades ou surpresas. Ratzinger aproveitou para lembrar que os católicos não são obrigados a acreditar na mensagem de Fátima e muito menos nas aparições da Virgem aos pastorinhos. Nem mais. Em duas penadas, o cardeal Ratzinger esvaziou o conteúdo do segredo e atribuiu-lhe a importância que ele julga que merece. Ou seja, nenhuma. Assim sendo, não se percebe porque é que esta história esteve tantos anos no segredo dos deuses, dando azo às teorias mais estapafúrdias que se possam imaginar. Em verdade vos digo que esta história do terceiro segredo de Fátima é bem mais patética do que eu imaginava. [Originalmente publicado em 19-5-2000]
AMÉRICA. Como devem estar recordados, uma criança norte-americana de 11 anos foi suspensa da escola durante cinco dias acusada de ter recitado um «poema brejeiro». A cena passou-se perto de Manhattan e a directora do colégio alegou que o pequeno teve o comportamento típico de um «depredador sexual». Este caso fez lembrar outro ocorrido há quatro anos, também em Nova Iorque, quando um rapaz de sete anos foi suspenso por igual número de dias por ter dado um beijo numa colega em pleno recreio da escola. Que se saiba, nenhum deles foi engrossar o número de prisões de crianças com menos de 10 anos que, segundo o Departamento de Justiça dos Estados Unidos, só em 1997 atingiu o espantoso número de 29.784. Entretanto, numa escola aqui perto existem autênticos bandos que se guerreiam entre si, casos de violação e seguranças que vendem droga aos alunos. Tudo nas barbas dos responsáveis pela escola, presume-se, já que eles não desconhecerão o que toda a gente sabe. Mas nada que se compare em gravidade aos casos dos fedelhos, evidentemente. Os primeiros vivem numa zona de ricos — onde acorrem três carros da polícia e cinco televisões no espaço de um minuto sempre que alguém dá um traque — e a escola de que falo situa-se numa zona de pobres — onde a polícia aparece meia hora depois para identificar o cadáver e o caso já não é notícia. [Originalmente publicado em 15-5-2000]
ESPECTACULAR. O senhor Rangel que me desculpe, mas raramente vejo televisão. Tirando um jogo de bola quando o rei faz anos, tudo o que vejo resume-se a meia hora ao almoço, às vezes nem isso. Mas o caso mudou de figura um dia destes. Obrigado a esperar umas horas num consultório e desprovido de alternativas, restou-me olhar para o boneco. Estava ligado num canal hispano de grande audiência e cheguei mesmo à hora das notícias. O jornal tem um título pomposo e um formato de se lhe tirar o chapéu. As reportagens sucedem-me a um ritmo alucinante. Sangue, desgraça e lágrimas com fartura. Coisa para deixar qualquer um de rastos. Anunciado até à exaustão, o melhor ainda estava para vir. Nada menos que uma bruxa queimada viva dentro da sua própria casa, depois de um doido varrido ter regado com gasolina o interior da moradia. Chegada a reportagem, vê-se a mulher preta que nem um tição a padecer numa maca. Grandes planos da vítima de vários ângulos e repetições como na bola. Muito bem visto, sem dúvida. Quase tão espectacular como as duas meninas que apresentam as notícias, ambas loiríssimas e com umas pernas que faz favor. Como pude verificar durante três dias, as respeitáveis meninas apresentam-se sempre com uns vestidos curtíssimos e sentadas a uma mesa ampla, deixando ver por baixo aquilo que deus lhes deu. Muito bem pensado, não há dúvida. Ainda alimentei a esperança de ver mais umas coisas para além das ditas, já que aquilo é directo e tudo pode acontecer. Infelizmente nada mais se passou e eu acabei por regressar, cabisbaixo, à minha dose diária de meia hora. [Originalmente publicado em 10-5-2000]
DEPUTADOS. Segundo as contas de O Independente, em seis meses de legislatura a Assembleia da República produziu um total de sete leis. Contabilizados os salários dos senhores deputados e outras despesas do Parlamento, fica-se a saber que cada uma delas custou aos contribuintes qualquer coisa como 997 mil contos. O doutor Almeida Santos desta vez não se indignou. Preocupado que anda com a imagem da AR, eu só posso estranhar o silêncio do senhor presidente. Sobretudo depois de há umas semanas atrás ter ameaçado rever o processo de acreditação dos jornalistas na AR só porque um jornal cometeu a imprudência de mostrar o que já toda a gente sabia. Lembram-se? Mas houve mais. Aparentemente mais calmo, uns dias mais tarde apresentou no Parlamento uma «proposta de reflexão» sobre o funcionamento da AR. Decerto não por acaso, logo no primeiro ponto o doutor Almeida Santos abordou a seguinte questão: «Como melhorar o nível de pontualidade dos Senhores Deputados no início e durante as sessões plenárias e outras reuniões parlamentares». Nem mais. Ficamos a saber, pela voz autorizada do presidente do Parlamento, que os senhores deputados não são pontuais e, pelos vistos, não há razão para que o não sejam. Imagino que os números de O Independente possam não ser tão espectaculares se o processo for examinado em detalhe. Mas não deixam de dar a ideia que a coisa podia sair mais barata se os senhores deputados se esforçassem um pouco mais. [Originalmente publicado em 6-5-2000]
SMALL SHOW SIC. O senhor Rangel anda visivelmente mal disposto. Mal um crítico desata a falar mal de um programa da SIC, vem logo a terreiro arrear no desgraçado. Percebe-se que o homem defenda a sua dama, mas percebe-se mal que desate a malhar a torto e a direito sempre que alguém diz que não gosta deste ou daquele programa. Percebe-se menos ainda que, invariavelmente, acabe por passar um atestado de incompetente, de meias tintas ou pseudo-qualquer coisa a tudo o que mexe que não seja do seu agrado. Está à vista que, para o senhor Rangel, bons críticos são aqueles que dizem bem ou não dizem nada. É claro que toda a gente sabe que o homem é um temperamental e daí não virá mal ao mundo. Só que alguém lhe devia dizer que este tipo de comportamentos quase sempre produz resultados inversos. A crónica em defesa de Herman José, publicada no Diário Digital, é um bom exemplo do que falo. Rangel veio demonstrar, com números e tudo, que o Herman é bom porque vende bem. Como se vê, o homem anda tão obcecado com os números que confundiu alhos com bugalhos. Parece-me óbvio que a história das vendas é um excelente argumento para exibir ao patrão ou para vender sabonetes, mas não convence quem não embolsa nenhum e nada tem para vender. Muito menos que o produto é bom ou não presta. [Originalmente publicado em 28-4-2000]
UM NOJO. Após uma operação policial que meteu armas automáticas, gás lacrimogéneo e distúrbios vários, o pequeno náufrago Elián González foi, finalmente, entregue ao pai. Os pormenores da operação são ainda escassos mas já deu para concluir que o petiz passou mais um mau bocado. Como se não bastasse ter visto a mãe morrer afogada e passar três dias à deriva numa câmara de ar, o pequeno cubano de seis anos viu agora um comando policial armado até aos dentes entrar na casa dos seus parentes de Miami e levá-lo à força. O pedido de asilo apresentado pelos parentes de Miami impede que o miúdo possa sair dos Estados Unidos enquanto não houver uma decisão do tribunal. Como se calcula, o caso está longe de terminar e não espantará que a criança venha a passar outros maus bocados. Contrariamente ao que muita gente pensa, o governo dos Estados Unidos portou-se bem neste caso, embora a operação de resgate me pareça pecar por alguma brutalidade desnecessária. O governo alegou existirem fortes indícios de que haveria gente armada pronta para impedir que o miúdo fosse retirado à força aos seus familiares. Seja como for, a verdade é que toda a gente viu que os cubanos anti-castristas de Miami não estavam propriamente a brincar quando ameaçaram «incendiar a cidade» caso o governo dos Estados Unidos se atrevesse a retirar o pequeno à força. Certamente que qualquer pessoa minimamente sensível ficou chocada com as imagens da operação policial e imaginará o pânico daquela criança. Eu tenho um filho mais ou menos da mesma idade e senti todo o processo com intensidade, não só a operação de resgate mas a evolução do caso desde a primeira hora. Vi como os activistas cubanos de Miami rapidamente adoptaram o miúdo como bandeira na luta contra o regime de Fidel, demonstrando, desde a primeira hora, que os interesses do petiz nunca foram a sua principal preocupação. Vi como os parentes chantagearam o pequeno ao ponto de este vir dizer em vídeo umas coisas muito convenientes que depois as televisões tiveram o despudor de exibir. Vi como um produtor de Hollywood veio anunciar, com a maior naturalidade, que já havia um acordo com uma das principais televisões americanas para fazer um filme que deverá ser visto por 50 milhões de pessoas. Vi como o vice-presidente americano e candidato à Presidência se apressou a colocar-se ao lado dos fanáticos cubanos por razões claramente eleitoralistas e se esqueceu que no meio da história existe um pai legítimo que reclama o direito de decidir o destino de um filho legítimo. Enfim, vi uma sucessão de episódios nojentos explorados até à exaustão por políticos sem escrúpulos e gente que só pode ser doente, para gáudio dos média e do zé-povinho. Nada disto me surpreendeu, como calculam, embora me tenha causado uma profunda revolta. Num país de reality shows e de guerras em directo na CNN, a única surpresa foi saber que esta operação não foi transmitida em directo pela televisão, à escala planetária e a horas decentes. Como é bom de ver, o caso rende muitos votos e vende que se farta. Quanto ao pequeno Elián, ele é tão querido, não é? [Originalmente publicado em 24-4-2000]
SINAIS DE FUMO. Um tribunal de Miami decidiu condenar a indústria tabaqueira a pagar 12,7 milhões de dólares de indemnização a três fumadores que contraíram cancro. Segundo os jornais, mais de meio milhão de pessoas poderá queixar-se do mesmo e embolsar, dizem as tabaqueiras, qualquer coisa como 300.000 milhões de dólares. A decisão surgiu pouco mais de uma semana após um tribunal californiano ter obrigado dois gigantes dos cigarros a pagarem 20 milhões de dólares a uma mulher que começou a fumar aos 13 anos e contraiu cancro de pulmão. Ao que parece, a senhora argumentou em tribunal que não terá conseguido deixar de fumar devido à publicidade das tabaqueiras, apesar da advertência nos maços de cigarros já existir desde 1969. O presidente Clinton esfregou as mãos de contente. Conhecido apreciador de charutos, o presidente americano não é, contudo, um amante dos cigarros e dos fumadores, e já fez tudo ao seu alcance para que os cigarros passem a constar da lista das drogas proibidas. Sem êxito, até agora, mas não por muito tempo. Uns dias depois cientistas japoneses vieram demonstrar que o fumo dos cigarros causa rugas. Estamos, portanto, tramados. Qualquer dia nem numa ilha deserta se pode fumar um cigarro descansado, já que não deixará de aparecer logo um cientista a demonstrar, com a inevitável resma de estudos encomendados pelas mais respeitáveis universidades, que o fumo dos cigarros pode causar danos irreversíveis às borboletas ou afectar seriamente a reprodução dos rinocerontes. Resta-me a consolação de saber que caminhamos rapidamente para a legalização das drogas. Com um bocado de sorte, a proibição dos cigarros coincidirá com a legalização da erva. Bem sei que a transição não será pacífica e provocará algum desconforto. Mas, como tudo na vida, é só uma questão de tempo. [Originalmente publicado em 19-4-2000]
GRANDE REPORTAGEM. Miguel Sousa Tavares anunciou que vai abandonar a revista Grande Reportagem. Não será caso para tanto, mas a notícia estragou-me o dia. Bem sei que o cemitério está cheio de indispensáveis, mas a sua saída não augura nada de bom. A decisão de abandonar a GR, disse ele, não se deve a problemas ou conflitos, mas eu duvido. Pegando no último número da revista, que se apresentou nas bancas após uma profunda remodelação gráfica, nota-se que houve também alterações de conteúdo, parece-me que agora mais aligeirado. Uma reportagem de meia dúzia de páginas sobre uma viagem de comboio pela Linha da Beira Baixa, que mais me pareceu uma redacção da quarta classe, é um exemplo da ligeireza de que falei. Relendo o editorial, MST diz que a GR «há-de continuar a não ser uma revista para a mediocridade triunfante, para a imbecibilidade, para a leviandade, para a ignorância grosseira ou para a boçalidade audiométrica». Eu volto a duvidar. Perguntarão alguns que importância é que isto tem. Eu respondo: para mim, muita. Sou um leitor compulsivo da GR, que considero uma referência no jornalismo português. Tenho receio, por exemplo, que acabem as denúncias aos atentados ao património por parte de um bando de patos bravos que por aí anda a presidir a municípios e que a GR tem denunciado como ninguém. Tenho receio que a GR se transforme numa revista mais virada para a forma do que para o conteúdo, de que o último número poderá ser já um indício. Tenho receio, por último, que isto seja o fim da GR que eu li com prazer durante anos, provavelmente devido à escassez dos tais leitores que não sejam medíocres ou imbecis. Espero, sinceramente, que eu esteja enganado. Mas duvido. [Originalmente publicado em 15-4-2000]
MULHERES. Um estudo de uma universidade norte-americana (mais um) concluiu que o aumento de partos prematuros, hipertensão e outros problemas susceptíveis de afectar negativamente a gravidez se deve, muitas vezes, às más condições em que trabalham as mulheres grávidas. Trabalhos que necessitem de mais esforço, como colocar volumes em prateleiras, «estão significativamente associados a partos prematuros, hipertensão e nascimento de bebés com peso inferior ao normal», diz o estudo. A investigação analisou os efeitos das condições laborais durante a gravidez em 160 mil mulheres trabalhadoras, entre 1966 e 1999, e eu pasmo com tanta erudição. Confesso que estava profundamente convencido de que o trabalho pesado, do tipo levantar pesos ou cavar a horta, só fazia bem às mulheres grávidas. Mas há mais novidades de mulheres e promessas de novas erudições. No mesmo dia em que foi apresentado o estudo de que falei, duas professoras universitárias portuguesas, uma delas «obviamente feminista», anunciaram que vão compilar um dicionário de «termos e conceitos feministas». Segundo elas, a ideia é colmatar «uma falha muito grande» em língua portuguesa. «Existem dicionários de tudo, das coisas mais estapafúrdias que se possam imaginar», dizem as senhoras. Como se vê, a lógica é implacável. Se existem por aí as coisas mais estapafúrdias que se possam imaginar, porque não mais uma? Chamar-se-á «Dicionário Terminológico de Conceitos, Teoria e Crítica Feminista» e deverá estar à venda no final do ano. Ana Luísa Amaral, uma das autoras, aproveitou a ocasião para dizer que «é uma vergonha não se ser feminista». Como se vê, em matéria de estudos sobre mulheres ainda está tudo por fazer. Deve ser por isso que eu, sobre mulheres, cada vez entendo menos. [Originalmente publicado em 10-4-2000]
PECADOS. Enquanto o Papa anda por aí a pedir desculpa por tudo e mais alguma coisa, o reitor do Santuário de Fátima já veio admitir que a instituição que dirige recebeu ouro roubado aos judeus nos campos de concentração do III Reich. A descoberta foi feita pela Visão e começou por causar um silêncio ensurdecedor por parte da Igreja Católica. Segundo a revista, ao todo foram 50 quilos de «ouro criminoso» depositados numa conta bancária ilegal. Como se calcula, a notícia não podia vir na pior altura, já que o Papa se prepara para ir a Fátima beatificar os pastorinhos. Da primeira vez, em 1981, João Paulo II saiu de lá com os intestinos furados. Lembram-se? Pois é, e o Papa ainda agradeceu à Senhora de Fátima por ter saído de lá com vida. Desta vez, o «socialista mais importante do mundo», como lhe chamou Gorbachov, tem, desde já, sarilhos anunciados. Se nada de mais grave acontecer, João Paulo II deverá ficar-se por mais uma desculpazinha e a coisa morrerá por ali. Porque, depois do ror de pecados que a Igreja Católica já admitiu ter cometido, obviamente que o ouro de Fátima não passa de um pecadilho sem importância de maior. Até porque ninguém ignora que a mais alta hierarquia da Igreja Católica continua a calar muitíssimos outros pecados cometidos ao longo da História, razão de sobra para que eu não veja motivo para se dizer por aí que João Paulo II cometeu uma proeza notável só porque teve o bom senso de fazer mea culpa por alguns deles e o gesto ter causado algum estrondo mediático. Pedir desculpa por um erro cometido é, julgo eu, o mínimo que se espera de uma pessoa de bem. Coisa que a Igreja Católica, mostrando timidez e falta de humildade, está longe de o ser. [Originalmente publicado em 5-4-2000]
BONECOS. Enquanto o presidente Clinton fotografava, na Índia, uns tigres em vias de extinção, os líderes europeus discutiam, em Lisboa, um assunto de crucial importância para o futuro da Humanidade. Foi na Cimeira Europeia de Lisboa e durante dois ou três dias não se falou noutra coisa. Além de outros assuntos importantes, embora incomparavelmente menores, os líderes europeus discutiram largamente entre si se iam, ou não iam, tirar o retrato de família. A coisa ganhou contornos dramáticos e um suspense que há muito não se via. E muita confusão nos jornalistas, a ponto de eu ter desistido de saber se, afinal, os nossos líderes posaram ou não para o boneco. Bem sei que é uma lacuna grave não saber isso e razão de sobra para um raspanete do Sindicato. Como cidadão empenhado e responsável, temente a deus e respeitável pai de família, admito que a coisa também não me fique bem. Mas o que realmente me preocupa é não perceber essa coisa da Áustria, provavelmente devido a deficiência de carácter ou outra maleita do género. Não consigo perceber porque é que os austríacos estão a ser alvo de sanções da «família» europeia só porque colocaram no governo do seu país um partido de extrema-direita. O partido é ilegal? Chegou ao poder à custa de uma fraude eleitoral? Violou alguma regra comunitária? Infelizmente parece que é legal, os resultados não foram contestados e de violação ninguém se queixou. Assim sendo, eu só posso concluir que os nossos líderes, com a palermice das sanções e a patética história do boneco, estão a tratar o povo austríaco como um bando de malfeitores ou de atrasados mentais. Como não me consta que seja uma coisa nem outra, eu até já estou a adivinhar que, a manterem-se as sanções e a multiplicarem-se as histórias de bonecos, o partido do senhor Haider vai subir a votação nas próximas eleições. Será uma espécie de vingançazinha que, essa sim, pode sair cara. [Originalmente publicado em 31-3-2000]
POETAS. O ministro Manuel Maria Carrilho e um grupo de caras conhecidas, entre as quais Pedro Abrunhosa, Maria do Céu Guerra, Luís de Matos, Margarida Pinto Correia e Bárbara Guimarães, decidiram comemorar o Dia Mundial da Poesia, na última terça-feira, distribuindo uns panfletos com poemas de autores portugueses. Se não me engano, a iniciativa denominou-se «trazer a poesia à rua» e o local escolhido foi a baixa lisboeta. Inquirida sobre a ideia, a actriz Maria do Céu Guerra disse que «a poesia não chega à rua e circula ainda num meio muito elitista». Pedro Abrunhosa disse que a iniciativa é uma «forma de homenagear o cidadão ao devolver a poesia às pessoas, porque a poesia pertence às pessoas». Eu confesso que o gesto e as declarações me comoveram até às lágrimas. Sem dúvida que é necessário que a poesia chegue à rua e, sobretudo, que seja devolvida às pessoas. Amante confesso de poesia e de vinho tinto (não estou seguro se por esta ordem), eu só posso aplaudir esta brilhante ideia. Porque, a partir de agora, nada será como dantes. Eu até já alimento a esperança de um dia ouvir a minha peixeira recitar uns versos de Pessoa enquanto me avia umas fanecas. Também não me surpreenderá se, um dia destes, o meu sapateiro me vier com dois poemas do O'Neil em vez das inevitáveis anedotas ordinárias. Nada me espantará. Nem se o meu vizinho do lado, que só diz alguma coisa de jeito quando não está avinhado (o que é raro), me entrar pela porta adentro a recitar Florbela ou até Luiz Vaz. A todos eles, em nome da poesia, a minha homenagem numa quadra: «Enquanto avio umas fanecas/ e o José põe meias solas,/ o meu vizinho bebe umas canecas/ e o Manel diz umas graçolas.» [Originalmente publicado em 27-3-2000]
INDIGNAÇÕES. O deputado social-democrata Fernando Seara ficou indignado com a publicação, na última edição do Expresso, de uma fotografia do hemiciclo praticamente às moscas. O socialista Manuel dos Santos, também ele deputado, juntou-se à indignação. Solidário com os colegas, o doutor Almeida Santos resolveu deitar mais umas achas na fogueira. O Presidente da Assembleia da República admitiu rever o processo de acreditação dos jornalistas na AR e fez uma ameaça: «não nos obriguem a tomar atitudes que não desejamos tomar». A Associação de Jornalistas Parlamentares protestou. Segundo ela, «a confiança profissional nos jornalistas é da exclusiva responsabilidade dos órgãos de comunicação social». O Sindicato dos Jornalistas exigiu aos senhores deputados que aplaudiram o doutor Almeida Santos uma «retractação pública». O subdirector do Expresso também não se ficou. Em declarações à TSF, Fernando Madrinha disse que «toda a gente se preocupa com os comentários que são feitos sobre a imagem, mas ninguém se preocupa realmente com a imagem que dá do Parlamento não estando, ou não cumprindo». Enquanto aguardo pelas cenas dos próximos capítulos de tão prometedora novela, aproveito para manifestar, desde já, a minha solidariedade aos senhores deputados da Nação, especialmente aos humilhados e ofendidos. Parece-me óbvio que o conteúdo do retrato (ou falta dele, como queiram) publicado no Expresso é razão de sobra para alarme. Afinal, ele mostra que, como dizia o outro, em política, o que parece é. [Originalmente publicado em 24-3-2000]
ARTISTAS. Sob o título Tudo o que você sempre quis saber sobre Arte, o crítico Alexandre Melo publicou, na Livros de Março, uma espécie de manual de bolso da arte e dos artistas. É uma sucessão de perguntas e respostas, como o título deixa adivinhar. As perguntas são elementares; as respostas simples e directas. Eis algumas: Pergunta: «O que é a Arte?» Resposta: «Arte é tudo aquilo que numa determinada sociedade se chama arte.» Pergunta: «Qualquer coisa pode ser Arte?» Resposta: «Claro que sim, desde que se apresente como tal e, assim, seja socialmente aceite por um pequeno círculo de especialistas.» Pergunta: «Qualquer pessoa por ser artista?» Resposta: «Claro que sim, desde que se apresente como tal e, assim, seja socialmente aceite por um pequeno círculo de especialistas.» (Assim mesmo, igual à resposta anterior). Pergunta: «Será que o sucesso depende de jogos de influência?» Resposta: «Completamente.» Que tal? Gostaram? Um verdadeiro artista, não é? Eu confesso que fiquei esmagado com tanta sabedoria. [Originalmente publicado em 21-3-2000]
ENGANOS. Uma mulher nova-iorquina arrisca-se a apanhar 30 anos de cadeia por ter recebido, indevidamente, mais de 700 mil dólares. Embora pouco comum, a história é banal: devido a um erro bancário, a ONU fez um total de 13 depósitos na conta da referida senhora julgando tratar-se da conta do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Descoberto o erro, a conta foi congelada. A senhora, que terá usado o dinheiro para pagar umas dívidas e montar um negócio, disse que a maquia lhe tinha saído na lotaria. A notícia teria passado despercebida se, mais ou menos na mesma altura, não tivesse sido anunciado que o quarto maior grupo bancário dos Estados Unidos acabara de criar um serviço que permitirá aos utilizadores enviar dinheiro através de correio electrónico. Com este serviço, dizem os banqueiros, qualquer cidadão pode ter acesso imediato à sua conta à ordem ou cartão de crédito e enviar dinheiro através de um simples e-mail. O grupo bancário, que promete não descansar enquanto não expandir o serviço à escala global, diz ainda que a ideia é facilitar pagamentos entre consumidores. Eu confesso que não duvido da utilidade do serviço e nada tenho contra o negócio. Mas já estou a ver que, um dia destes, o mais pacato cidadão corre o risco de receber dinheiro que não lhe é destinado só porque alguém se enganou no endereço electrónico. É claro que, detectada a tempo, a coisa pode não dar cadeia, mas já estou a adivinhar que o infeliz vai passar um mau bocado. [Originalmente publicado em 17-3-2000]
PALAVRA DE HONRA. O Governo aprovou recentemente uma proposta de lei que estabelece as regras de voto dos emigrantes nas eleições presidenciais. Entre outras coisas, a proposta prevê que os portugueses com dupla nacionalidade só poderão votar mediante uma «declaração de honra» de que não exercerão idêntico direito nos países onde residem. Confesso que a ideia da «declaração de honra» superou largamente as minhas expectativas. Muito mais simples do que citar dois versos de Camões ou trautear três compassos da Portuguesa, que não estão ao alcance de qualquer um. E, claro está, muitíssimo mais abrangente e um primor de clareza. O vice-presidente do Conselho Permanente das Comunidades Portuguesas já veio aplaudir a ideia, afirmando que «é justo que os cidadãos com dupla nacionalidade apenas exerçam o seu direito de voto num país». O secretário de Estado das Comunidades considerou a proposta «uma evolução extremamente positiva». Estamos, portanto, no bom caminho. Sem dúvida que, colocados entre escolher Portugal e o país onde residem, os cidadãos com dupla nacionalidade não deixarão de optar por votar nas presidenciais portuguesas, já que é em Portugal, como se sabe, que se gerem os seus destinos. Sem dúvida também que, debaixo de tal declaração de honra, os nossos confrades não irão depois votar nas presidenciais do país onde residem, caso as houver, até porque isso não têm importância alguma. Palavra de honra que eu até já fiz um esboço de um modelo de «declaração de honra», coisa simples e despretensiosa. É assim: «Declaro, por minha honra, que apenas votarei nas eleições presidenciais da minha Pátria. Tantos do tal, etecetera e tal». Como se vê, coisa simples, clara e abrangente. A bem da nação, evidentemente. [Originalmente publicado em 13-3-2000]
CONSELHO. Se conseguir reunir as 4.000 assinaturas necessárias, o Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP) vai pedir à Assembleia da República o aumento do número de deputados eleitos pelos dois círculos eleitorais da emigração. Com os actuais quatro deputados, diz o Conselho, os emigrantes não se sentem suficientemente representados. O CCP considera ainda inaceitável que «um dos grupos sociais que mais tem contribuído para a manutenção e progresso da sociedade portuguesa [os emigrantes]» esteja insuficientemente representado na Assembleia da República. O referido Conselho só não disse qual é o número de deputados que acha ajustado e muito menos qual foi o método utilizado para chegar à conclusão que chegou. Fez alguma sondagem? Utilizou outro mecanismo indicador que lhe permitiu chegar a essa conclusão? Na ausência de esclarecimento, presumo que não fez nem uma coisa nem outra, o que não deixará de ser levado em conta quando a proposta chegar, se chegar, à Assembleia da República. Sobre o projecto que prevê o aumento do número de deputados, parece-me óbvio que é um disparate, já que, se for aprovado, os círculos da emigração passarão a ter maior poder eleitoral do que os restantes. Os emigrantes passariam de um suposto défice de representação para uma situação de privilégio, o que é um absurdo. Não cabe na cabeça de ninguém, suponho que nem mesmo na cabeça dos directamente interessados (os emigrantes), que estes dois círculos eleitorais, ainda por cima detentores da maior taxa de abstenção (cerca de 76 por cento nas últimas legislativas), venham a usufruir de uma situação de privilégio. Por outro lado, é pura ilusão pensar-se que o aumento do número de deputados se traduziria numa melhor representação dos emigrantes no Parlamento, já que, segundo a lei eleitoral, a missão dos eleitos é defender os interesses gerais do País e não os interesses particulares dos círculos eleitorais que os elegeram. Assim se explica porque é que os deputados que residem em Lisboa, Porto e Coimbra, por exemplo, possam ser eleitos por Braga, Vila Real ou Bragança. Assim se explica também porque é que os deputados eleitos pelos círculos eleitorais da emigração não são, nem têm que ser, emigrantes. Se é ou não a forma mais adequada de representação, é outra conversa. O que me interessa realçar é que o Conselho das Comunidades veio demonstrar, uma vez mais, que conhece muito mal os emigrantes, muito menos as suas preocupações e anseios. Se conhecesse, rapidamente chegaria à conclusão de que os emigrantes se estão absolutamente nas tintas para qualquer aumento ou diminuição do número de deputados da emigração. Se o objectivo do CCP é mostrar serviço, que tal começar por fazer um levantamento dos reais problemas dos emigrantes? Bem sei que isso dá trabalho e nenhuma visibilidade mediática. Mas certamente que dará mais substância e rigor às causas que se propuser defender. Mostrará, em última análise, que o Conselho das Comunidades serve para alguma coisa. [Originalmente publicado em 9-3-2000]
FUMO. Especialistas de uma companhia norte-americana afirmaram, recentemente, que pode vir a ser produzida uma vacina contra o HIV (vírus da sida) a partir do tabaco. Poucos dias antes, uma equipa de médicos norte-americanos mostrou que, entre outras doenças do foro cerebral, a nicotina pode ajudar no tratamento da doença de Parkinson. Meditando nestes avanços da medicina enquanto saboreio um Marlboro Lights, desconfio que um dia destes os americanos (quem havia de ser?) ainda vão provar que o tabaco faz bem à saúde. Pelo sim, pelo não, eu já estou a pensar seriamente em deixar de fumar. [Originalmente publicado em 7-3-2000]
JARDINEIRA. Precisamente no dia em que o Estado do Texas comemorou o 164º aniversário da proclamação da independência, o doutor Alberto João desmentiu, em comunicado, que o seu governo vai gastar 500 mil contos com as cerimónias da inauguração do aeroporto da Madeira. A exorbitância foi avançada pelo Público, mas o todo-poderoso Alberto João já veio a terreiro dizer que é tudo mentira. Segundo ele, a verba deverá rondar os 40 mil contos, mais coisa menos coisa. Sobre o autor da notícia, Alberto João disse o costume: «o correspondente do Público só tem feito mal à Madeira» e «está imune porque nós vivemos num estado de direito democrático». Na ausência de elementos de prova, manda a mais elementar regra do bom-senso ficar de bico calado. Mas não resisto a fazer uma pergunta ao doutor Alberto João: porque será que as pessoas acreditam mais depressa numa "mentira" de um jornalista do que numa «verdade» sua? [Originalmente publicado em 2-3-2000]
PEIXEIRADA. O doutor Durão Barroso afirmou, alto e bom som, que Santana Lopes é «uma espécie de misto entre Zandinga e Gabriel Alves». Foi no congresso de Viseu, no último sábado, e ainda estou a ver a cara de gozo com que o disse. A afirmação provocou reacções dos visados: a viúva de Zandinga acusou o líder laranja de «abusar do nome de um falecido e ofender a sua família»; os colegas de Gabriel Alves consideraram a comparação «abusiva e de muito mau gosto», exigindo um pedido formal de desculpas. Parece-me evidente que a gracinha de Barroso foi, de facto, de muito mau gosto, imprópria de quem quer que seja, muito menos de um líder de um partido com a responsabilidade do PSD. Não só por atingir pessoas que nada têm a ver com o assunto, ainda por cima de forma grosseira, mas também porque o líder de um partido que pretende ser credível deve saber enfrentar um combate com elevação. Parece-me evidente também que a afirmação não surgiu por acaso, em declarações de improviso ou no calor da refrega, que teria um atenuante. Pelo contrário, surgiu durante um discurso importante, supõe-se que ponderado, no qual o líder terá apostado tudo para fazer passar as suas teses e esmagar os adversários. Assim sendo, parece-me óbvio que o doutor Barroso pensou muito bem no que disse, embora não tenha previsto os efeitos colaterais (Zandinga e Gabriel Alves). E foram precisamente esses efeitos colaterais, aliados ao forte impacte mediático, que seriam fatais para o líder, obrigando-o a vir a terreiro apresentar desculpas. Enfim, uma trapalhada que se ajusta muito bem à personagem, já que em todos os momentos decisivos se revelou um completo desastre. [Originalmente publicado em 1-3-2000]
TIROS NA MADEIRA. Segundo o Público de hoje, o deputado laranja Jaime Ramos ameaçou ontem, durante o plenário da Assembleia Legislativa da Madeira, «dar um tiro na cabeça» ao deputado comunista Edgar Silva. Ainda segundo o Público, durante a sessão, que ficou marcada pela troca de toda a espécie de impropérios, o secretário-geral e líder parlamentar do PSD local, importador de cimentos e construtor civil, membro da maior cooperativa de construção de habitação e da comissão que concede alvarás às empresas de construção civil, presidente do União da Madeira e proprietário de cinco rádios locais(*) disse ainda estarem esgotados «os limites de paciência dos deputados laranjas para com a oposição». O ilustre senhor acrescentou ainda que, a partir de ontem, o seu partido decidiu acabar com a tolerância e cortar relações com a oposição, pelo menos até Outubro, data das eleições regionais. Infelizmente o Público não esclarece se o número dois madeirense estava armado e, se estava, se a lei lho permite e possui a respectiva licença. Também fiquei sem saber qual vai ser, a partir de agora, a estratégia do PSD local face à oposição, findas que estão a paciência e a tolerância. Vai haver tiros? Facadas? Varapau? É evidente que, vindo de onde vem e de quem vem, nada disto surpreende. Eu confesso que não me espantaria se o deputado comunista aparecesse morto um dia destes, com duas balas na cabeça ou devido a um «acidente». E também não ficaria admirado se a justiça portuguesa, no caso (improvável) de não deixar prescrever o processo, viesse demonstrar que, afinal, se tratava de um mero suicídio, muito normal nestes casos, ou de um simples acidente, que pode acontecer a qualquer um. [Originalmente publicado em 24-2-2000] (*)
Os dados referentes ao currículo foram publicados na edição de Janeiro deste ano da revista Grande Reportagem
IGNORÂNCIAS. Segundo a Lusa e o Diário de Notícias, a Mulher Migrante - Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade, realizou um debate no último sábado. Depois de consultada a imprensa, fiquei a saber que esta associação, presidida pela deputada Manuela Aguiar, «conta já com mais de uma centena de associados», que o encontro não analisou apenas «políticas passadas mas também as linhas orientadoras para o século XXI» e que esta associação se tem esforçado «para fazer a ligação entre os vários núcleos de emigração nos países de acolhimento». Fiquei ainda a saber que, na sessão de encerramento, Manuela Aguiar defendeu que «o Estado deve desenvolver políticas que respeitem a opção das pessoas» e «medidas que sejam respostas concretas a essas alternativas». Finalmente, fiquei a saber que Mafalda Durão Ferreira, subdirectora-geral dos Assuntos Consulares e das Comunidades Portuguesas – que neste debate representou o secretário de Estado das Comunidades –, considerou «necessário partilhar a reflexão sobre o papel estratégico das comunidades portuguesas e o papel de Portugal nas suas relações internacionais com outras pessoas que não tenham esta abordagem». Depois destas «linhas orientadoras», confesso que fiquei sem saber duas coisas, presumo que sem grande importância, que são as seguintes: o que é a associação Mulher Migrante? O debate foi sobre o quê? [Originalmente publicado em 21-2-2000]
O 400º HOMICÍDIO. Faz hoje 400 anos que a Igreja Católica queimou vivo o filósofo italiano Giordano Bruno. Completamente nu e com uma farpa de madeira espetada na língua. Inquirido sobre o assunto, o papa João Paulo bateu ao de leve no peito e apressou-se a dizer que a Igreja Católica continua a considerá-lo um «herege». Sobre os juízes responsáveis pela condenação, o sumo pontífice não teve dúvidas: foram «motivados pelo desejo de servir a verdade e promover o bem comum, fazendo mesmo o possível para lhe salvarem a vida». Convém dizer que, entre outras mentiras, o monge dominicano imolado pelo fogo defendia a tese de que era o Sol, e não a Terra, que estava no centro do Universo. Quanto ao «bem comum», é bom que se diga que o napolitano foi um perigoso agitador da ordem pública, da moral e dos costumes, já que defendia a igualdade do homem e da mulher. É claro que o livre-pensador podia ter escapado à fogueira, como os juízes terão feito o possível. Só que o livre-pensador era isso mesmo, um livre-pensador, recusando renegar as suas teses. 400 anos depois, a Igreja Católica continua com dificuldade em aceitar a existência de homens livres e, quem sabe, a sonhar com o regresso da Inquisição. Lembram-se de um inquérito feito há uns anos atrás, junto dos jovens, em que estes disseram que Auschwitz nunca existiu? Pois bem, experimentem fazer um inquérito sobre a Inquisição. Aposto que a maioria dos nossos jovens vai responder que nunca ouviu falar ou, se ouviu, vai dizer que é o título de um filme do Spielberg. [Originalmente publicado em 17-2-2000]
NUCLEAR. Cinco dias depois de se ter verificado uma «pequena fuga» de vapor radioactivo numa central nuclear de Nova Iorque, que não terá chegado a atingir níveis perigosos, a tristemente célebre central congénere de Chernobil voltou a funcionar depois de ter sido reparado o mecanismo que provocou um vazamento de água radioactiva. Infelizmente nenhum dos dois acontecimentos mereceu grandes parangonas mediáticas, o que foi pena. Apesar de não terem sido divulgados grandes pormenores nos dois casos, parece-me ressaltar daqui duas evidências: em primeiro lugar, o acidente de Nova Iorque mostra que nem nos países mais ricos do mundo as centrais nucleares são seguras; em segundo, que a central de Chernobil continua a funcionar com uma segurança muito precária, como admitem as próprias autoridades ucranianas, que se queixam de não terem recebido ainda a prometida ajuda internacional que lhes permita, dizem eles, consertar mais duas centrais (Rivn e Khmelnitski) e encerrar Chernobil. A central de Chernobil foi protagonista, em 1986, do maior desastre nuclear do mundo. Lembram-se? Isto das centrais nucleares ainda vai acabar mal. [Originalmente publicado em 16-2-2000]
SEMANÁRIO TRANSMONTANO. É reconfortante verificar que já vão aparecendo pela província jornais a sério. O Semanário Transmontano, de Chaves, é um bom exemplo. Só quem conhece a chamada imprensa regional sabe bem como é difícil fazer jornalismo na província, onde os poderes instalados não estão habituados a isso. [Originalmente publicado em 14-2-2000]
ÁGUA BENTA. O semanário Expresso publicou, na primeira página da edição de 12 de Fevereiro passado, sob o título «Filho de D. Duarte baptizado com água do Jordão», a seguinte notícia: «Dinis de Bragança, o terceiro filho do pretendente ao trono, vai ser baptizado com água do rio Jordão no decorrer da missa que o bispo D. Armindo Coelho celebra no próximo sábado, a partir do meio dia, na Sé do Porto. A água do Jordão foi trazida a Duarte Pio de Bragança por um monárquico, para ser usada no baptizado que reunirá 700 convidados e orçará em cerca de seis mil contos. A recolha de fundos para o baptizado foi feita por uma comissão que integra Luísa Neiva de Oliveira, Maria Antónia Cadilhe e Fernanda Amorim. Dinis de Santa Maria Miguel Gafael Frabriel Rancisco João de Bragança nasceu a 25 de Novembro e assim que atingir a maioridade receberá o título de duque do Porto. O jovem infante envergará exactamente o mesmo vestido usado pelo pai no seu baptizado, há mais de meio século. A mãe, Isabel Herédia, será vestida por Laurinda Farmhouse.» Para que não se corra o risco de passar despercebida, decidi transcrever aqui esta notícia na íntegra, embora sem a devida autorização. Ainda que modestamente, pretendo, com este gesto, homenagear um certo jornalismo de referência, de que o Expresso é um arauto e esta notícia um exemplo esmagador. [Originalmente publicado em 13-2-2000]