FALHANÇO TOTAL. Como escrevi por ocasião das Presidenciais de 2008, votei Obama porque não me pareceu que o opositor fosse capaz de provocar a catarse que o país necessitava, porque me pareceu que Obama era o que melhor corporizava a vontade de mudança, porque achei que se renderia ao pragmatismo em matérias como a segurança, porque Obama era, em suma, o menos mau dos candidatos. Dois anos volvidos, o saldo é francamente pior do que imaginava. Obama falhou na economia (a fortuna injectada na banca e no sector automóvel não produziram os afeitos desejados), falhou no desemprego (que se mantém ao nível mais alto dos últimos 26 anos apesar dos milhões investidos em obras públicas com o objectivo de gerar emprego), falhou na saúde (se o seguro de saúde entrar em vigor será uma pálida imagem do que Obama pretendia e há sérias dúvidas de que irá beneficiar quem mais dele precisa), falhou na política interna (foi preciso a hecatombe das intercalares de Novembro para falar com a oposição), falhou na política externa (não só não acabou com a guerra do Afeganistão como ainda a alimentou e o Iraque não está inteiramente resolvido), falhou nos direitos humanos (proibiu a divulgação de fotografias de abusos sobre prisioneiros, pôs uma pedra sobre os voos da CIA alegando tratar-se de assunto de Estado, declarou que os detidos na base afegã de Bagram não tinham direitos constitucionais, Guantânamo continua por fechar). Até ver, apenas se pode gabar de diminuir o ódio à América, embora os americanos se ralem pouco com isso. Nem o Prémio Nobel da Paz, que lhe atribuíram sem que se percebesse porquê, esconde um desempenho medíocre, e a desilusão bem expressa nas intercalares de Novembro. Bem pode Obama atribuir o fracasso à herança da administração anterior que as evidências são muitas e só não as vê quem não quer, e é bom não esquecer que Obama sabia bem ao que ia quando se candidatou e nem por isso se inibiu de prometer o céu e a terra. [Originalmente publicado em 16-11-2010]
ESCREVEDORES & PUBLICANTES. Provavelmente acharão um exagero se eu disser que resido e trabalho numa área onde há mais escritores que leitores, mesmo que pretenda fazer uma caricatura, por natureza um exagero. Partindo do pressuposto que um escritor também é um leitor (Vila-Matas escreveu que um escritor é um leitor que escreve), facilmente se conclui que haverá, pelo menos, tantos leitores como escritores, pelo que a caricatura pecaria, neste caso, por defeito. Infelizmente não exagero, nem pretendo fazer uma caricatura. Por incrível que pareça, conheço escrevedores que se gabam de nunca terem lido um livro, geralmente por falta de tempo (um clássico), de paciência, ou as duas coisas. Falo, portanto, de casos concretos, e partindo levianamente do princípio que um escritor é todo o indivíduo que publica, pelo menos, um livro de poesia ou de ficção, como por aqui se consideram os publicantes de um modo geral. Vi não sei onde um cartoon em que um leitor gatafunhava dedicatórias nos livros de uma fila de escritores, precisamente o inverso do que se vê no lançamento de livros. Se ali havia um exagero, aqui não há exagero. Mas não julguem que tenho um problema com os publicantes, que a circunstância de acharem o livro um objecto respeitável já não é mau. Lamento, apenas, que não passem daí, que não comecem a ler uns livritos, mesmo os que não se recomendam. Podia ser que um dia publicassem prosa legível ou poesia em que a bota não se limita a rimar com a perdigota, que a leitura naturalmente vai exigindo que se faça melhor. Ainda há pouco um argentino (Abelardo Castillo) dizia que «um escritor que não tenha lido não existe, não é escritor». Infelizmente, só é evidente para quem lê. [Originalmente publicado em 22-10-2010]
MONSTRUOSIDADES. Tirando Carlos Silvino, que confessou ter cometido alguns crimes de que foi acusado, nenhum dos restantes arguidos no processo Casa Pia diz ter praticado os actos pelos quais foi condenado. De um modo geral, os arguidos reagiram indignados com o que consideram monstruosidades, e nem outra coisa seria de esperar depois de se saber que tencionam recorrer das sentenças. Mas se isto se compreende, se os arguidos não podiam dizer outra coisa quando pretendem apelar a outras instâncias, custa-me a crer que o tribunal que os julgou tenha cometido as monstruosidades de que o acusam. É preciso ver que a decisão foi tomada por três juízes (que consideraram credíveis os argumentos dos investigadores, de vários magistrados do Ministério Público e de mais dois juízes), e tudo leva a crer que os arguidos tiveram todas as condições para se defender. Não duvido que a justiça cometeu erros e que mereça, de um modo geral, todas as dúvidas, mas custa-me a crer que tenha cometido os erros grosseiros de que é acusada sabendo de antemão que todos os olhos estavam postos nela, e que não tinha, portanto, margem para errar. Lamentável é que a sentença acabe em coisa nenhuma — por causa dos recursos, por ultrapassar os prazos previstos, por outro motivo qualquer. Pior: as dúvidas que subsistem adensar-se-ão em vez de se dissiparem, o que é mau para a justiça e péssimo para quem está a contas com ela. Ficará, contudo, uma certeza: fossem outros os arguidos e estariam, há muito, na cadeia. Com culpa ou sem ela, mas isso é outra conversa. [Originalmente publicado em 13-9-2010]
PRAGAS. É moda dizer-se que ninguém é isento, logo não é possível redigir uma notícia de forma equilibrada. Como já disse e repeti, concordo em casos excepcionais (manifestações desportivas em que intervém a selecção portuguesa, por exemplo), discordo em quase todos os outros. Não me parece difícil os jornalistas limitarem-se a noticiar os factos, deixando aos leitores (telespectadores, ouvintes) a tarefa de ajuizar pelas suas próprias cabeças o que houver a ajuizar. É essa, aliás, a função do jornalista, ou a primeira função do jornalista. Mas se for difícil, se não resistirem a meter o nariz onde não devem, se insistirem em omitir e/ou distorcer os factos de molde a convencer os leitores (telespectadores, ouvintes) a pensar de determinada maneira, então seria melhor que se dedicassem a outra actividade. O conflito israelo-palestiniano, sobre o qual todos parecem ter uma opinião definitiva apesar da evidente complexidade, é um bom exemplo desta prática, pois geralmente as notícias contêm opiniões que passam por factos, quando se esperaria que as notícias contenham os factos, e só os factos. Como é óbvio, factos são factos, opiniões são opiniões, e espera-se que não se misturem uns com os outros, muito menos deliberadamente. Infelizmente, nem os manuais de redacção e os livros de estilo nos livram desta praga. [Originalmente publicado em 9-8-2010]
FORA DE JOGO. Não duvido que o Mundial de Futebol convém ao Governo em funções, e se as coisas correrem bem à selecção portuguesa ainda conviria mais. Mas é preciso ver que o povo anda «anestesiado» durante um mês não porque o Governo fez com que assim sucedesse, mas porque o povo (façamos de conta que é só do povo que se trata) quer que assim seja. Percebe-se que o cenário não convenha à oposição e não agrade a quem gostaria de ver o povo interessar-se por romances de Camilo e óperas de Wagner, mas o povo é mais dado ao futebol e à música do Quim Barreiros — e os «incomodados da bola» até costumam enaltecer a inteligência do dito sempre que há eleições e o povo vota de determinada maneira. Que mal tem o povo alienar-se durante umas semanas e esquecer-se da vidinha? Palavra de honra que não estou a ver. Pelo contrário, até me parece uma prática muito saudável. Ao contrário, destilar ressentimento contra o futebol e seus apoiantes é pouco inteligente e não ajuda a causa anti-futebol, além de demonstrar que alguns intelectuais têm um problema com o futebol sem que se perceba porquê. Dir-me-ão que o problema deles não é o futebol, mas o que consideram excesso de futebol. Acontece que o excesso de futebol é, para eles, tudo o que desvie a atenção do que julgam importante, pelo que qualquer dose é excessiva. Curiosamente, os países ditos civilizados, precisamente os países que eles não se cansam de apontar como exemplos a seguir, têm, sobre o futebol, mais ou menos o mesmo comportamento que os portugueses, e nem por isso deixam de ser civilizados. Como não deixam de ser civilizados os intelectuais que, em Portugal e fora dele, não vêem o futebol como coisa de selvagens, e também não me consta que o entusiasmo de alguns lhes abale a respeitabilidade. [Originalmente publicado em 1-6-2010]
UMA DERROTA ANUNCIADA. Dizem que o fundamentalismo islâmico é uma minoria, e eu esforço-me por acreditar. Mas, sendo uma minoria, como consegue ela ter tanto poder? Convenhamos que não se espera de uma minoria que imponha valores a quem defende outros valores, modos de vida a quem escolheu outros modos de vida. Pegando no último caso conhecido, teriam os responsáveis de South Park censurado um episódio caso fossem ameaçados pela Igreja Católica em vez do Islão? Evidentemente que não teriam, e se calhar teriam aproveitado a ocasião para fazer uns episódios ainda mais «picantes», e o incidente acabaria com os responsáveis da Igreja Católica (reparem, os responsáveis da Igreja Católica, não uma minoria) a meter o rabo entre as pernas. Como é o Islão a fazer ameaças, como as ameaças do Islão são para levar a sério, os responsáveis de South Park puseram-se imediatamente de joelhos, e desculpem lá o meu jeito. Pior: o silêncio generalizado que o episódio mereceu demonstra que tais práticas já se tornaram rotina, o que equivale a dizer que estamos prontos a ceder o que for preciso, e a sacrificar o que for necessário. Sou agnóstico, mas a circunstância não me impede de ver que a Igreja Católica «encaixa» diariamente toda a espécie de críticas, algumas sem fundamento, e só para falar da Igreja Católica. A começar, aliás, pelo Papa, que não sendo o santo que alguns tentam fazer crer não se tem furtado a pedir desculpas pelos pecados próprios e alheios. Ao contrário, o fundamentalismo islâmico exige que lhe peçam desculpa pelo pecado de não pensarem como eles, e estamos cheios de sorte se acederem ao nosso pedido. É perturbante, é revoltante, mas é assim. [Originalmente publicado em 31-5-2010]
MAQUINAÇÕES. É possível que exista uma «maquinação» contra a Igreja Católica usando a pedofilia como pretexto, como desconfia o cardeal Saraiva Martins, mas se vamos por aí também é provável que a Igreja Católica esteja a usar a teoria da «maquinação» como manobra de diversão. A pedofilia na Igreja Católica é infinitamente mais grave que a «maquinação», real ou imaginária, de que a Igreja Católica possa estar a ser vítima, como diariamente se constata. Esconder a realidade, além de obsceno, é contraproducente, e dizer-se que se pretende transformar «uma culpa pessoal em culpa colectiva» é pura demagogia. Pior: comparar os ataques à Igreja Católica como o pior do anti-semitismo, como fez um padre italiano num sermão proferido diante Bento XVI, é um insulto aos judeus, e até mesmo quem está pouco informado sobre o assunto sabe bem que as duas coisas não são comparáveis. Ainda mais: o autor da grosseria não é um padre qualquer, mas o autor de inúmeras obras de carácter teológico, e o «pregador pessoal» de Bento XVI. Com certeza que a pedofilia não é um exclusivo da Igreja Católica, e está por demonstrar que a a Igreja Católica alberga mais casos de pedofilia que outra agremiação do género. Seguramente que os pecados do Islão (ou cometidos em nome do Islão) não merecem um décimo do escrutínio que merecem os pecados da Igreja Católica, e só para falar num caso flagrante. Mas não é relativizando a pedofilia na Igreja Católica que ela se torna menos grave, não é escondendo os casos que vão surgindo que eles deixam de se ver, não é assobiando para o lado que o problema se resolve. Encarar a pedofilia na Igreja Católica como um problema «típico das famílias» que no recato das famílias deve ser resolvido, como também defende Saraiva Martins, é demasiado chocante para ser verdade. Mais sensatos foram os cardeais Policarpo e Torgal Ferreira, o primeiro ao dizer que «os pecados da Igreja (...) indignam o mundo e ofuscam a imagem do reino de Deus», e o segundo ao acusar a hierarquia da Igreja Católica de ocultar o problema para salvar a imagem. E se há coisa de que a Igreja Católica anda muito necessitada é de sensatez. [Originalmente publicado em 6-4-2010]
CHEGÁMOS À MADEIRA. Quando ocorreu a tragédia no Haiti, as primeiras notícias falavam de mortos e feridos e de um país miserável, onde a tragédia teria sido atenuada caso não fosse governado por gerações de políticos que não se recomendam. Que me lembre, ninguém se indignou que assim se falasse. Agora, que a tragédia chegou à Madeira, quando alguém sugeriu erros de planeamento urbanístico, que eventualmente teriam reduzido a dimensão da tragédia, foi logo apelidado de canalha, e quem tinha algo a dizer sobre o assunto meteu o rabinho entre as pernas. Não sou especialista em planeamento urbanístico, mas a ignorância não me impede de ver o que me parece uma evidência: se é provável que os críticos de Jardim aproveitaram a ocasião para o criticar, não olhando a meios e a escrúpulos, também é nestas alturas que melhor se percebem os eventuais erros cometidos. As tragédias deviam, ao menos, servir para lhes conhecermos melhor a origem — de modo a evitar que se repitam caso seja possível evitar que se repitam, ou de forma a encontrar maneiras de minimizar as consequências. Concentrar as energias a enterrar os mortos e a cuidar dos vivos, como dizia o outro, é uma tarefa meritória, mas soa a pouco. [Originalmente publicado em 15-3-2010]
COISAS SIMPLES. Cada vez tenho mais dificuldade em julgar as imagens que me chegam de cenários de guerra, terramotos e coisas afins. O que é razoável mostrar nas TVs? Imagens de grande violência são, por regra, exploração das vítimas, e grande parte das vezes não há dúvida que são. Fazer o quê, então, diante a violência extrema? Ficar por imagens «limpas» de modo a não perturbar os estômagos e não correr o risco de ser acusado de exploração da violência? Será que, assim, ficaremos com a noção exacta da dimensão das tragédias que nos mostram? Não estaremos demasiado habituados às «guerras limpas», onde nunca se vêem mortos e feridos agonizantes e cadáveres amontoados? Percebo as críticas às imagens que passam nas TVs, e não é preciso esforçar-me para concordar com elas. Mas o caso é mais complexo do que as críticas sugerem, e sem dúvida que é mais fácil apontar o dedo que a solução. O bom senso seria, aqui, a medida certa, mas o problema é que o bom senso é um conceito tão vago que cada um tem o seu. A realidade é a cores, como agora se diz por tudo e por nada. Simplificar o que não é simplificável, é demagogia ou ignorância. [Originalmente publicado em 11-2-2010]
INDEPENDÊNCIAS. Antigamente, era pecado zurzir em quem estava no poder, e geralmente pagava-se cara a ousadia. Hoje, é pecado defender quem está no poder, embora os custos sejam infinitamente menores. Como terão notado, não sou, por princípio, contra o poder ou a favor do poder, seja o poder qual for, e será desnecessário dizer que um pouco de bom senso bastará para se concluir que nem tudo é mau no poder, e nem tudo é bom na oposição. Por mais que me chamem «seguidista» ou coisas piores, recuso-me a criticar o Governo se achar que não há motivos para tal, e parece-me desnecessário lembrar que quem é contra o Governo não é, necessariamente, independente, como tantas vezes se pretende fazer crer. Também não aceito que se ataque um governante (dirigente político, destacado militante de um partido político, casos do género) por este ter tomado uma medida que não agradou ou dito algo que não caiu bem usando como arma o ataque pessoal em vez de argumentos, para mim os únicos legítimos. Ser contra o poder é popular nos regimes democráticos, pelo menos nos regimes democráticos dignos desse nome, e sempre politicamente correcto. Mas como não pretendo ser popular nem politicamente correcto, digo o que penso, e logo se vê. Se vierem elogios, aprecio-os e agradeço. Se vierem impropérios, já estou vacinado. Ser independente tem custos. Geralmente apanha-se de todos os lados, incluindo dos independentes. Não é agradável, que não sou masoquista. Mas são as regras do jogo, e não estou disposto a trocá-lo por nenhum outro. Por mais que isso incomode algumas almas, por mais jeito que me dê, por mais confortável que seja. A não ser que me ponham um revólver à frente, que nesse caso mudarei de opinião sem grande dificuldade. [Originalmente publicado em 15-1-2010]
FADOS E GUITARRADAS. Volta e meia criticam-me o escasso entusiasmo pelo fado, nos melhores casos alertando-me para uma deficiência, nos piores insultando-me. Dizem-me que o fado é isto e aquilo, que são precisos não sei que conhecimentos que eu não terei para o apreciar como deve ser apreciado, embora jamais me tenham explicado que conhecimentos são esses, e de que forma o fado deve ser apreciado. De tanto ter dado para este peditório, geralmente acolho as críticas com um encolher de ombros, e raramente me dou ao trabalho de argumentar. Mas há uma coisa que me tem esquecido de dizer, e que não perdeu pela demora: de um modo geral, os entusiastas do fado não apreciam música, ou só apreciam aquela música que geralmente se designa com adjectivos pitorescos que me dispenso de enunciar. Bem sei que há apreciadores de fado que gostam de música, e eu próprio conheço alguns casos. Mas falo da regra, e a regra parece-me esta. A não ser que os fundamentalistas me tenham calhado todos a mim (castigo divino, dirão alguns), mas acho pouco provável. Digo fundamentalistas porque é de fundamentalistas que se trata, pois genuflectem com uma facilidade espantosa sempre que falam de fado, e quando se fala de outras músicas são surdos que nem portas — ou só têm ouvidos para cantigas de que é melhor nem falar. Não é uma opinião, é um facto. Um facto que eu, como apreciador de música, sou o primeiro a lamentar, e não estou a ironizar. Um fundamentalista é basicamente um cego ou um surdo (ou as duas coisas), e cegos e surdos só me merecem respeito os que o são de facto. Cegueira por recusa de ver ou surdez por recusa de ouvir, causam-me pena nos melhores casos, e desprezo em todos os outros. Escusado será dizer que a nenhum deles reconheço autoridade para me dar lições de música, ou do que quer que seja. [Originalmente publicado em 11-12-2009]
REAL E VIRTUAL. A ideia de que os media estão ao serviço dos governos, de só haver um ou outro jornal ou TV independentes que os governos tentam calar, é um argumento mais que estafado. Há jornais (e jornalistas) que fazem fretes ao Governo? Não duvido. Como também não duvido que há jornais (e jornalistas) que fazem fretes à Oposição, e só para não sair da política. Quem não ouviu que o Partido Republicano controlava os media no tempo de Bush, e Obama, apesar de ser do Partido Democrático, ganhou da forma que se viu? Quem não leu que a administração republicana se passeava com os media pela trela, apesar de os principais jornais americanos se terem posicionado ao lado do candidato que Bush acabaria por derrotar? Aliás, este último ponto levanta a questão de saber até onde vai o poder dos media em matéria eleitoral. Terão eles a importância que se lhes atribui? Devo dizer que não simpatizo com o actual Governo e com quem o chefia, mas já dei para este peditório. É que a realidade está sempre a desmentir as mais belas teorias, como a asfixia democrática, uma belíssima treta. Concordo que não há boa informação, que há erros em demasia e excesso de servilismo, mas nunca duvidei que existe pluralidade de informação. Será pouco, mas muito mais do que nos querem fazer crer. [Originalmente publicado em 17-11-2009]
BALELAS SARAMAGUIANAS. Não sei se a Bíblia é um «manual de maus costumes e um catálogo do pior da natureza humana», como diz Saramago, e se Caim poderá «incomodar os judeus», como suspeita ou deseja. Duma coisa, porém, não duvido: Saramago é melhor na promoção dos seus livros que a escrevê-los, coisa, aliás, que não é difícil. Para não variar, a Igreja Católica voltou a cair na esparrela. Saramago «revela uma ingenuidade confrangedora quando faz incursões bíblicas» e «deveria informar-se antes de escrever», disse o bispo do Porto. Anselmo Borges acha que Saramago fez uma leitura «completamente unilateral» da Bíblia, o porta-voz da Conferência Episcopal disse que «um escritor da craveira de José Saramago deveria ir por um caminho mais sério», e o director da Faculdade de Teologia da Católica esperava que o escritor reconhecesse «o valor de obras que estão entre os grandes textos do património literário da humanidade». Também os judeus não resistiram. Saramago «não conhece a Bíblia nem a sua exegese», disse o rabino Eliezer di Martino. Dezoito anos após a polémica causada pel’O Evangelho segundo Jesus Cristo, eis mais um escândalo saramaguiano para animar as vendas, como sempre com a contribuição de uns quantos que melhor fariam estar calados. Por mim, se os primeiros parágrafos de Caim estiverem tão mal escritos como os primeiros parágrafos d’O Evangelho ou d’A Viagem do Elefante, o lançamento do livro não chega a ser notícia, muito menos motivo de controvérsia. Notícia seria se Saramago tivesse publicado um livro escrito de forma escorreita, mas isso seria pedir demasiado. [Originalmente publicado em 21-10-2009]
CRONISTAS. Miguel Esteves Cardoso dizia, há pouco, que gosta de ler «coisas compridas que deram trabalho a descobrir», a «pensar», e a «escrever». Também eu tenho saudades dos tempos em que os jornais e as revistas publicavam textos compridos que deram trabalho a escrever, do tempo em que O Independente abria com duas páginas de Agustina, das revistas K e Best Off, e dos primórdios da Grande Reportagem. Mas o que realmente me chateia nos dias de hoje é ver alguns dos nossos melhores cronistas reduzidos a três parágrafos. Posso estar enganado, mas duvido que os leitores apreciem o modelo. Provavelmente os editores ter-se-ão convencido de que os leitores não têm tempo (ou paciência, ou as duas coisas) para ler mais que três parágrafos, mas eu duvido outra vez. Verdade que alguns me adormecem ao segundo parágrafo, e até já nem leio meia dúzia com esse receio. Mas destes não é o tamanho que me chateia. Chateiam-me porque escrevam coisas desinteressantes ou de forma desinteressante, às vezes as duas coisas. E não me refiro aos cronistas de que discordo quase sempre (podia citar alguns de que discordo quase sempre cujas prosas nunca dispenso), mas aos que escrevem de modo em que nem se aproveita o estilo, nem o conteúdo. É uma opinião, bem sei, tão discutível como qualquer outra. Mas o pior que me podem dizer é que tudo isto é relativo, e assunto encerrado. É que eu estou farto do relativismo que tudo iguala, quer seja bom, quer seja mau. Estou farto da preguiça mental que o relativismo, no fundo, encerra, para não dizer que o relativismo é uma forma de fugir à discussão. O que me convence são os argumentos, não os relativismos. E ainda me hão-de demonstrar que o formato minúsculo é o que os leitores preferem. [Originalmente publicado em 1-10-2009]
O FUTURO DO LIVRO. Percebo o receio sobre o futuro do livro em papel, mas começo a cansar-me dos argumentos contra os meios electrónicos, alegadamente porque os meios electrónicos ameaçam a existência do livro em papel. Utilizo maquinetas de leitura electrónica há mais de uma década e nem por isso diminuiu o meu interesse pelo livro em papel, e não me parece que eu seja um caso único. Até ver, as maquinetas são mais um complemento que uma alternativa, embora às vezes sejam, de facto, uma alternativa, e uma alternativa por ser uma mais-valia. Ao contrário do que se tem dito, as maquinetas de leitura electrónica têm vantagens. Há livros que li no leitor de eBooks que dificilmente teria lido em papel. Umas vezes porque não encontro edições em papel, outras vezes porque as edições em papel são tão antigas que é preciso manuseá-las de modo a não se desconjuntarem, outras ainda porque é mais fácil encontrar edições na internet (de borla) que nas livrarias (a pagar). Li praticamente todo o Eça no leitor de eBooks, bem como quase tudo o que li de Camilo e Machado de Assis. Além destes, tenho a maquineta «carregada» com Euclides da Cunha, Padre António Vieira, Fernando Pessoa, Charles Dickens, Mark Twain, Charles Darwin, Joseph Conrad, Henry James e outros, quase todos tirados da internet. Não seria fácil desencantar edições em papel de alguns deles, nomeadamente dos lusófonos, muito menos residindo eu, como resido, nos EUA. Mas devo dizer que também eu prefiro o livro em papel (no leitor de eBooks perde-se o livro enquanto objecto, que naturalmente aprecio), que nunca deixei de comprar nem de ler, apesar de os livros em formato electrónico serem mais baratos e, por vezes, mais atraentes (pode-se mudar as fontes e o tamanho das letras, o que não é pouco). Um exemplo entre vários que podia dar: estou a ler a versão inglesa de A Viagem do Beagle no leitor de eBooks apesar de possuir uma edição recente em papel. Razão: o exemplar em papel é demasiado pesado (costumo ler deitado, pelo que o peso faz diferença), e o papel foi de tal modo aproveitado que sou obrigado a forçar a abertura do livro para além do que seria razoável. Como posso lê-lo no leitor de eBooks sem estes inconvenientes, ainda por cima de forma gratuita, por que não haveria de fazê-lo? Podia dar mais exemplos acerca das vantagens do leitor de eBooks sobre os congéneres em papel — vantagens, repito, que não põem em causa o futuro do livro em papel, nem o carinho que tenho por eles. Não que eu não admita que o fim do livro em papel não seja uma possibilidade, mas porque me parece que não será devido às maquinetas de leitura electrónica. Aliás, não deve ser por acaso que a indústria electrónica tenta, há anos, popularizar o leitor de eBooks, até ver sem sucesso. Mas se, um dia, substituírem os livros em papel, não será porque a indústria livreira assim o determinou, mas porque os leitores assim o quiseram. Tal como não foi a indústria musical que ditou o fim dos LPs e, não tarda, dos CDs, mas os consumidores, que perceberam as vantagens dos novos meios — e decidiram mudar. Se assim for, apenas se muda o suporte. O livro, esse, permanece, e isso é que importa. [Originalmente publicado em 1-9-2009]
PUTAS E SUBMISSAS. Desconheço a seriedade do movimento «Nem Putas nem Submissas», mas simpatizo com o nome. Trata-se, ao que dizem, de um grupo de activistas muçulmanas que pretendem denunciar a «degradação da condição feminina» entre as comunidades imigrantes francesas, pelo que eu só posso aplaudir. Mas se isto não me oferece reservas, já me parece um disparate que deputados franceses (seis dezenas) e o próprio presidente Sarkozy defendam a proibição da burqa, a pretexto de que as burqas são «degradantes» e «verdadeiras prisões ambulantes», e que «a visão destas mulheres aprisionadas» é «inaceitável no solo da República». Discordo por uma razão elementar: por mais que se pretenda libertar a mulher muçulmana da opressão masculina, por mais que se queira pôr fim a situações repugnantes e inadmissíveis no mundo em que vivemos, por mais nobres que sejam as intenções destes e doutros beneméritos, a verdade é que nem todas as mulheres muçulmanas residentes em França usam a burqa porque a isso são obrigadas. É por esta e por outras como esta que nada se tem avançado contra as práticas fundamentalistas islâmicas, nomeadamente em países onde se espera que não aconteçam. Pelo contrário. Situações como esta apenas servem para andarmos para trás. Usando a lógica do fundamentalismo islâmico, proibindo em vez de deixar que cada um livremente decida o que fazer, acaba-se a justificar (e a promover) o fundamentalismo islâmico, precisamente o contrário do que se pretende. Espero, portanto, que os políticos franceses ganhem juízo, e que as simpáticas senhoras alcancem o que pretendem. [Originalmente publicado em 5-8-2009]
ELEITOS E NOMEADOS. Contrariamente ao que ouvi a um deputado, já não me lembro quem e a que propósito, é bom recordar que os parlamentares portugueses não são eleitos. Verdade que alguns são (desempenham, de facto, o cargo para que foram eleitos), mas uma enorme quantidade não é. Três quartos dos deputados não estão na Assembleia da República porque foram eleitos, mas porque foram nomeados por quem neles manda (os partidos políticos), diz um estudo recente. De facto, o sistema eleitoral português não elege deputados: elege a percentagem de lugares no Parlamento a que cada partido que se apresenta a sufrágio tem direito. Como se perceberá, não é uma questão de palavreado ou de interpretação dos resultados eleitorais, que cada um faz como lhe convém. É uma questão de facto, e os factos não se discutem. Também não é, evidentemente, a descoberta da pólvora. Mas é bom que tenhamos presente que as coisas são o que são, e que saibamos em quem votamos quando votamos nas legislativas, por mais interessantes que sejam os candidatos que nos ponham à frente e nos garantam que serão eles, uma vez eleitos, que nos irão representar. [Originalmente publicado em 6-7-2009]