OS NERVOS DA JUSTIÇA. Esta história à volta da Universidade Moderna cheira mal deste o início. Agora é a juíza que se vem queixar de «pressão intolerável» de «alguma imprensa» e de um dos advogados dos arguidos, que terá pressionado (ou mesmo ameaçado) funcionários para que estes lhe facultassem partes do processo que, por lei, lhe estão vedadas. Foi durante uma entrevista à televisão do Estado e as reacções não se fizeram esperar. Para o ministro da Justiça, é «intolerável que um magistrado fale num órgão de comunicação social sobre um caso que está nos tribunais». Para o bastonário dos advogados, a defesa deve pura e simplesmente pedir o afastamento da juíza. Para o secretário-geral da associação dos juízes, é estranho que o bastonário dos advogados não se tenha igualmente «pronunciado sobre o caso quando os advogados criticaram publicamente a juíza». Para largos sectores de opinião, porque não haveria a juíza de defender a sua honra se os advogados não se inibem de andarem por aí a fazer insinuações e a dizer enormidades? Enfim, independentemente do desfecho desta história e de a juíza ter metido — ou não ter metido — o pé na argola, tornou-se novamente claro que a Justiça fica à beira de um ataque de nervos sempre que lhe toca julgar arraia graúda. Assim sendo, que justiça pode esperar um anónimo cidadão que nunca fez mal a uma mosca e não tem grossas maquias no banco se um dia tiver o azar de enfrentar um tribunal? [Originalmente publicado em 1-7-2001]
AGORA É QUE VAI SER. Como seria de esperar, as multas aplicadas aos responsáveis pelos touros de morte em Barrancos acabam de ser anuladas por um tribunal. Por falta de provas, evidentemente, que isto de provar que houve morte de touros em Barrancos e consequentes responsáveis por isso sempre se afigurou tarefa difícil. Antes que venha por aí o habitual coro de mal-intencionados e quem duvide da justeza da decisão, a juíza fez questão de esclarecer, durante a sentença, que os responsáveis «não vão absolvidos pela tradição mas sim por não ter sido produzida prova concreta». Convém recordar que a sentença pôs a salvo a Câmara Municipal de Barrancos e o seu presidente, os cinco elementos da comissão de festas e os três matadores espanhóis, que já não vão ter que pagar as multas que, todas juntas, ascendem a uns largos milhares de contos. Curiosamente, todos ilibados por razões diferentes. Os toureiros, por exemplo, porque o tribunal não conseguiu identificá-los. Mas a juíza já foi avisando que «há agora uma lei em vigor e esta é para ser cumprida», que «a tradição não vai ficar acima da lei», que se passou em 2000 «mas não vai passar-se este ano». Palavra de honra que foi isto mesmo o que a juíza disse. E consta até que sem se rir. [Originalmente publicado em 21-6-2001]
AIR PORTUGAL. As peripécias que ontem rodearam dois voos da TAP de Lisboa para o Funchal, que provocaram uma onda de indignação nos passageiros alegadamente devido ao mau serviço prestado pela nossa companhia aérea, trouxeram-me à memória a minha última viagem de Portugal para os Estados Unidos, no último Verão. «Por razões meteorológicas», o voo TAP Lisboa-Newark em que eu tinha previsto regressar foi cancelado, tendo-me sugerido um funcionário que viajasse nesse mesmo dia num outro voo, com escala em Madrid e chegada a Nova Iorque. Ponderados os prós e os contras, e tendo-me o funcionário garantido transporte de Nova Iorque até à minha residência, resolvi aceitar a sugestão. Chegado a Nova Iorque, já depois de saber que as «razões meteorológicas» não passaram, afinal, de pura aldrabice, transporte não havia. Contactado o balcão da nossa querida transportadora, informaram-me que desconheciam a situação. Disseram-me os funcionários que ninguém os avisara de que era necessário transporte para os cerca de 15 passageiros que, como eu, optaram por viajar daquele modo, e eu confesso que fiquei indignado mas nada admirado. Depois de sabermos que metade da nossa bagagem tinha ficado em Espanha, só nos faltava agora não termos o transporte prometido. Protestámos. Alguns, forte e feio. Duas horas e meia depois lá nos disponibilizaram um autocarro. Não para nos levar às nossas residências, como esperávamos e nos tinham prometido, mas para nos deixar no aeroporto onde deveríamos ter desembarcado. Enfim, uma atitude típica do «tomem lá, mas não digam que vão daqui». Dir-me-ão que é uma situação que pode acontecer a qualquer companhia. Evidentemente que pode. O problema é que os últimos incidentes do Funchal e o que acabo de contar não são casos isolados. Basta perguntar aos passageiros que no último Verão viajaram na TAP de Lisboa para os EUA para se ouvir toda a espécie de histórias. E posso garantir-vos que algumas ultrapassam largamente a imaginação. [Originalmente publicado em 15-6-2001]
UM ABUSO. Dez minutos depois de ter instalado no computador Vida e Obra de Eça de Queirós, um CD-ROM da Porto Editora acabadinho de chegar da terrinha, chegou-me a mostarda ao nariz. Para minha surpresa, a maioria dos textos não se consegue copiar de uma vez só. Só janela por janela, ou seja, além de um verdadeiro teste aos nervos, uma eternidade caso se decida copiar um texto na íntegra e inseri-lo num processador de texto. Procurei nas opções do programa a solução milagrosa. Nova surpresa: não havia. Existem apenas duas opções, ambas irrelevantes e a roçarem o anedótico. Enfim, esgotei a paciência e adiei para melhores dias a exploração do programa. Não sem nova surpresa: o ecrã de saída ficou ali a exibir uma interminável ficha técnica, bem à maneira do cinema, e só desaparece após exibir tudinho o que há para exibir. Enfim, um autêntico abuso. Mas eu já devia ter aprendido a lição. Afinal, a minha péssima experiência com os produtos da Porto Editora já vem de longe. A primeira foi com o corrector ortográfico FLIP, que nunca mais consegui instalar depois de ter sido forçado a apagá-lo. A seguir foi novamente com o FLIP, desta vez com a versão mais recente, que também não consegui reinstalar. Depois foram os dicionários da Língua Portuguesa, de Português/Inglês e de Inglês/Português, que fui obrigado a reinstalar pelas mesmas razões e... até hoje. Tudo isto depois de ter recorrido ao suporte técnico, muito simpáticos no caso do FLIP e a roçar o desprezo no caso dos dicionários. Após dias e dias de e-mails para lá e para cá, concluíram os técnicos que o problema se devia à velocidade do processador do meu computador. Qualquer um dos quatro programas tem problemas a instalar em máquinas superiores a 450 Mhz, disseram, e eu lembrei-me logo que a primeira instalação foi feita quando o meu computador tinha um processador de 400 e hoje é de 550. Ou seja, a história da velocidade fazia sentido. Esperei que me mandassem as novas disquetes com a solução milagrosa. Não sem reparar que, no caso do FLIP, foi preciso mandar-lhes primeiro as disquetes antigas para que eu pudesse receber as novas. Ou seja, o erro é deles e ainda me vieram com exigências. Não sem reparar também que, a ser verdadeiro o prognóstico dos técnicos, o erro é, no mínimo, infantil, e que a solução deveria estar disponível online. Enfim, chegadas as disquetes (para variar, uma delas não funciona), lá consegui instalar o FLIP e os dicionários, mas os segundos só parcialmente. A opção que prevê a instalação completa dos dicionários pura e simplesmente não funciona, o que me obriga a introduzir os CDs sempre que necessito de usar qualquer um deles. Mas não me dei por vencido. Meditei uns dias no assunto e resolvi avançar para uma solução que, segundo a lógica dos técnicos, seria remédio santo: regressar ao processador de 400 e depois instalar os ditos. Assim fiz e... nada feito. A partir daí perdi definitivamente a paciência e deixei de usar o FLIP e os dicionários. O primeiro porque me obriga a utilizar o Word97 quando eu já uso o Word2000 há uns meses valentes (a Porto Editora ainda não disponibilizou o FLIP para Word2000, o que é um absurdo e uma falta de respeito pelos utilizadores), e os segundos porque, mesmo que os consiga instalar integralmente, já sei que amanhã vou ter de novo problemas. De maneira que só me resta agora não me esquecer de verificar de quem são os produtos que estou interessado em comprar. Para ter a certeza que não volto a adquirir produtos da Porto Editora. [Originalmente publicado em 5-6-2001]
AUTO QUÊ? Faço parte do reduzido número de pessoas que nunca viu um reality show. Tirando uma cena ou outra por alturas do café da manhã, tudo o que sei das chamadas telenovelas reais resume-se ao que li nos jornais ou ao que alguém me contou. Aliás, faço parte do reduzido número dos que, por regra, não vê televisão. Não que eu tenha alguma coisa contra a TV. O meu problema com a televisão é que me fartei. Fartei-me dos anúncios a toda a hora, dos filmes que passam a desoras ou que não me interessam, da generalidade dos programas de entretenimento. Até dos noticiários me desinteressei. Mas continuo atento ao fenómeno televisivo e a acompanhar as mudanças que se vão introduzindo com o objectivo de sobreviver ou de conquistar audiências. De maneira que foi sem surpresa e com algum gozo que tomei conhecimento da cena do Bar da TV. Sem surpresa porque o Big Brother e os Acorrentados deixavam adivinhar o que vinha a seguir. Gozo porque ainda me lembro do senhor Rangel dizer que o Big Brother ultrapassava todos os limites e violava todas as regras da dignidade humana, razão pela qual a SIC jamais podia exibir uma coisa daquelas. Enfim, depois do episódio Subtil e do desastre da ponte, as televisões voltaram a dar que falar, de novo pelas piores razões. E, tal como então, lá vem de novo a teoria da auto-regulação, como se a auto-regulação fosse a poção milagrosa que pusesse termo à actual bandalheira ou evitasse o que está para vir. Bem sei que ninguém quer ouvir falar de censura ou doutras formas mais ou menos disfarçadas de censura que já se ouve falar por aí. Mas com auto-regulação não vamos lá. Até porque, caso fosse possível, não tenhamos dúvidas de que ela seria violada logo à primeira oportunidade. [Originalmente publicado em 23-5-2001]
LIVRO ELECTRÓNICO. Uma das últimas crónicas da Clara Ferreira Alves veio relembrar-me o prazer que é ler num eBook. Em primeiro lugar, porque os livros disponíveis para esta maquineta são infinitamente mais baratos do que os livros em formato «tradicional», com os quais a Clara diz gastar uma fortuna. Depois, porque há por aí milhares de títulos de borla, coisa que em papel não me consta que existam. E não se esgotam aqui as vantagens do livro em formato electrónico. Além de permitir ler praticamente em quaisquer circunstâncias (completamente às escuras, por exemplo), é possível carregá-lo com cerca de quatro dezenas de livros, permitindo transportar uma pequena biblioteca no bolso do casaco. Desvantagens? Algumas. A principal é não ser um livro em papel, isto é, não existir como objecto. Depois, porque não abundam as edições em português, embora o tempo se encarregará de corrigir a lacuna. É claro que não é fácil prescindir do livro como objecto (o grafismo, a textura, os caracteres, o cheiro, por aí fora). Mas já não troco o eBook pelo livro «tradicional». Até porque já não prescindo de ler textos tirados da Internet, dantes lidos no ecrã do computador ou desprezados por ter que os ler dessa forma. E não me venham dizer que o livro tem os dias contados, como já ouvi dizer por aí. O pior que pode acontecer é o computador substituir o papel. E, se assim for, não vejo onde está o mal. Antes pelo contrário. [Originalmente publicado em 14-5-2001]
ABRIL. Revi, há quase uma semana, uma cena ou outra do famoso Capitães de Abril. Tirando um pormenor ou outro, lembro-me de ter gostado da fita. Em primeiro lugar, gostei da forma como Maria de Medeiros abordou tão melindroso assunto, inclusive a parte ficcional, embora não me pareça que o personagem Chamarro tenha acrescentado alguma coisa ao filme. Em segundo lugar, gostei do desempenho dos actores, especialmente de Joaquim de Almeida, embora uma cena ou outra me tenha cheirado a teatro amador. Em terceiro lugar, gostei de saber que Salgueiro Maia aparece como o herói do 25 de Abril, mesmo que seja o tal «herói romântico» de que tanto se falou. Porque foi ele quem arriscou tudo, inclusive a própria vida. Porque nada exigiu em troca. Porque não caiu na tentação do poder. Porque teve a lucidez de sair ao de leve pela porta das traseiras. Enfim, um herói que já não se usa e que a história registou quase por um mero acaso. Finalmente, gostei de ver a revolução parada no famoso sinal vermelho, verdade que nem a mais engenhosa imaginação se lembraria de inventar e que me parece um bom exemplo da utopia em estado puro. Da utopia que em pouco tempo ficaria reduzida a um mero substantivo que já não se usa. [Originalmente publicado em 1-5-2001]
AREIA NA ENGRENAGEM. O comissão de inquérito à tragédia de Entre-os-Rios aponta a falta de fiscalização e a extracção de areias como as principais causas da queda da ponte. Segundo a Lusa, o presidente da Junta de Freguesia de Raiva foi o único autarca da zona do desastre a afirmar, perante a comissão, que havia «uma extracção desenfreada de areias» no Rio Douro. «As causas do colapso do pilar da ponte estão na extracção desenfreada de areias (...) ao longo dos anos», disse ele à comissão. Outros dois presidentes de Junta e mais dois presidentes de Câmara da área da tragédia afirmaram nada saber sobre o assunto. Entretanto, ainda segundo a Lusa, «fonte ligada ao processo de extracção de areias do leito do Douro» classificou a actividade como «uma verdadeira mina», que não só «enchia de dinheiro os cofres do Instituto de Navegabilidade do Douro, mas também muita gente». Algumas das autarquias da área das extracções recebem anualmente «entre mil e três mil metros cúbicos para as suas actividades, nos termos das hastas públicas das concessões», disse a mesma fonte. Curiosamente, as «doações» não são referidas no relatório da comissão de inquérito, tal como não são referidos os chorudos lucros obtidos pelo Instituto de Navegabilidade do Douro, na ordem dos vários milhões de contos. E, como seria de esperar, também desconhecidas do presidente da Associação Nacional de Municípios. Aliás, suspeita-se até que a grande maioria dos autarcas da área nem sequer lhes passe pela cabeça que existe extracção de areia no Rio Douro. A razão é simples e ao alcance de qualquer leigo: é uma actividade difícil de detectar a olho nu. [Originalmente publicado em 19-4-2001]
BASTONADAS. O bastonário da Ordem dos Advogados acusou o Governo de comprar deputados, de interferir nas investigações e de tentar controlar a Justiça. As declarações de Pires de Lima mereceram aplausos mais ou menos generalizados, excepto, é claro, dos visados. Dizem-me que foi uma atitude corajosa, oportuna, que o homem merece aplausos pelo trabalho que fez à frente do organismo que dirige. Seja, mas eu discordo. Em primeiro lugar, porque penso que não é com peixeiradas destas que se discutem os graves problemas da Justiça, muito menos promovidas por quem tem responsabilidades na matéria. Por último, esperava-se que, face à gravidade das acusações, o senhor Pires de Lima apresentasse provas do que disse. Como não o fez, e porque sabe muitíssimo bem que ficaria impune caso fosse processado e se provasse que não tinha razão, eu só posso concluir que o bastonário é bem o espelho da pior Justiça que temos. Da Justiça que se destina apenas ao consumo mediático e se esgota em exercícios de puro exibicionismo. [Originalmente publicado em 5-4-2001]
BENZA-OS DEUS. Enquanto os média portugueses se desdobravam em meas culpas mais ou menos patéticas por causa da desgraça da ponte e o Correio da Manhã fazia manchete com um anúncio disfarçado de notícia, responsáveis por um jornal de Hong Kong (South China Mornig Post) requisitavam os serviços de dois monges budistas para exorcizar os fantasmas e os maus espíritos que vinham assombrando os funcionários da empresa. Segundo a CNN, o próprio director da publicação e outros membros do South China fizeram reverências diante de um pequeno altar propositadamente erigido para o efeito. Infelizmente a notícia não nos dá conta do que aconteceu a seguir, nomeadamente se os fantasmas deixaram de incomodar os respeitáveis cavalheiros. Mas presume-se que a receita tenha resultado, que isto de exorcismos não costuma falhar nestes casos. De maneira que eu recomendaria aos média portugueses que considerem a ideia dos chineses. Não só para afastar os maus espíritos e os fantasmas que por aí andam a bater com a mão no peito mas também as altas figuras do Estado, que num dia marcam a «agenda» para o jornal das oito e no outro desancam em quem lhes deu importância no mesmo jornal das oito. Além disso, seguramente que de share garantido caso as televisões decidam transmitir em directo. Talvez mesmo um caso de serviço público. [Originalmente publicado em 29-3-2001]
RIDÍCULO. Depois do patético Quero insurgir-me (título de uma crónica no Diário de Notícias), onde verteu lágrimas de crocodilo pelos excessos das televisões (da concorrência, obviamente), o doutor Rangel veio agora insurgir-se contra a nomeação de João Gobern para não sei que cargo que lhe permite avaliar candidatos a não sei que lugares. Segundo Rangel, a nomeação é «anedótica», já que o currículo de Gobern é «vulgaríssimo» e não se lhe conhece obra feita. Além disso, Gobern tem a mania de desancar os programas da SIC, a ponto de o senhor Rangel perder a cabeça e ir para os jornais insultar o jornalista. Não, Rangel não invocou este último argumento para defender a sua brilhantíssima tese. Aliás, nem precisava. Cheira à légua que, para o doutor Rangel, o grande handicap de Gobern resulta de ter criticado os programas da SIC. Pelo que os argumentos contra Gobern acabam por cair por terra e só servem para o doutor Rangel se cobrir de ridículo. [Originalmente publicado em 22-3-2001]
UMA DESGRAÇA. Não, não vou falar da desgraça da ponte e da «dignidade» do ministro que se demitiu para que a culpa não morresse solteira, como se a culpa não morresse solteira só porque se demitiu um ministro. Também não vou falar do espectáculo miserável das televisões, barricadas pelas desgraças em nome das audiências. Hoje vou falar doutras desgraças, mais precisamente da desgraça de Teodorico Raposo, personagem queirosiano que apanhou uma belíssima tareia por se ter atrevido a meter o nariz onde não era chamado. A cena passou-se em Jerusalém, onde o respeitável bacharel foi em romagem de fé e a expensas da beatíssima tia. Foi logo na primeira noite, quando descobriu que os seus aposentos eram paredes meias com o quarto de uma inglesa que ele já tivera ocasião de apreciar «devoradamente cada uma das suas perfeições», apesar de acompanhada por um latagão que ele baptizou de «barbaças». A cena faz parte de A Relíquia e é memorável. Aqui vai:

«Suspirei, amoroso e moído; e abria os lençóis bocejando — quando distintamente, através do tabique fino, senti um ruído de água despejada numa banheira. Escutei, alvoroçado; e logo nesse silêncio negro e magoado que sempre envolve Jerusalém, me chegou, perceptível, o som leve de uma esponja arremessada na água. Corri, colei a face contra o papel de ramagens azuis. Passos brandos e nus pisavam a esteira que recobria o ladrilho de tijolo; e a água rumorejou, como agitada por um doce braço despido que lhe experimentava o calor. Então, abrasado, fui ouvindo todos os rumores íntimos de um longo, lento, lânguido banho; o espremer da esponja; o fofo esfregar da mão cheia de espuma de sabão; o suspiro lasso e consolado do corpo que se estira sob a carícia da água tépida, tocada de uma gota de perfume... A testa, túmida de sangue, latejava-me; e percorria desesperadamente o tabique, procurando um buraco, uma fenda. Tentei verrumá-lo com a tesoura; as pontas finas quebraram-se na espessura da caliça... Outra vez a água cantou, escoando da esponja; e eu, tremendo todo, julgava ver as gotas vagarosas a escorrer entre o rego desses seios duros e brancos que faziam estalar o vestido de sarja... "Não resisti; descalço, em ceroulas, saí ao corredor adormecido; e cravei à fechadura da sua porta um olho tão esbugalhado, tão ardente - que quase receava feri-la com a devorante chama do seu raio sanguíneo... Enxerguei num círculo de claridade uma toalha caída na esteira, um roupão vermelho, uma nesga do alvo cortinado do seu leito. E assim agachado, com bagas de suor no pescoço, esperava que ela atravessasse, nua e esplêndida, nesse disco escasso de luz, quando senti de repente, por trás, uma porta ranger, um clarão banhar a parede. Era o barbaças, em mangas de camisa, com o seu castiçal na mão! E eu, misérrimo Raposo, não podia escapar. De um lado estava ele, enorme. Do outro, o topo do corredor, maciço.

«Vagarosamente, calado, com método, o Hércules pousou a vela no chão, ergueu a sua rude bota de duas solas, e desmantelou-me as ilhargas... Eu rugi: "bruto!" Ele ciciou: "silêncio!" E outra vez, tendo-me ali acercado contra o muro, a sua bota bestial e de bronze me malhou tremendamente quadris, nádegas, canelas, a minha carne toda, bem cuidada e preciosa! Depois, tranquilamente, apanhou o seu castiçal. Então eu, lívido, em ceroulas, disse-lhe com imensa dignidade:

«— Sabe o que lhe vale, seu bife? É estarmos aqui ao pé do túmulo do Senhor e eu não querer dar escândalos por causa da minha tia... Mas se estivéssemos em Lisboa, fora de portas, num sítio que eu cá sei, comia-lhe os fígados! Nem você sabe de que se livrou. Vá com esta; comia-lhe os fígados!

«E muito digno, coxeando, voltei ao quarto a fazer pacientes fricções de arnica.» [Originalmente publicado em 14-3-2001]
REVISTA À PORTUGUESA. Toda a gente sabe que a revista à portuguesa faleceu há uns anos valentes. O que eu não sabia é que se tinham esquecido de a enterrar. E, como se esqueceram, de vez em quando vislumbram-se por aí uns cadáveres. Eu juro que vi uma meia dúzia deles um dia destes. Directamente vindos de Portugal para uma «actuação internacional», como eles gostam de dizer na terrinha para impressionar os pategos, embora toda a gente saiba que eles vão actuar para os emigrantes portugas. Os respeitáveis cadáveres representaram uma rábula de uma revista cujo nome não me ocorre mas que não tem grande importância. Debitaram umas canções rascas e mal cantadas, umas graçolas de carregar pelo bico, os truques e os traques do costume. Tudo demasiado previsível, demasiado pacóvio, demasiado patético. E, claro está, sempre acompanhados com o ar banzado do «empresário», inevitavelmente com cara de proxeneta. Confesso que me apeteceu desmantelar-lhe as ilhargas, como diria o Eça, mas o homem era um latagão e os artistas podiam ser dados a melindres. De maneira que eu achei por bem optar pela prudência e só peço encarecidamente que alguém lhes faça o funeral que merecem. Com ou sem honras de Estado. Com ou sem direito a Panteão. Desde que seja rápido e como deve ser, tanto me faz. E, se houver necessidade, podem contar comigo para escrever o epitáfio. Está bem. De borla. [Originalmente publicado em 8-3-2001]
OS DONOS DA BOLA. Sempre defendi que os árbitros de futebol são pessoas de bem e que não se pode confundir erros humanos com arranjinhos ou negociatas. Sempre defendi que os casos provados ou suspeitos de corrupção são excepções e não a regra, pelo que é injusto falar de corrupção na arbitragem sempre que um árbitro comete um erro ou toma uma decisão mais polémica. É preciso não esquecer que os árbitros têm que tomar decisões em segundos, por vezes cruciais, e que eles não têm acesso aos meios sofisticados que milhões de espectadores têm praticamente na hora. É preciso não esquecer que há decisões que, mesmo vistas e revistas nas televisões, nunca serão pacíficas e continuarão a deixar dúvidas para sempre. É preciso não esquecer que eles são ajuizados por milhares de adeptos que teimam em ver o que lhes convém e em não ver o que não lhes interessa. Mas dizia eu que sempre defendi que os árbitros não são, por regra, corruptos, e que os erros cometidos não passam disso mesmo: erros, por mais graves que sejam e por mais consequências que daí resultem. Dizia eu que sempre defendi mas hoje já não defendo. Não que eu tenha passado a achar que os árbitros são todos corruptos, mas onde ontem se via uma excepção vê-se hoje a regra. Veja-se o que disse Jorge Coroado, seguramente um dos árbitros portugueses mais respeitados: «Não ponho as mãos no fogo por eles [árbitros] porque me queimava» (O Independente, 19-1-2001). Se ele não põe as mãos no fogo pelos árbitros, quem haveria de pôr? É claro que a corrupção não se traduz apenas em mordomias ou em cheques por baixo da mesa. Ele está em jogo toda uma carreira, ele está em jogo a simpatia assumida ou dissimulada por este ou aquele clube, ele estão em jogo toda a espécie de interesses confessados e inconfessados. Não deve ser por acaso que a presidência do organismo que decide o futuro dos árbitros de futebol é dos lugares mais disputados. Não deve ser por acaso que se fala cada vez mais dos bastidores da bola e cada vez menos da bola propriamente dita. Não deve ser por acaso que ninguém está interessado em punir a indisciplina com maior firmeza e rigor e muito menos em legislar sobre situações dúbias que se repetem ao longo dos anos. Têm razão os árbitros quando vêm dizer que eles não podem ser o alvo exclusivo da suspeição que reina no futebol. Mas fica-lhes mal recusarem mostrar as declarações de rendimentos argumentando que também outros deveriam fazê-lo. E pior ainda quando se vêm armar em vítimas ou dizer que estão a ser os bodes expiatórios. Se é verdade que a atitude é compreensível, também não é menos verdade que ela em nada os torna menos suspeitos. Antes pelo contrário. [Originalmente publicado em 27-2-2001]
A TÉCNICA DA LINGUIÇA. Isto de escrever uns rabiscos uma vez por semana tem muito que se lhe diga. Começa-se quase sempre sob o síndroma de falta de assunto e às vezes acaba-se com a sensação de se ter estado a encher linguiça, como diz um cronista brasileiro, que pratica a modalidade com um esmero que só visto. Só uns dias depois é que se descobrem umas coisas engraçadas e oportunas que se podiam ter dito, mas o texto já foi publicado e não há nada a fazer. E, é claro, a crónica está muito pior do que se imaginava. Razões de queixa? Nem por isso. Imaginem aqueles desgraçados que têm que fazer duas e três crónicas por semana. Quantos maços de cigarros fumarão eles por cada uma delas? E uísques? Baterão na mulher (ou no marido) quando estão sem assunto? E aquela crónica que estava prontinha a enviar para o jornal e desapareceu do ecrã? E aquele pensamento genial que se evaporou num ai? E aquele filho da mãe da concorrência, que resolveu lembrar-se do assunto primeiro que ele? E aquele sentimento de culpa por adiar tudo para a última hora? E depois de publicar? Será que ninguém reparou naquela vírgula mal colocada? E aquela gralha, que toda a gente vai pensar que é um erro ortográfico? E o bispo do Porto que, afinal, não era bispo e muito menos do Porto? Um horror! Razão tem o brasileiro para usar a técnica da linguiça quando o assunto lhe falta. É só escrever o que lhe vem à cabeça, evitar assuntos que o obriguem a investigar, esticar as frases até onde for possível esticar e deixar andar. Exactamente como eu estou a fazer hoje, que isto de tempo e assunto já teve melhores dias. [Originalmente publicado em 20-2-2001]
ESMOLA AO CEGUINHO. Um auto denominado «Grupo de Apoio à Candidatura de Nuno Cardoso» à Câmara do Porto resolveu criar uma página na net para pressionar o actual presidente da edilidade portuense a candidatar-se a mais um mandato. Lida a substância, fica-se a saber que a criatura é um «homem de poucas palavras», «muito trabalhador e sincero», e filho de um coronel de artilharia. Que sempre foi fiel (assim mesmo) ao doutor Gomes e que tem um «jeito descontraído e prático». Que utiliza «a política como um meio para servir os outros», abdicando de «características como a hipocrisia e a demagogia». E que, haja deus, tem um defeito: «não é um grande orador». E daí?, perguntarão os meus leitores. Daí que o homem «está a ser julgado por querer trabalhar demais e por andar a fazer o que os outros já deviam ter feito há muitos anos». Exemplos? «Num só ano o Porto cresceu mais que nos últimos 20 anos.» E que lhe fizeram então? Bem, houve «um rol de pressões, agressões e boicotes de todos aqueles que querem o poder», começando pelos célebres foguetes que haviam de estourar na passagem do milénio e que não estouraram devido a «sabotagem». Depois foi acusado de não ter o «cartão rosa» e, quando o tinha, acusado de o ter. Por aí fora. De maneira que, diz o grupo, o engenheiro precisa de estímulo para se candidatar. E nada mais estimulante do que enviar-lhe um e-mail de apoio para a Câmara do Porto. Coisa simples e moderno. Presume-se que os próximos capítulos de tão comovente novela hão-de meter uma missa na Sé ou uma marcha silenciosa, como agora está tão em moda. E, é claro, espera-se que resultem. Porque, se não resultarem, é seguro que vamos ter que gramar o discurso do desgraçadinho. E aí, meus amigos, eu acho que vou chorar. [Originalmente publicado em 13-2-2001]
MEU CARO HERBERTO. Como seria de esperar, o nosso Herberto recusou a estátua proposta pelo Isaltino. Porque ninguém lhe pediu autorização e porque, mesmo que lhe pedissem, recusaria. Mas o presidente da Câmara de Oeiras não quer saber de lirismos e já fez saber que «a imagem das figuras públicas (...) não tem protecção jurídica». De maneira que, meu caro Herberto, prepare-se para o pedestal. Não tenha a veleidade de pensar que vai ficar a salvo da imundice das pombas e do ar horrorizado das criancinhas. E, bem vistas as coisas, tanto faz agora como depois de morto. Porque você sabe que, depois de morto, não escapa. Não faltará por aí quem se queira vingar dos prémios que você recusou e dos retratos que não tirou consigo a fazer de bibelot. Precate-se, meu caro Herberto. Escreva no seu testamento para que lado quer virada a sua estátua, para evitar que lhe suceda o mesmo que ao pobre do João da Câmara, que já esteve virado para um café que agora é um banco e hoje ninguém sabe para que lado há-de virá-lo. Recomendo-lhe também que vá pensando no epitáfio, como fez o O'Neill, antes que alguém ponha lá umas palermices que provocariam a sua ira. De preferência uma frase curta do género: «Você conhece o Isaltino?» [Originalmente publicado em 6-2-2001]
RANGEL BROTHER. O director da SIC regressou às colunas dos jornais no seu melhor estilo. Passada a digestão do elefante da concorrência (Big Brother), aí está o senhor Rangel a disparar de novo em todas as direcções, inclusive sobre a sua própria sombra. Tudo por causa dos «Acorrentados», do altíssimo share da SIC e, presume-se, do cheque ao fim do mês. Disse Rangel que os jornalistas estão ao serviço da concorrência ou de outros «interesses inconfessáveis», embora não apresentasse a mais leve prova. Referia-se, é claro, aos jornalistas que dizem mal dos «Acorrentados», podendo inferir-se das suas palavras que os que nada dizem trabalham para o mesmíssimo patrão que lhe paga a mesada. Nada que não fosse de esperar e que, valha a verdade, não mereça o devido desconto. Mas já cheira a disco riscado essa história dos «interesses inconfessáveis» sempre que alguém fala mal de um programa da SIC, como se não houvesse razões para falar mal dos programas da SIC. Além disso, o senhor Rangel parece ter-se esquecido do que disse sobre o Big Brother, seguramente movido por «interesses inconfessáveis» e não para atingir o programa em si mesmo. Parece-me evidente que, perante uma crítica a falar mal dos «Acorrentados» ou doutras misérias do género, recomendaria o bom senso e a mais rudimentar regra de higiene mental que o senhor Rangel fosse pregar para outra freguesia ou metesse a viola no saco. Porque os sermões não convencem ninguém e de música já nós estamos fartos. [Originalmente publicado em 30-1-2001]
A LÓGICA DA BATATA. Instada a comentar as críticas sobre os critérios jornalísticos usados pela TVI (inclusão de «notícias» do Big Brother nos noticiários), a dona Manuela Moura Guedes foi aos arames. Segundo ela, os outros canais também promovem os seus próprios programas nos seus noticiários sem que isso tire o sono a alguém. Assim sendo, qual é o problema de a TVI fazer o mesmo? Como se vê, a lógica da dona Manuela é imbatível. Em vez de demonstrar que há razões (ou não) para incluir «notícias» do Big Brother nos noticiários da TVI, Manuela optou pelo caminho mais curto e pela lógica da batata. Ficamos assim a saber que, a ser verdade o que ela diz (e eu acredito), o jornalismo nas TVs vai uma merda, muito obrigado. Perante a evidência, eu só estranho que um estudo encomendado pelo DN/TSF tenha colocado os jornalistas, por duas vezes consecutivas, à cabeça dos profissionais mais respeitados. Não, não duvido da seriedade do estudo. O meu problema é que já vi muitas Manuelas deixarem de ser o que eram. [Originalmente publicado em 23-1-2001]
OS NEGÓCIOS DO FSE. Como seria de esperar, o caso Partex/Fundo Social Europeu (FSE) acaba de ir para o galheiro. Depois de já terem prescrito os casos do «Aquaparque» e de algumas «viagens-fantasma», para só falar dos mais mediáticos. Dizem-me que também o caso UGT/FSE está prestes a ultrapassar o prazo de validade e que muitos outros se seguirão. Nada que surpreenda e de que não estejamos à espera. É o famoso descalabro da Justiça e o grau zero da credibilidade, que me trazem à memória as centenas de fraudes com os dinheiros do FSE, grande parte das quais nem sequer foi alvo da mais leve suspeita. Conheço de perto algumas destas fraudes, verdadeiros casos de polícia. O negócio tinha sempre o mesmo disfarce: «acções de formação». Inventavam-se uns cursitos, contratavam-se uns dois ou três professores conhecidos a ganharem mãos cheias de contos por hora para disfarçar a gamela de outros «docentes» inventados à pressa, arrebanhavam-se uns putos de férias a quem se pagava uma merdice (quando recebiam), faziam-se uns seguros que nunca chegavam a ser feitos (ficavam em stand by na seguradora e só se consumavam caso houvesse problemas). Com isto embolsavam uns milhares de contos enquanto o diabo esfregava um olho. Depois vinham os carros novos em folha e os apartamentos a estrear. Tudo à vista desarmada e na maior das impunidades. Nomes e moradas dos artistas? Nem pensar. É tudo gente respeitadíssima e acima de qualquer suspeita. [Originalmente publicado em 16-1-2001]
GAZETA REGIONAL. A chamada imprensa regional continua a produzir pérolas de antologia. Só da minha terra, o Semanário Transmontano citou uma série delas na edição de 29 de Dezembro, presumo que todas da mesma semana. Eis algumas: «Se o Notícias de Mirandela, alheio a cores, isento de paixões, procura estar presente e sempre o tem conseguido em tudo que à nossa terra possa interessar, porque razão os Mirandelenses não hão-de corresponder de igual modo, auxiliando-nos, colaborando na expansão e difusão do Quinzenário.» (Notícias de Mirandela); «É preciso que os Caminhos de Ferro voltem à gerência gente que perceba do ofício, e não sirva de suporte a 'analfabetos encartados' numa empresa, onde é preciso saber ler e contra, e os canudos não são tudo (...)!!» (O Arrais); «Ser vila é que um título honorífico que não obriga nenhuma instituição, nem câmara, nem governo a fazer mais obras que noutra freguesia qualquer. Ser vila é como o rei sem trono. Ter honra sem proveito. Pura ilusão?! Salto tem de facto uma coisa nova é a lixeira das Golas. É uma coisa pequena.» (O Povo de Barroso); «No passado dia 23, ocorreu o enlace nupcial de Sandra Cristina Alves Leite, (filha de António José Guerra Leite e Maria Argentina Alves Barreiro) e João Carlos Pereira Carvalhais, (filho de António Maria Pimenta Carvalhais e Ana de Jesus do Carmo Pereira), pessoas bem conhecidas e estimadas do nosso meio. (...) O jornal 'Mensagens Aguiarenses', que se associou à linda festa através de Augusto Gil Chaves, dilecto familiar da noiva, deseja ao jovem e simpático casal as maiores venturas a partir deste momento imperecível em que decidiram caminhar em conjunto no seu futuro (...)» (Mensageiro Aguiarense); «Entramos com este número no XVII ano de publicação deste jornal, o que apesar das dificuldades que se nos deparam iremos continuar com o propósito.» (Jornal do Norte). Que tal? Também eu tenho aqui guardada uma prosa poética de se lhe tirar o chapéu. Foi publicada na Voz de Trás-os-Montes e o seu autor é António Teixeira Ferreira. Eis um naco: «Os seixos, em lençol de pavimento oferecido à paixão das margens pintalgadas pelo pasto tenro espelham o relento levantado pela fervura da correnteza, brilhando como sóis de alva claridade.» Mais outro: «Ao longe, uma torre de granito gótico, coalhado no breu das montanhas do Poente, confunde-se com as meias tintas das perspectivas que terminam, ao acaso, a visão do quadro em plenitude.» Ainda outro: «Avança o relógio do Inverno a imposição do seroar provinciano obrigando ao oratório da desamparo com a dormideira do escano entre o trasfogueiro e os potes do cozidos dos animais.» Um primor, não é? [Originalmente publicado em 8-1-2001]
CASA DO DOURO. Segundo os jornais, a Casa do Douro decidiu promover uma «campanha de mobilização popular» junto de cerca de 40 mil viticultores com o objectivo de obrigar o Governo a pagar-lhe uma indemnização de 11.5 milhões de contos. Segundo a Casa do Douro, a indemnização é-lhe devida porque o Governo decidiu retirar-lhe competências que eram geradoras de receita. Sessões de esclarecimento nos principais concelhos da região, milhares de autocolantes, compra de espaços de informação em rádios regionais, envio de cartas e convites e o aluguer de 150 autocarros para deslocar os viticultores a uma manifestação em Lisboa foram alguns dos meios utilizados nesta campanha de mobilização. Segundo o Público, a brincadeira custou aos cofres da Casa do Douro perto de 30 mil contos. Sim, 30 mil contos. Convém lembrar que a Casa do Douro deve à banca qualquer coisa como 17 milhões de contos e só ainda não faliu porque o Estado é o avalista da dívida. Exactamente, se a coisa der para o torto lá estarão os contribuintes para pagar a incompetência de anos e anos destes e doutros senhores que agora aparecem a esbanjar 30 mil contos. Eu só lhes peço que tenham ao menos a decência de não virem dizer que os cerca de 120 funcionários da Casa do Douro estão à beira de deixar de receber os salários por falta de verba, como já se diz por aí. E muito menos que a culpa não é deles. [Originalmente publicado em 4-1-2001]
PRODUTORES DE CONTEÚDO. Poucos dias após um jornalista ter sido morto a tiro e outro agredido, ambos em Moçambique e por «falarem demais», o doutor Balsemão veio defender, no Público, «a necessidade de haver concentração da propriedade dos media em Portugal». «Existem grupos a mais» no mercado português dos media, disse ele. A declaração de Balsemão surgiu poucos dias após ser conhecido o controlo da Lusomundo por parte da Portugal Telecom, passando a empresa controlada pelo Estado a deter, entre outros, o Jornal de Notícias, Diário de Notícias, 24Horas, Tal & Qual, Grande Reportagem e TSF. Dois dias antes da declaração de Balsemão, Vicente Jorge Silva, no Diário de Notícias, disse o seguinte: «A uniformização e estandardização dos 'conteúdos' (...) tenderá a esvaziar os produtos jornalísticos da sua componente informativa, convertendo-os em meras mercadorias para clientelas cada vez mais segmentadas». Disse mais o colunista do DN: «Os jornalistas cederão o lugar a formatadores de receitas, agentes de marketing, publicitários e psicólogos de bazar». Vicente Jorge Silva só não disse, pelo menos directamente, que a concentração da propriedade dos media em meia dúzia de mãos é a nova forma de matar o jornalismo e, por consequência, os jornalistas. Exagero? Não, não é. A concentração dos media tende a acabar com a diversificação dos conteúdos informativos, já que, em nome do «aproveitamento das sinergias», o mesmo jornalista passa a distribuir a mesmíssima informação para diferentes publicações. Deve ser por isso, aliás, que hoje se fala cada vez menos em jornalismo e cada vez mais em «produção de conteúdos», evidentemente que muitíssimo mais abrangente e onde cabe tudo. De facto, é cada vez mais evidente que nem «tudo vai pelo melhor» no jornalismo europeu, como diz J. M. Nobre Correia («Medianapolis» de 8 de Dezembro). E não só no jornalismo europeu, como se calcula. Diz Nobre Correia que existe «confusão» entre «informação e promoção comercial» devido a «complacência com acções desencadeadas por agências de promoção e eventos em prol de um ou outro grupo de negócios». E cita exemplos de jornais belgas para fundamentar a sua tese, que terão brindado os seus leitores com assuntos de primeira página «dificilmente concebíveis há poucos anos atrás». Referia-se ele a campanhas publicitárias de uma cadeia de armazéns e de uma consola de jogos, ao lançamento do último disco de um cantor e ao último filme da Disney. Tudo assuntos que mereceram primeira página e, segundo ele, mais ou menos disfarçados de notícia. Ora aqui está um bom exemplo dos tais «agentes de marketing» e «publicitários» de que fala Vicente Jorge Silva, sem dúvida resultante da concentração da propriedade dos media em dois ou três grupos económicos que são, quase sempre, detentores de interesses noutras áreas de negócio que não os media. [Originalmente publicado em 26-12-2000]
FALEMOS DE SEXO. Após tomar conhecimento dos resultados de uma sondagem que encomendei a uma prestigiada empresa da especialidade, cujo nome não vem ao caso e que me dizem claramente que os meus leitores preferem assuntos que metam, pelo menos, uma ponta de sexo, resolvi debruçar-me hoje sobre os mais recentes estudos sobre a matéria que, julgo eu, muito têm contribuído para enriquecer a performance e os conhecimentos da Humanidade. Comecemos por uma pesquisa encomendada por uma companhia de água mineral, presumo que britânica. Segundo ela, os franceses têm mais relações sexuais que os britânicos porque os primeiros bebem mais água que os segundos. Cinco vezes mais, para ser mais preciso. Como se calcula, a companhia recomenda beber água com fartura, não só aos britânicos, e adverte que meia hora de sexo equivale a uma corrida de cinco quilómetros. Passemos a um psicólogo escocês. Sexo frequente e vigoroso pode deixar os praticantes sete anos mais novos na aparência, diz ele. E dá um exemplo: «os casais que fazem sexo pelo menos três vezes por semana parecem até 10 anos mais novos do que a média das pessoas», que faz sexo duas vezes por semana, diz outro estudo. Rematemos com uma multinacional do sexo, a Durex. Os americanos praticam o coito 132 vezes por ano, quando a média mundial é de 96. A seguir vêm os russos, os franceses e os gregos. Dos portugueses não reza o estudo, pelo menos o estudo da Durex, mas eu suspeito que somos muito melhores do que eles. Especialmente se a mulher for sexualmente inexperiente mas que goste de sexo, se for elegante e atlética, se tiver olhos bonitos e cabelo escuro, se tiver um rabo firme e uns seios grandes. Não, não são as minhas preferências, embora, em parte, também. É o resultado de uma pesquisa de uma universidade do Alabama sobre a mulher ideal e, segundo os autores, é muito semelhante à que descreve a bíblia. E toda a gente sabe que nós somos um povo tradicionalmente católico. [Originalmente publicado em 18-12-2000]
PÉROLAS A PORCOS. Depois do estrondo do Socialmente Correcto, aí está o novo livro da Paula Bobone. Não sabe quem é, a Paula? Bom, eu também não. Só sei que o último livro se chama Profissionalmente Correcto e, segundo a Livros de Dezembro, é «absolutamente indispensável para os que só se sentem vivos fazendo 'qualquer coisa'». E que se destina a «todos os trabalhadores remunerados que gostam de 'andar de automóvel', do 'som altíssimo da música nas discotecas' e do 'intenso movimento das danças'». A Livros cita uma data de erudições do Profissionalmente Correcto. Eis algumas: as mulheres devem sentar-se sempre «de costas direitas e joelhos juntos» e nunca devem levantar a saia quando se sentam. Agora os homens: não se esqueçam de puxar um pouco as calças quando se sentam. Mas «nunca acima do final das meias», ouviram? E depois vem a fase da mesa: «O sinal de que se acabou de comer é dado pela colocação dos dois talheres poisados juntos, no prato, na posição dos ponteiros do relógio às 5h e 25m (depois de ler isto verifiquei que eu costumava deixar os talheres entre as 5h e 15m e as 5h e 20m, mas já corrigi para o profissionalmente correcto)». Ah, e não se esqueçam de que é feio virar o prato para ver a marca. Entendidos? Bom, então só a fase filosófica: «As pessoas devem estar no seu sítio próprio» e nunca se devem esquecer que «os documentos eliminados devem ser eficazmente destruídos». Profundo, não é? [Originalmente publicado em 11-12-2000]
ACREDITAR EM QUÊ? Um basquetebolista espanhol afirmou recentemente que alguns atletas do seu país que subiram ao pódio nos últimos Paralímpicos de Sidney não são portadores de quaisquer deficiências físicas ou mentais. Dos 200 atletas espanhóis que estiveram em Sidney, «15 não têm nenhum tipo de incapacidade física ou intelectual», afirmou ele à imprensa. Embora as investigações se encontrem praticamente no início, a acusação do atleta já provocou a demissão do vice-presidente do Comité Paralímpico Espanhol e presidente da Federação de Desporto para Deficiências Mentais. A imprensa espanhola investigou o caso e descobriu haver fortes indícios de que outros países terão praticado a mesma aldrabice, nomeadamente a Rússia, o Brasil e... Portugal. Lançada a suspeita na Pátria, o chefe da missão portuguesa aos Paralímpicos de Sidney apressou-se a dizer ser muito «difícil» que os atletas portugueses que estiveram na capital australiana como deficientes mentais não o fossem realmente. Se bem entendi, o dirigente não disse que é impossível. Mas poderá ser que não haja embuste, que tudo não passe de fumo sem fogo. Mas eu duvido e não me admiraria se as suspeitas vierem a confirmar-se. Basta lembrar-me dos 11 casos de doping nos últimos Paralímpicos (mais um que nos Jogos Olímpicos de Verão) para suspeitar que tudo é possível. E de uma entrevista a uma jovem promessa do atletismo português (12 ou 13 anos), há uns bons anos atrás, em que ela me disse que não acreditava que existissem atletas na alta competição que não se dopassem. Exagero? Será. Mas quando o presidente da União Ciclista Internacional admite a existência de doping generalizado na modalidade e se constata que até os deficientes se dopam, vamos acreditar em quê? [Originalmente publicado em 4-12-2000]
A MAMA DO COSTUME. O Benfica já fez saber que a remodelação do Estádio da Luz não vai custar 4.2 milhões mas sim 14 milhões de contos. O Porto também já disse que o futuro Estádio das Antas ultrapassará, em muito, os 13.52 milhões previstos no protocolo assinado com o Estado, prevendo-se agora que chegue aos 25 milhões. Dos restantes oito estádios que vão ser construídos ou remodelados para receberem os jogos do Euro2004 — que recebem, tal como a Luz e as Antas, uma compartição de 25 por cento do Estado — ainda não se sabe se os respectivos orçamentos já foram inflacionados, como se costuma dizer, mas eu suspeito que os excelentíssimos presidentes da bola devem estar por aí a aparecer com a nova factura. Há, aliás, alguns sinais encorajadores. O senhor Valentim já veio dizer que «é óbvio que quando se começa uma obra há uma estimativa que no final já pode ter um valor acima do calculado inicialmente». O senhor Madaíl também já disse que vai avisar o governo se alguma coisa não correr bem. Pelo sim, pelo não, o presidente da Câmara de Coimbra foi avisando que, se forem alterados os critérios de financiamento do Euro2000, «terão de o ser equitativamente para todos, sem subterfúgios nem delongas». Ou seja, ou há democracia, ou comem todos. O ministro do Desporto apressou-se a dizer que não há nem mais um tostão. Foi na Assembleia da República e ninguém acredita que estivesse a brincar. Mas o tempo urge, como bem sabem os senhores presidentes da bola. Além disso, toda a gente sabe que, se alguma coisa falhar, a culpa será do governo e nunca deles. De maneira que estão criadas todas as condições para a mama do costume. [Originalmente publicado em 27-11-2000]
PIRIQUITOS. O cineasta João César Monteiro pariu mais um filme genial. O mais genial de todos, há quem sustente. Dizem que é um filme negro e, pelos vistos, de que maneira. A polémica instalou-se ainda antes da estreia, por causa dos custos de produção e da fita propriamente dita. Sobre o filme, Manuel de Oliveira disse ao Público que é o melhor trabalho do realizador. João Bénard da Costa, também ao Público, disse que gostou muito. Sobre os custos, o produtor disse estar disponível para devolver parte da massa, e o realizador, acusado de ter roubado dinheiro ao Estado, diz que passou «a ser respeitado por isso». Muito bem. Devo dizer que ainda não tive oportunidade de ver qualquer filme de João César Monteiro, um só que fosse. Mas devo dizer também que simpatizo com o homem. Pela coragem, pela frontalidade e, sobretudo, por ser ele próprio, tudo qualidades (ou defeitos) que incomodam muita gente. Por não ser um homem normal (ou «normalizado»), por não praticar a hipocrisia e por se estar a borrifar para os poderes. Todos os poderes. E não me venham falar nos milhares de contos que o homem (ou alguém por ele) terá recebido a mais pelo filme. Se a discussão vai por aqui, porque não se questionam também os milhares gastos por outros realizadores, para já não falar do teatro? E muito menos me venham dizer que o filme de César Monteiro é «um caso de polícia» só porque o projecto inicial não corresponde à «vergonha final», como disse o senhor Horácio Piriquito no Diário Digital. E os outros realizadores, senhor Piriquito? Será que, nesta matéria, César Monteiro é um caso isolado? É claro que eu compreendo as suas críticas, já que o senhor diz preferir o «Big Brother» porque este «arrisca no mercado». Além disso, o senhor acha que o filme «vai muito para além do que seria aceitável por mais presunçosas que sejam as ambições intelectualóides de cada um» e que «não tem ponta por onde se lhe pegue», embora não arrisque o mais pequeno raciocínio para defender a sua tese. Percebo, senhor Piriquito. Arriscar a estatelar-se ao comprido? Livra! Diz ainda que «as finanças públicas em Portugal nunca sofreram um golpe tão vergonhoso» e que César Monteiro deveria ser internado no Hospital Júlio de Matos. Ou seja, oscila entre a piada grosseira e a ordinarice pura. E acha-se no direito de dar uma lição de moral: «tendo em conta os bons costumes, é um filme ofensivo para o normal consumidor de cinema». Bonito, senhor Piriquito. Devo dizer-lhe que é por causa de pessoas como o senhor que eu gosto do César Monteiro. [Originalmente publicado em 20-11-2000]