GÜNTER GRASS. Nunca li qualquer obra de Günter Grass, nem tenciono ler. Em matéria de leituras, tenho outras prioridades — e escasso tempo para elas. Polémicas como a que envolve o escritor alemão — a revelação, pelo próprio, de que pertenceu às tropas de elite nazis — nunca me abriram o apetite, nem me afastaram da obra de ninguém. Há muito que aprendi a separar as obras dos seus criadores, por mais inseparável que seja uma coisa da outra. Se a obra é grande mas o escritor tem um passado que não se recomenda, não há razão para que a obra deixe de ser grande. Se o escritor é uma excelente pessoa mas a obra é medíocre, não há razão para que a obra melhore. Sigo este princípio praticamente desde sempre, e a experiência tem-me demonstrado que raramente me sucede gostar da obra e do seu criador. Dizer-se, por isso, que a revelação de Grass vai ter um impacto negativo na obra, confesso que não estou a ver. Bem pelo contrário. A publicação da autobiografia do escritor alemão foi antecipada de modo a explorar a polémica em curso, e chegou ao mercado com a primeira edição praticamente vendida. Também não é difícil imaginar que o autor vai vender mais uns milhares de exemplares que não venderia caso não surgisse esta polémica. Se tudo isto foi premeditado ou não, é coisa que poucos saberão. Mas uma coisa julgo saber: como dizem os americanos, má publicidade também é publicidade. E é um facto que a publicidade resultante das polémicas declarações tem beneficiado o escritor, pelo que não vejo razão para lamúrias. Se houve quem tivesse aproveitado a ocasião para devolver as lições de moral que o autor sempre gostou de dar e, de caminho, lhe tenha chamado uns quantos nomes feios, não foi nada que ele não merecesse — nem razão para tanto escarcéu. [Originalmente publicado em 25-8-2006]
BOM SENSO. O recente episódio protagonizado pela Assembleia Legislativa da Madeira — o anúncio de que pretende impedir o uso de «vestuário pelintra» (t-shirts, calções, sandálias, etc.) aos repórteres em serviço naquela casa — presta-se a demagogia e a anedotas. Não fosse a guerra em curso — e, agora, os intestinos de Fidel —, ainda agora a questão seria assunto de comentadores, até porque no Verão escasseiam matérias que se prestem a comentários. Os jornalistas e o sindicato dos ditos ficaram indignados com a desfaçatez do parlamento madeirense, e nem seria de esperar outra coisa. Mas chegar ao ponto de se dizer que a imposição de um dress code visa «criar um clima de repressão e de limitação da liberdade individual ou ser usado como ferramenta de segregação e desigualdade social», como disse Vítor Malheiros, é um disparate total. O constitucionalista Jorge Miranda revelou que estamos perante «um problema de bom senso», não «um problema de Direito». Nada mais acertado. Claro que podemos questionar o que é isso do bom senso, mas tudo se pode questionar seguindo esse princípio. Claro, também, que não se pode ignorar que a medida veio da Madeira, onde as regras do jogo democrático não se recomendam. Mas seria bom não tomar a nuvem por Juno, não fazer uma tempestade com um chuvisco. Afinal, comparado com os problemas com que os jornalistas se defrontam (e que raramente têm coragem de abordar), o episódio da Madeira não passa de um fait divers que se resolve com menos gritaria e um pouco mais de bom senso. Até porque qualquer pessoa sem interesses na matéria facilmente detecta que há razões dos dois lados, e que nenhum deles a tem toda. [Originalmente publicado em 04-8-2006]
RESCALDO. Agora que o Mundial já se acabou, duas ou três coisas para encerrar o capítulo Scolari. Um seleccionador que se dá ao luxo de não convocar aquele que é considerado o melhor jogador português da actualidade e de convocar guarda-redes com desempenhos medíocres (ou que não jogam nos seus clubes), de escolher jogadores sem equipa (ou que não jogam nas equipas a que pertencem), de optar por estrelas que já viram melhores dias (ou que já não podem com um gato pelo rabo), deixar Pinto da Costa a falar sozinho e levar Portugal às meias-finais de uma competição como o Mundial de Futebol é obra que não está ao alcance de todos — e que só pode merecer o aplauso geral. Vicente Jorge Silva perguntava, no DN, «o que podemos fazer para merecermos a selecção» que temos. De facto, a selecção deu aos portugueses o que muitos prometem mais só ela deu: alegrias, um saudável patriotismo, a tão falada auto-estima. Não se percebe, por isso, o fundamentalismo anti-futebol e a natureza das críticas que por aí se viram, e ainda menos que o entusiasmo à volta da selecção tenha incomodado tanta gente. Claro que também eu só me lembro de ver o Pauleta por altura dos hinos e não me recordo de Portugal jogar da forma atractiva que a FIFA garante, mas não são críticas destas a que me refiro. Falo das críticas que demonstraram estar mais interessadas nos interesses particulares que no interesse geral, dos críticos que se indignaram com a atenção dispensada ao futebol — e, por consequência, roubada a eles próprios. Percebe-se que a atenção dada à selecção possa exceder o razoável, mas já não se compreende que reajam por puro ciúme e com argumentos sem pés nem cabeça. Sim, eu tenho dúvidas de que é mais importante o que eles dizem do que os feitos da selecção — e estou longe de ser um entusiasta do futebol. Por muito que lhes custe, a questão que tomam por evidente levanta-me dúvidas — e, ao que vejo, não só a mim. Coisa que não sucederia caso houvesse um pouco mais de bom senso e menos fundamentalismo. [Originalmente publicado em 17-7-2006]
FRONTALIDADE. Tenho o hábito de assinar o que digo sem olhar a consequências. Como se calcula, isto só me traz dissabores — e nenhum proveito. Mas cada vez se torna mais difícil ser de outra maneira, pois cada vez suporto menos a mentira, as meias tintas, a hipocrisia. Deixei, por exemplo, de ter paciência para quem diz uma coisa agora e logo outra, para quem pensa segundo as circunstâncias e as conveniências. A passagem do tempo tem-me suavizado muita coisa de que não gosto, mas tornou-me mais radical neste aspecto — e é tarde para mudar. A hipocrisia é, de longe, o que mais me custa, e não digo a hipocrisia travestida de cortesia — aquela que todos praticamos no dia-a-dia quando está em causa a conta da mercearia ou a renda de casa. Claro que dizer em público o que penso é pôr-me a jeito para levar pancada — pancada pelo atrevimento de dizer, pancada dos que discordam do que digo, pancada porque, assim, não tenho quem me defenda. Mas eu sou assim — e não há nada a fazer. Com certeza que seria muito mais fácil pagar as contas caso fosse de outra maneira, mas isso dava-me cabo do estômago — e eu, de estômago, já tenho problemas que me cheguem. De maneira que prefiro preservar o canastro, pois com a saúde não se brinca. [Originalmente publicado em 29-6-2006]
VERGONHA. Portugal venceu Angola e entrou da melhor forma no Mundial. Tirando isso, que não foi pouco, o resultado esteve aquém do que seria de esperar, e a exibição foi miserável. Os jogadores portugueses passaram a vida a reclamar, a fazer malabarismos desnecessários e inconsequentes, à espera que o tempo passasse. Valeu-nos que os angolanos não souberam aproveitar, e um árbitro generoso na marcação de faltas a nosso favor. Os assobios que se ouviram nas bancadas que sirvam, ao menos, para que os nossos artistas expulsem o rei da barriga, e arregacem as mangas na hora da refrega. É que, assim, a jogar como jogamos contra Angola, não vamos lá, e Portugal tem capacidade para fazer melhor. Dizem os optimistas que, comparando com as misérias alheias, a prestação portuguesa até nem foi má de todo. Pois seja, mas eu preferia que nos comparássemos aos melhores e não aos piores. Até porque as misérias dos outros não desculpam (ou justificam) as nossas. Dir-me-ão que o importante é ganhar, mesmo à tangente e com o credo na boca, e o resto é secundário. De acordo. Mas, reparem, eu não peço que sejamos brilhantes. Peço, apenas, que não nos façam passar por vergonhas, muito menos vergonhas perfeitamente escusadas. [Originalmente publicado em 12-6-2006]
SCOLARI, OUTRA VEZ. Já disse e repeti mas insisto: o percurso de Luiz Felipe Scolari à frente da selecção portuguesa de futebol foi, até agora, um sucesso. Como é o sucesso que conta nestas coisas da bola (e não só da bola, evidentemente), as críticas que se ouvem carecem de fundamento. Escolher determinados jogadores e não outros é um processo que se presta a controvérsia e a toda a espécie de pressões, nomeadamente pressões de quem está habituado a ver contemplados os seus interesses (empresários, clubes, patrocinadores), a que raramente os seleccionadores conseguem resistir. Até nisto o seleccionador brasileiro é um vencedor: não cede a pressões — ou, pelo menos, dá a ideia que não. Aliás, confirmou-se na polémica com Agostinho Oliveira, quando Scolari arrumou a questão dizendo que é ele quem manda. Ainda mais: o seleccionador conseguiu juntar os portugueses à volta da selecção aquando do último Europeu, criando uma onda de entusiasmo como nunca se viu — e que terá contribuído para os resultados alcançados. É claro que a factura lhe sairá caríssima caso as coisas no Mundial não corram bem, como lhe teriam saído caríssimas se tivesse falhado no Europeu. Aliás, ainda há pouco um ilustre afirmou que a derrota na final do último Europeu foi «um desastre», e que se fosse ele a mandar tinha despedido o seleccionador no dia seguinte. Mas nada disto invalida que se façam críticas, só que é bom não perder de vista o essencial. E o essencial, repito, são os resultados, e os resultados dão a Scolari legitimidade para tomar as decisões que tomou. O resto pode ser interessante e ter a sua importância, mas é secundário. [Originalmente publicado em 22-5-2006]
ESTRELAS. É frequente ouvir-se dizer que as «estrelas» (do cinema, da música, do desporto) devem estar à altura do estatuto que possuem. Como os seus comportamentos tendem a ser copiados por muita gente, nomeadamente pelos mais vulneráveis, espera-se que tenham um comportamento exemplar. Temos, assim, que um artista da bola (para falar de um dos casos mais conhecidos) deve ter maneiras. Não pode, por exemplo, mandar o árbitro onde lhe apetecer, muito menos os adeptos do clube que lhe paga. Caso contrário, temos o caldo entornado. Como os inúmeros exemplos demonstram, não raro a coisa adquire foros de escândalo, para gáudio da imprensa tablóide (quase sempre a instigadora) e vergonha dos adeptos — e para não falar em assuntos de cama. Acontece que há coisas na vida das «estrelas» a que vale a pena prestar atenção. Por exemplo, quando tempo terá passado na escola um artista da bola? Quantas vezes se interessou por outra coisa que não fosse jogar futebol? Quem lhe ensinou boas maneiras e a comportar-se num salão? Como se vê, esperar que se comporte fora do campo como dentro dele é insensato — e pedir demasiado. Por mais que se goste das proezas dos artistas, eles são o que são e não o que gostaríamos que fossem. E ainda bem que assim é, acrescentaria eu, mas isso é outra conversa. [Originalmente publicado em 2-5-2006]
ERA O VINHO. Depois de se ter revelado ao País por mandar retirar das bancas a edição de um semanário regional que continha uma entrevista por ele concedida que o jornal resolveu publicar sem a revisão prévia do entrevistado, edição que regressaria às bancas após o entrevistado ter feito as alterações que muito bem entendeu, o secretário de Estado da Administração Interna ameaçou os produtores de vinho de «diminuir consideravelmente» a taxa de álcool no sangue permitida pelo Código da Estrada caso o sector vinícola não faça alguma coisa para contrariar o número de vítimas na estrada. Acontece que a ameaça de Ascenso Simões foi infeliz e levanta algumas dúvidas. Para começar, não se vê por que há-de ser apenas o sector vinícola a pagar pelo excesso de álcool na estrada, quando é sabido que há outros álcoois tão ou mais responsáveis. Depois, não se compreende que há três anos o então deputado tenha defendido o contrário do que agora professa, como lembrou o DN. Por último, houve quem no Governo se tivesse apressado a esclarecer que a ameaça de Ascenso Simões não passou de um «desabafo», aproveitando para deixar claro que só três pessoas no Executivo têm competências na matéria: os ministros da Agricultura e da Administração Interna, e o primeiro-ministro. Ascenso Simões quer diminuir os acidentes na estrada originados pelo álcool? Comece por reforçar a vigilância das leis que já existem. Qualquer estrangeiro que chegue a Portugal e se meta num automóvel constata em meia hora que transgredir o Código da Estrada é um desporto nacional, a regra quando devia ser a excepção, e não só por causa do álcool. Claro que o ideal seria que as pessoas bebessem menos antes de irem para a estrada, mas quem acredita que isso se resolve com campanhas de sensibilização? Evidentemente que a coisa só muda quando a punição for regra e não excepção. A não ser que a ideia seja mudar para que tudo fique na mesma, como dizia o outro. Mas, nesse caso, mais valia não ter aberto a boca, pois não tinha entrado mosca. [Originalmente publicado em 13-4-2006]
A FEIRA. A propósito das mais recentes «notícias» da Madeira, que nos dão conta de que o manda-chuva local dos social-democratas (Jaime Ramos) terá tentado agredir o socialista Bernardo Martins — a quem chamou «filho da puta» — e a bloquista Violante Saramago — a quem mandou «à merda» —, o Público fez uma espécie de balanço dos insultos ocorridos nas três décadas de parlamentarismo madeirense. Assim ficamos a saber que houve insultos para todos os gostos — ou para quase todos os gostos, pois os espíritos mais requintados terão as suas razões de queixa. Alberto João Jardim foi, de longe, o que mais se destacou, não só devido à quantidade de insultos que proferiu mas, também, devido ao cargo que ocupa. Entre outras pérolas, o presidente madeirense chamou «burro» ao socialista Gil França, «tonto» e «mafioso» ao então primeiro-ministro António Guterres, e «delinquentes potenciais» a dois deputados comunistas. Jaime Ramos, braço-direito do presidente madeirense, chamou «burro» ao socialista Jacinto Serrão, «cabra» à socialista Rita Pestana, e ameaçou dar «um tiro nos cornos» ao comunista Edgar Silva. Ainda no partido do poder, que ainda há pouco acusou um deputado socialista de «demência», Coito Pita «convidou» o socialista Martins Júnior — que em tempos teve que ser assistido num hospital por causa de uma agressão, em plena assembleia, do social-democrata Egídio Pita — a «ir lá para fora» durante uma troca de insultos que por pouco não chegou a «vias de facto». Por último, Jacinto Serrão questionou Jaime Ramos sobre a proveniência dos seus rendimentos, acusando-o de ter passado de «vendedor de sifões de retretes» a «milionário ao fim de dez anos» à custa da governação social-democrata. Isto na assembleia regional, que fora dela Alberto João Jardim bateu todos os recordes. Eça de Queirós, n’As Farpas, fartou-se de dizer que os deputados do seu tempo se comportavam na Câmara como se estivessem numa feira. Mas isso era em pleno século XIX, apesar de os deputados dessa altura nos parecerem, por comparação aos actuais, mais civilizados que os do reino de Alberto João Jardim. [Originalmente publicado em 23-3-2006]
MAMARRACHOS. Alguém me contou que um reputado escultor protagonizou um episódio que jamais esquecerei. Aliás, estou convencido de que o ouvi pela boca do próprio, mas a verdade é que não tenho a certeza. O episódio metia o escultor, um cavalheiro que enriqueceu ninguém sabe como, e umas ideias feitas acerca da arte. Como a residência que se preparava para inaugurar tinha um espaço onde não sabia o que pôr, o cavalheiro endinheirado resolveu consultar o artista. Alguém lhe sugerira uma escultura, explicou ao artista, de modo que ali estava ele para saber se a podia fazer — e por quanto. O artista percebeu que o cavalheiro não distinguia um burro de um palácio, mas que tinha o que a ele não sobejava: dinheiro para o que fosse preciso, e quanto mais pedisse mais valor a obra teria. De maneira que resolveu pedir uma maquia mais que razoável, e negócio fechado. O sujeito resolveu dar uma festa para assinalar o acontecimento e mostrar a obra aos amigos. Afinal, tinha gasto uma fortuna naquilo, e o pior que lhe podia suceder seria que a coisa passasse despercebida. Calhou que entre os convidados houvesse quem não fosse inteiramente ignorante nas coisas da arte e já conhecesse o artista. Chegada a hora de mostrar o «mamarracho» (a designação é do artista), os convivas desataram a aplaudir com entusiasmo e não pouparam elogios ao escultor e a quem teve a ideia. Mesmo os dois ou três que, observado o «mamarracho» com mais atenção, perceberam que ali havia qualquer coisa que não batia certo, e que se riram a bom rir mal se apanharam dali para fora e souberam o resto da história. [Originalmente publicado em 6-3-2006]
CARICATURAS. O ruído à volta da publicação das caricaturas do profeta Maomé tem relegado para secundaríssimo plano a origem das mesmas, que vale a pena recordar. Tudo começou com a dificuldade de um escritor encontrar alguém capaz de ilustrar um livro sobre o fundador do Islão. Informado sobre a recusa de alguns ilustradores, que alegaram temer pelas suas vidas, um jornal dinamarquês resolveu desafiar algumas dezenas de artistas a fazerem as caricaturas. O resultado é conhecido: doze foram publicadas pelo Jyllands-Posten e o mundo desabou. Ora, como o episódio demonstra, o medo do Islão não nasceu com a polémica das caricaturas. Há quem pratique a autocensura (provavelmente a pior das censuras) com receio de ser morto, e não devem ser poucos. Com certeza que a provocação que a publicação das caricaturas acabou por tornar-se poderia ter sido evitada, mas é preciso sublinhar que não foi violada qualquer lei dinamarquesa ou europeia — e não publicar as caricaturas com receio de represálias seria pior. Francisco José Viegas dizia recentemente que, em nome dos valores muçulmanos, «desculpabiliza-se a tortura, a humilhação de mulheres ou de adúlteros, a excisão feminina, o apedrejamento de homossexuais ou a mutilação de adolescentes que praticaram sexo à margem da lei». E não só nos regimes islâmicos, embora não se vejam fóruns de Porto Alegre a protestar contra essas práticas. É que falar contra o Islão tornou-se politicamente incorrecto, perigoso. Se alguém se lembrar de satirizar Moisés ou Jesus Cristo, a coisa gera uns vagos protestos e dois dias depois já ninguém se lembra do episódio — além de que nunca se viu um governante pedir desculpas por coisa assim. Como se vê, há religiões que se podem caricaturar, outras que não. Pior só o comportamento das autoridades, nomeadamente portuguesas e europeias, que resolveram apelar ao respeito pelas religiões e se esqueceram do que está verdadeiramente em causa: a liberdade de expressão, pilar da cultura ocidental. Com certeza que o Islão tem todo o direito à indignação, mas também devia preocupar-se com a questão levantada pelo jornal jordano que ousou perguntar: «o que é que traz mais preconceito contra o Islão? Estas caricaturas, ou as imagens de um raptor a cortar a garganta de um refém em directo para as câmaras?» Aliás, quero crer que são cenas destas que ofendem verdadeiramente o profeta Maomé, embora não me conste que os muçulmanos ditos moderados se indignem por aí além com estas práticas. Pior: nunca vi os muçulmanos ditos moderados indignarem-se com as fatwas. Será porque receiam represálias? Ou será porque, no fundo, concordam? [Originalmente publicado em 14-2-2006]
LEITURAS. Como quem lê com frequência está farto de saber, os prémios literários não atrasam, nem adiantam. Seguramente que não vai ser o Nobel atribuído ao escritor X ou o Booker à obra Z que os vai levar a ler um livro do escritor X ou a comprar a obra Z. Quando muito, têm curiosidade de saber quem foi premiado e com quê, e o interesse morre por aí. Não é assim para os que não têm hábitos de leitura, para quem os prémios literários funcionam como uma espécie de farol — ou, então, não chegam a ser notícia. Que livro comprar para oferecer quando se é confrontado com uma imensidão de títulos? Evidentemente que um livro do autor que ganhou o Nobel. Ou, então, o livro recomendado por determinado programa de televisão, o best-seller do dia, o livro de que toda a gente fala. Assim se vendem milhares de livros que de outro modo não se venderiam, e com um pouco de sorte pode ser que conquistem meia dúzia de leitores para a «causa» do livro. Assim se tornam mais visíveis todos os livros, os mais interessantes e os menos interessantes, até porque qualquer analfabeto não ignora que a leitura «é muito importante», embora olhem de lado quem leia com frequência e escutem com impaciência qualquer notícia ou comentário que fale de livros. Claro que não os lêem porque têm o tempo muito ocupado, nomeadamente ocupado a ver telenovelas e a saber quem dorme com quem. Mas isso é outra conversa. A conversa dos que sabem dois ou três lugares-comuns sobre o escritor X ou o livro Z e por isso se julgam capazes de fazer figura junto de quem realmente se interessa por livros, acabando a fazer figura de urso. A conversa que começou por me divertir mas que já não consigo escutar sem que a mostarda me chegue ao nariz. [Originalmente publicado em 24-1-2006]
SHARON. Ainda há pouco escrevi o que penso sobre Ariel Sharon. Não vou, portanto, repetir-me. Mas, face às lágrimas de crocodilo que por aí vão por causa do estado de saúde do velho general, permitam-me que acrescente duas ou três coisas. Para começar, não sou judeu, e julgo ter uma visão distanciada do conflito israelo-palestiniano. Sempre achei que há culpas e razão dos dois lados, estou convencido de que ambos os contendores têm as mãos sujas de sangue do adversário, choca-me que se diga que o Holocausto nunca existiu e que Israel deve ser varrido do mapa. Depois, para dizer que não me parece haver grandes razões para festejos na Palestina ou fora dela com o mais que provável desaparecimento de Ariel Sharon. Pelo contrário. Como os próprios palestinianos já admitiram, a saída de cena do actual primeiro-ministro israelita não augura nada de bom. Nem para os palestinianos, nem para os israelitas, nem para o resto do mundo. Tirando os que acreditam que o conflito só se resolve com a vitória de um sobre o outro — ou, pior, com o fim do outro —, julgo que toda a gente vê a evidência. Ao contrário de Yasser Arafat, cuja morte abriu o caminho para a paz, o desaparecimento de Ariel Sharon anuncia o caminho para a guerra. Quem pode regozijar-se com isso? [Originalmente publicado em 6-1-2006]
DO OUTRO MUNDO. Não me lembro se foi a primeira, mas foi das primeiras vezes que vi televisão. Foi num anfiteatro improvisado num barracão, aos domingos à tarde, embora só tenha uma vaga ideia do que via. Lembro-me que ainda a TV era a preto-e-branco, do farnel que a minha mãe me preparava para a ocasião, e pouco mais. O sr. Alberto era o responsável por aquilo, que mais tarde transformaria numa espécie de percursora das casas de jogos electrónicos de hoje. Uma vez «inventou» a electricidade, que passou a fornecer a casa onde vivia. Outra vez inventou uma geringonça para afugentar a passarada das sementeiras. A mais célebre, porém, foi a que meteu «almas do outro mundo». Contava-se que havia um sujeito que desdenhava de bruxarias, que tudo não passava de uma mentira, que era só o que lhe faltava ter medo de coisas dessas. Posto ao corrente do caso, o sr. Alberto desafiou-o para uma «sessão de espiritismo», ao que o valentão acedeu por condescendência. Chegado o dia, o sujeito deslocou-se à casa do sr. Alberto, que então vivia numa quinta afastada do povoado. A sessão começou com a leitura de supostas passagens do Livro de S. Cipriano, pouco antes da meia-noite, hora aprazada para as «almas do outro mundo». Uma vela iluminava parcamente uma divisão no primeiro andar. Sentado num banco, o sr. Alberto lia o S. Cipriano, enquanto o filho mais velho e o valentão escutavam em silêncio. À meia-noite em ponto, a vela apagou-se por artes não se sabe de quê, e o infeliz vê-se caído numa fossa, atolado até ao pescoço. Fora de si, desembaraçou-se o mais depressa que pôde e só parou de correr quando chegou ao povoado, dois quilómetros sempre a subir. Conta-se que foi preciso um mês para lhe desaparecer o cheiro das «almas do outro mundo». [Originalmente publicado em 16-12-2005]
INCOMPETÊNCIAS. Tirando os directamente interessados, não se viu uma única alma manifestar a mais leve compreensão pela greve dos diversos sectores da Justiça. Falo dos comentadores habituais, que foram unânimes em considerar pouco consistentes as razões invocadas pelos grevistas — além de só contribuírem para adensar ainda mais o clima de desconfiança generalizada. Como disse António Barreto, os juízes e os tribunais portugueses trabalham e produzem menos que os congéneres europeus, «a justiça [em Portugal] é mais cara e burocrática» que na Europa apesar de haver «mais juízes e tribunais do que na maior parte dos países europeus», «os direitos das vítimas, sobretudo se forem pobres, são pouco respeitados», há uma «enorme trapalhada processual» sempre que «estão em causa poderosos ou famosos, autarcas, banqueiros, políticos, empresários, dirigentes do futebol ou estrelas de uma qualquer galáxia». Só faltou dizer que existem suspeitas de juízes protegerem arguidos enquanto tranquilamente integram organismos europeus de combate à corrupção — e não acontece nada. Face a um quadro destes, como entender uma greve por causa de mudanças nos serviços sociais e na assistência à doença, do congelamento da progressão das carreiras, da alteração dos estatutos da pré-aposentação e do encurtamento das férias judiciais? Tirando os interessados, não se vê quem esteja interessado em entender privilégios que são só para alguns. Mais: quem ainda acredita na Justiça? De facto, esta é a pergunta que se impõe após os últimos desenvolvimentos dos casos Felgueiras e Pedroso, da investigação à banca, das escutas ao Procurador, da greve que ninguém percebeu. É que ele são trapalhadas atrás de trapalhadas, incompetências atrás de incompetências, e está por demonstrar que são trapalhadas e incompetências puras e simples. Pior só constatar que nada se tem feito para alterar o actual estado de coisas, que se degrada de dia para dia e ainda nenhum governo demonstrou ser capaz de pôr nos eixos. Toda a gente percebeu que o «caso Joana», que terminou em tempo útil apesar das trapalhadas, só chegou a bom porto porque os arguidos eram uns pobres coitados, sem meios para se livrarem. Pacheco Pereira tem razão: os agentes da justiça «vivem numa redoma de ciosa impunidade». Mas a culpa é de quem deixou que as coisas chegassem onde chegaram. Ou seja, dos políticos em geral e dos governos em particular. [Originalmente publicado em 29-11-2005]
SOMOS TODOS FRANCESES. Andam por aí uns cavalheiros que não escondem a satisfação pelos acontecimentos em França. Andam mas não deviam, e não só porque é indecente. Acham que os governos franceses devem pagar a incúria de anos? Que se fartaram de fingir que não existia o problema que têm em mãos? Que se têm pautado pela arrogância e pela superioridade moral? Pois bem, só que o que se passa em França pode alastrar ao resto da Europa, como os casos da Bélgica e da Alemanha deixam antever. Ao resto da Europa mas não só à Europa, que tudo o que é mau propaga-se com uma rapidez espantosa. Além disso, é bom não confundir os governantes com o povo francês, que é quem paga a factura. Não tem a Europa, pelo menos alguns países da Europa, o mesmo problema que a França, capaz de explodir de uma hora para a outra? A resposta é óbvia: alguém lhes vai mandar a factura, mais tarde ou mais cedo. Eu sei que é barato criticar a política francesa dos últimos anos, a arrogância face aos americanos. Também não custa nada dizer que «estavam mesmo a pedi-las», como se disse dos americanos no 11 de Setembro. Só que não se deve ir por aí, até porque é o povo que paga os erros dos governantes e não é seguro que a coisa se fique pelos franceses. Com certeza que, em França, seria bom que a coisa se resolvesse com a demissão do ministro do Interior, que se comportou de forma desastrosa ao não ver além das aparências, mas não me venham dizer que ele é o culpado pelo clima instalado, que isso é procurar um bode expiatório a qualquer preço. O problema de França é outro, e foi diagnosticado há anos. De França e, repito, de outros países europeus. Como não foi curada a tempo, a doença só podia dar no que deu. Resta saber se ainda tem cura, se a coisa vai ficar por aqui. Até lá, sejamos todos franceses. [Originalmente publicado em 10-11-2005]
SCOLARI. Luiz Felipe Scolari é conhecido dos portugueses por ter ganho o Mundial de 2002 e por ter levado Portugal à final do Euro2004. Fora isso, que não é pouco, o brasileiro é famoso pela teimosia, estatuto que parece cultivar com deleite. Convocar guarda-redes que não jogam nos seus clubes — para já não falar do «caso Vítor Baía» — e ter o desplante de dizer que lhe chega o empate quando toda a gente espera mais do que isso face a equipas como o Liechtenstein, são decisões que não lembra ao diabo — e não deixam ninguém indiferente. Eu próprio, que não vivo o futebol de forma arrebatada, não gostei de o ouvir dizer que o empate nos servia, mesmo sabendo que assim era. Aliás, estou convencido de que as coisas com o Liechtenstein não correram da melhor maneira justamente por causa disso, e não devo ser o único. Mas tudo isto são opiniões, e opiniões há muitas. O que importa é não perder de vista o essencial, e o essencial são os objectivos. Não foram eles atingidos no Euro2004 e, agora, com o apuramento para o Mundial? Pois é, também eu nunca apreciei a arrogância de José Mourinho, mas isso não me impede de reconhecer que José Mourinho atinge os objectivos a que se propõe. Mais: ultrapassa-os largamente, e seguramente que não é só por mérito alheio. De maneira que sou obrigado a render-me às evidências, pois são as evidências que contam. E não me custa nada dizer que elas me obrigam a que lhes tire o chapéu. [Originalmente publicado em 24-10-2005]
PORTO CASEIRO. Não sei se já contei o episódio em que estive à beira de ficar sem nove garrafas de Porto caseiro. Sim, nove garrafas de Porto caseiro. A coisa passou-se no último Verão, no embarque de Lisboa para Newark, ao que julgo por causa de uma garrafa que me ofereceram à última hora que resolvi arrolhar de qualquer maneira. O funcionário da segurança começou por implicar com a rolha, a seguir com a falta de rótulo nas garrafas. Quem lhe garantia a ele que aquilo era vinho do Porto? Pedia desculpa, muita desculpa, mas as garrafas não podiam embarcar. Comecei logo a transpirar, a deitar contas à vida — mas não me dei por vencido. Argumentei que não sabia; que sempre tinha viajado com garrafas e nunca me chatearam; que entendia que eram ordens que cumpria; que da próxima vez não voltava a acontecer. O funcionário deu mostras de ceder, mas foi-me avisando que o polícia do controle seguinte não ia em conversas. Agarrei-me ao argumento como um náufrago a uma bóia, e daí a pouco já o benemérito expunha o caso ao polícia, demonstrando que, por ele, não havia problema. O polícia mirou e remirou as garrafas, olhou para mim e para o meu anjo-da-guarda — e sugeriu-me que as metesse numa mala da próxima vez, pois numa mala ninguém queria saber. Um mês e tal após o episódio, registo o incidente enquanto contemplo as quatro garrafas que me restam. Contas por alto, mais um mesito e acabou-se. É a vida. A vida dos que não se podem dar ao luxo de beber uma pipa por ano, como o ex-proprietário de uma famosa marca de Porto que morreu de velho e não me consta que tenha passado por semelhantes apertos. [Originalmente publicado em 5-10-2005]
O MANUEL. O empregado que costuma servir-me o almoço trabalha 13 horas por dia. Ao que sei, não é excepção, pois todos os empregados dos restaurantes aqui da área trabalham mais ou menos esse tempo. Deve ser por isso que, nos dias de folga, o encontro a almoçar no restaurante onde trabalha. Afinal, para onde haveria de ir nos dias de folga? Que mundo haverá além do restaurante onde trabalha 13 horas por dia, seis dias por semana? Diz-me Manuel (chamemos-lhe Manuel) que um colega foi despedido porque a gerência o achou «distraído». Achou a gerência e achou o Manuel, que as distracções dos colegas resultam em mais trabalho para quem não se distrai. De facto, revendo mentalmente o colega, lembro-me de o ver distraído — e um empregado de restaurante aqui da área não tem tempo para estar distraído. Tem que estar com a cabeça no que está a fazer 13 horas por dia, seis dias por semana, e do resto ninguém quer saber. Caso assim não seja, é certo e sabido que não vai dar conta do recado — e que acaba no olho da rua. Um dia contaram-me que Manuel, ainda sob o efeito da anestesia por causa de uma intervenção cirúrgica, desatou a berrar ordens para o cozinheiro. Não fiquei surpreendido. Afinal, depois da conversa das 13 horas por dia, Manuel passou por mim, parou por instantes, e disparou: «tenho os filhos criados, mas não os vi crescer». E desapareceu a berrar ordens para o cozinheiro antes que eu fosse capaz de articular uma simples palavra. [Originalmente publicado em 15-9-2005]
ZANGA DE COMADRES. Zangam-se as comadres, descobrem-se as verdades. É o que parece no caso do vereador da Câmara do Porto, e as coisas também são o que parecem. Paulo Morais diz que foi pressionado, por membros do actual e anterior governos, no sentido de ceder às pretensões dos lóbis imobiliários; que, na maioria das câmaras, o urbanismo é «a forma mais encapotada e sub-reptícia de transferir bens públicos para a mão de privados»; que «as corporações tomam o poder dentro dos partidos»; que «os dirigentes são marionetas ao serviço dessas corporações»; que a democracia está a ser subvertida. Resumindo, Paulo Morais denunciou um conjunto de situações que se presume que terá combatido enquanto vereador da Câmara do Porto, o que lhe terá valido o afastamento da lista da coligação liderada por Rui Rio às próximas Autárquicas. Ora, a ser assim, isto coloca uma dúvida: será que o vice-presidente da autarquia portuense teria denunciado a negociata caso não tivesse sido afastado da lista? Sim, porque custa a crer que o cavalheiro tenha deixado de ser ingénuo de um dia para o outro, e ainda mais que denuncie o que toda a gente está farta de saber como se tivesse acabado de descobrir a pólvora. Além de que, em vez de remeter para as «memórias», seria de esperar que tivesse ido mais longe, nomeadamente que chamasse pelos nomes as pessoas e projectos de que fala. É que, assim, as denúncias não se distinguem das que faria o mais pacato dos cidadãos — e fica tudo na mesma. Pior: fazer dele um herói, como já vi por aí quem lhe chamasse, chega a ser obsceno. [Originalmente publicado em 30-8-2005]
ACTORES. Cada vez me sinto mais próximo da chamada gente comum e mais longe dos «eruditos». Quero dizer os «eruditos» que não perdem uma ocasião para nos tentar convencer que são eruditos, aquela espécie de gente que passa a vida a dizer lugares-comuns e não é capaz de defender uma ideia, muito menos uma ideia saída das suas próprias cabeças. É que gente comum é autêntica, diz banalidades sem se importar com o que deles pensam. Já os «eruditos» gostam de Agustina mas nunca leram, adoram Lopes Graça mas não sabem quem é. O sr. Amadeus é um prodígio, mas não há nada como o Fado da Desgraçadinha. Pessoa é admirável, especialmente se não tiverem que ler nada do que ele escreveu. Van Gogh é um génio, mas não distinguem Van Gogh de Chagall ou Monet, que não distinguem de Cézanne ou Dali. Gente comum não faz cenas destas. Gosta de bola e gaba-se disso, lê a Maria e não a esconde. É contra os pretos porque sim, e contra os chineses porque também. Gente comum é verdadeira até quando mente; os «eruditos» são mentira até quando falam verdade. Diz o ditado diz que mais vale ser do que parecer, mas a prática está sempre a demonstrar o contrário. Deve ser por isso, aliás, que cada vez há menos gente verdadeira e cada vez mais actores. Digo actores que representam tão mal que desconfio que nem os próprios convencem. [Originalmente publicado em 15-8-2005]
VERÃO QUENTE. Lia eu as aventuras de Artur Corvelo quando uma magnífica pequena se sentou atrás de mim. Ia naquela parte em que o autor de Esmaltes e Jóias acordava numa pensão reles ao lado de uma catraia de aspecto medonho, mas poucos minutos bastaram para que eu me esquecesse do personagem de Eça. A pequena começou por pedir conselhos sobre o que havia de comer. Quis saber se a comida vinha assim ou assado, se não seria melhor frito ou cozido. O empregado, coitado, gaguejava umas sugestões muito mal-amanhadas, e esforçava-se por ignorar o decote. Entretanto, o serviço do restaurante degradou-se rapidamente, pois os empregados estavam cada vez mais atentos aos movimentos da pequena, e cada vez mais surdos para o resto da freguesia. Como a donzela estava sentada mesmo atrás de mim, obrigando os olhares a convergir na minha direcção, aproveitei para observar os mirones. Havia de tudo: rostos iluminados pela lascívia, e quem só se atrevia a um olhar fugidio; respeitosos pais de família, e quem já não ia lá das pernas; algumas mulheres incomodadas, e outras com inveja de não estar no lugar dela. De repente, a donzela pôs-se de pé e saiu porta fora com o mesmo aparato com que entrou: despidíssima, andar que nem sei, dúzias de olhos em cima dela. As conversas subiram de tom, e estalaram risadas aqui e ali. A ordem regressou ao restaurante, e lá pude eu voltar ao Eça. Ao Eça que tão bem descreveria uma cena destas, e que poria o Artur Corvelo a sentir «uma vibração de concupiscência» da nuca aos calcanhares em vez de lamentar ter acordado ao lado de uma matrona que não sabia quem era e com os beiços «ainda roxos de vinho da véspera». [Originalmente publicado em 29-7-2005]
BASTA! Alberto João Jardim diz que os jornalistas são uns filhos da puta e o Presidente da República acha que nada tem a dizer. Alberto João Jardim diz que não quer chineses e indianos na Madeira e o Presidente da República faz de conta que não é nada com ele. Ora, o que significam estes silêncios? Que se trata de assuntos sem importância? Que Alberto João Jardim chegou a um ponto que pode dizer o que quiser e fazer o que lhe apetecer sem que alguém se atreva a tocar-lhe? Sim, eu ainda me lembro de ver o Presidente da República correr para a Cova da Moura por causa de um «arrastão» que ainda estou para saber se existiu. A aplicar-se o mesmo princípio, seria de esperar outra atitude do Presidente da República face às últimas declarações do Presidente da Madeira, tanto mais que elas foram proferidas por quem devia ser o último a fazê-lo. Não quer o Presidente da República «entrar em polémicas com os governantes regionais»? Mas porque não? Porque não há-de o Presidente da República entrar em polémicas com quem for preciso sempre que se trate de cumprir o seu dever? Com certeza que é mais cómodo ficar quieto e esperar que a coisa passe — e sempre que se trata das tropelias de Alberto João Jardim a coisa passa com uma rapidez impressionante. Mas parece-me evidente que o dever do Presidente da República seria condenar, com clareza e frontalidade, as declarações do governante madeirense, e não reduzir o episódio a uma condenação atabalhoada do que foi dito. O Presidente da República devia ter em mente este pequeno detalhe: pior que as patacoadas e atropelos à lei de Alberto João Jardim só o silêncio ou as críticas envergonhadas dos políticos, nomeadamente dos políticos que detêm o poder. Até porque está mais que visto que a estratégia não resulta, e como princípio não se recomenda. [Originalmente publicado em 6-7-2005]
REVISÃO PRÉVIA. O episódio que envolveu o secretário de Estado da Administração Interna e um semanário regional, mais exactamente a retirada das bancas da última edição do Notícias de Vila Real por causa de uma entrevista que terá sido publicada naquele semanário sem a revisão prévia do entrevistado, teve o condão de trazer para a ribalta um problema que nunca deveria sair dela: as relações do poder com os media, neste caso do poder político com os media regionais. Como sobreviver na província sem o apoio das autarquias? Como divulgar uma notícia que põe em causa a honorabilidade do político A se o político A controla a empresa que mais anuncia na rádio? Como publicar uma reportagem que vai pôr a nu a mediocridade do político B se o político B pode liquidar o jornal? Tirando casos excepcionais, é evidente que não podem. Os proprietários dos media regionais precisam dos anunciantes locais (não há alternativas para os anunciantes que se perdem), da protecção dos políticos da região, de sobreviver. Resumindo, precisam de estar bem com todos. E estar bem com todos implica não ver o que interessa não ver, fazer os fretes mais descarados, baixar as calças quando for preciso. O caso Ascenso Simões, que terá retocado o retrato que dele deu o semanário a quem concedeu uma entrevista, é um bom exemplo da relação entre o poder político e os media regionais. Pena é que casos como este só raramente venham a público, mas é preciso não esquecer que quem os pode divulgar é o primeiro interessado em escondê-los. Custa admitir que assim seja, mas as coisas são o que são. [Originalmente publicado em 23-6-2005]
MÚSICA. Como julgo ter acontecido praticamente a toda a gente da minha geração, não tive educação musical. Na escola, lembro-me vagamente de umas aulas a que chamavam canto coral, que aproveitei para não pôr lá os pés (quando o professor não marcava faltas) ou para chatear o professor (quando decidiu marcar faltas). Fora isso, a vida ensinou-me que a música se dividia em dois grupos: a que dava para dançar (a boa), e a que não dava. Mais tarde descobri a crítica musical, que consumi em doses que não recomendo a ninguém. Graças a ela comecei a gostar de música a sério, tomei conhecimento de subtilezas que até então me escapavam, tornei-me mais exigente. Mas foi graças a ela, também, que passei a ouvir música com demasiados conceitos — e não menos preconceitos. Chegou a tal ponto a «erudição» que a análise técnica (chamemos-lhe assim) quase anulou a parte lúdica, pois ouvir música tornou-se um exercício em vez de um prazer. Diagnosticada a maleita, nunca mais li uma crítica. Mais: cada vez me interessa menos saber quem estou a ouvir. Naturalmente que uma decisão destas teve consequências: é frequente confundir alhos com bugalhos, nomeadamente no repertório clássico, até músicas que conheço de cor. Mas como a ideia é fruir a música de forma inteiramente livre, a questão tornou-se secundária. Aliás, nem isso, pois cheguei a um ponto que só me interessa o prazer. O resto pode ser muito interessante — e certamente que é — mas deixou de me interessar. Mas não se julgue que tenho alguma coisa contra a crítica. Bem pelo contrário: acho que a crítica tem uma função meritória. Só que quando me falam de crítica apetece-me logo responder como García Márquez quando lhe perguntaram o que pensava dos críticos literários que analisavam a sua obra: «A mi me gustan mucho los críticos, principalmente quando jugan fútbol.» [Originalmente publicado em 9-6-2005]
FITAS. O cineasta que ficou famoso por ter consumido «uma pequena quantidade de haxixe» num país onde se pode ser condenado a uns anos de cadeia por consumir uma pequena quantidade de haxixe resolveu «aconselhar» o Governo português a «disponibilizar mais informações sobre os países» e suas leis. Após ter sido libertado graças aos esforços da diplomacia portuguesa, o cavalheiro ainda teve o desplante de afirmar: «espero que o meu caso sirva de lição». E lição a quem? Evidentemente que ao Governo português, que o devia ter posto ao corrente de que não se pode consumir haxixe no Dubai. Aguarda-se, agora, que o artista anuncie um pedido de indemnização ao Governo português. Sim, porque o que se passou há-de ter causado danos irremediáveis à imagem do cineasta, além de que é inadmissível o Governo português não ter informado o ilustre cidadão de que é proibido consumir haxixe no Dubai. Ridículo? De maneira nenhuma. Não fosse o caso de o Executivo em funções beneficiar de uma estranha benevolência, ninguém duvide que se teria exigido a demissão de um ministro e meio secretário de Estado, até porque o diplomata que tratou do caso não tem dúvidas de que o incidente provocou um «fortalecimento de laços» entre Portugal e o Dubai — e o Ministério dos Negócios Estrangeiros já fez saber que vai «retribuir o tratamento excepcional» que as autoridades do Dubai deram ao caso. De maneira que o mínimo que se pode esperar do Governo é que não hesite em conceder um subsidiozito ao nosso cineasta quando este decidir fazer a sua obra-prima. Além de caber ao Governo a obrigação de apoiar obras que se afigurem capazes de levar o nome de Portugal além da Trapobana, nunca é demais agradecer a quem tanto fez pela Pátria. [Originalmente publicado em 20-5-2005]
LAGARTIXAS E JACARÉS. Sempre que resolvo chamar a atenção para um trabalho excepcional — uma peça jornalística, um quadro, um filme — a conversa resvala de imediato para o autor. «Então tu não sabes que o gajo é judeu? Não sabes que o fulano tem uma equipa enorme atrás dele, que lhe faz a papinha toda? Não sabes que a mulher dele dorme com o manda-chuva lá do escritório?» Não sabia. Não sabia nem isso é relevante para o que eu quero dizer, tento argumentar, mas ninguém quer saber. Bem pelo contrário: não me achando convencido, atacam com novos «factos», se preciso for inventados na hora, e o «monstro» cresce de tal forma que o autor havia de pedir desculpa por ter feito o que fez caso soubesse destas conversas. Se o que pretendo elogiar se situa na área em que os meus interlocutores se movem — profissionalmente, academicamente, artisticamente — o caso ainda é pior, pois da insinuação passam à calúnia pura e dura. Quer isto dizer que me resta meter a viola no saco, pois é tal a fartura de «argumentos» contra o autor que o trabalho para o qual procuro chamar a atenção acaba por ser um pormenor sem importância — e de que ninguém quer saber. Infelizmente não é de uma excepção que se trata, pois há sempre alguém disposto a deitar abaixo quem faz coisas de que não é capaz. Bem sei que nada disto constitui novidade, mas convém estar vigilante. É que gente desta é capaz de tudo, e não faz cerimónia sempre que se trate de liquidar o parceiro. Pena é que não tenham a mesma habilidade para fazer tão bem ou melhor o que procuram desvalorizar. Mas há um ditado que diz: quem nasceu para lagartixa nunca chega a jacaré. [Originalmente publicado em 3-5-2005]
COISAS SIMPLES. Toda a gente tem uma opinião acerca do conflito israelo-palestiniano, mas poucos sabem a origem e o que se joga no conflito israelo-palestiniano. Toda a gente tem uma opinião acerca da intervenção militar no Iraque, mas poucos conhecem as razões que levaram à intervenção militar no Iraque. Toda a gente tem uma opinião acerca do véu islâmico, da despenalização do aborto ou da regionalização, mas poucos sabem o que significa o véu islâmico, o que diz a lei do aborto e quais são as vantagens da regionalização. Refiro-me, é claro, à maioria das pessoas, aos que distraidamente se informam nas televisões, incluindo assuntos cuja complexidade não se compadece com a informação superficial das televisões — e sobre os quais, por essa razão, os devia inibir de ter opiniões. Aos que quanto menos informados estão mais opiniões têm — e mais sólidas pretendem ser. Sem dúvida que esta gente não vai além dos lugares-comuns — muitíssimo mais seguros para quem nada sabe acerca do que está a dizer, embora isso não invalide que os digam com convicção. Mas eu chego a pensar que tenho um problema quando me apercebo que toda a gente tem certezas absolutas sobre os mais variados assuntos e eu permaneço na dúvida — e garanto-vos que não estou a brincar, pois não é raro acusarem-me de não ver o que toda a gente diz ser evidente. Aliás, devo ter mesmo um problema — o problema de achar que as coisas são mais complexas do que parecem, de complicar o que é «simples». O problema de dizer «não sei» quando, de facto, não sei. [Originalmente publicado em 15-4-2005]
A PUTA DA VIDA. Estou condenado a viver entre quem não lê um livro, não ouve música, não vê um filme. Digo um livro que não seja O Código da Vinci ou Sei Lá, música que não seja Eminem ou Quim Barreiros, um filme que não seja o Rambo ou coisa parecida. E não lêem um livro porque dizem não ter tempo para ler, não ouvem música porque nunca é oportuno ouvir música que não seja a do costume, não vêem um filme porque um filme que saia da «normalidade» requer uma predisposição especial. Mas sabem eles que o escritor Fulano é gay, que o compositor Sicrano vive com aquela catraia que fez Pelo Buraco da Fechadura, e que o realizador Beltrano foi apanhado numa casa de putas. E conhecem, claro está, todos os lugares-comuns que sobre eles se dizem, que eles não são parvos e estão bem «informados». Eles sabem, por exemplo, que o escritor Fulano é um prodígio — embora nunca tenham lido uma linha do que ele escreveu; que o compositor Sicrano é um génio — por razões conhecidas de todos que os dispensa de explicar; e que o realizador Beltrano é divino — apesar de os ter feito adormecer ao cabo de dez minutos. Ora, é precisamente isto que me chateia. Que eles não queiram saber dos livros, de música ou de cinema, é lá com eles. Mas que me queiram tomar por parvo, e que eu tenha de fazer de parvo para não me chatear, incomoda-me. Mais de que nada ter a ver com esta gente, incomoda-me passar por um deles — e ser por eles tratado como um deles. Infelizmente nada posso fazer para mudar este cenário. Quando muito, enfiam a carapuça caso me leiam, e acham que eu tenho a mania. É a puta da vida. Deles, e da minha. [Originalmente publicado em 25-3-2005]
HIPOCRISIA. Por muito que custe admitir a crentes e não-crentes, a recusa de um padre franciscano em dar a comunhão aos católicos que usem contraceptivos, recorram à reprodução assistida ou aceitem a lei sobre a interrupção da gravidez é um acto corajoso que merece aplauso. A forma encontrada pelo clérigo para fazer o aviso — um anúncio num jornal — poderá ter sido algo bizarra, mas o conteúdo parece-me inquestionável. Mais: o padre Serras Pereira teve a coragem de chamar a atenção para uma evidência que todos fingem não ver, incluindo o Cardeal Patriarca, que se apressou a considerar «exagerado» o texto em causa e a dizer que não reflecte a posição oficial da Igreja — apesar de o franciscano invocar o Código de Direito Canónico e a tese por ele defendida ser a mesma do Papa. Quem é o católico que não sabe que a santa madre igreja condena o uso de contraceptivos, a reprodução artificial e a lei do aborto? Quem é o responsável da Igreja Católica que não sabe que os fiéis pecam alegremente contra estes e outros preceitos? Evidentemente que toda a gente sabe. O problema é dizê-lo de forma clara e audível, pois a Igreja Católica prefere a hipocrisia à frontalidade. Dir-me-ão que eu, como ateu, não tenho nada com isso. Para mais, sou a favor dos contraceptivos, da reprodução assistida e da lei do aborto — tudo práticas que a Igreja condena. De facto, assim é. Mas incomoda-me tanta hipocrisia, e que os representantes da Igreja Católica se tenham apressado a executar um membro do clã cujo pecado foi chamar a atenção para o óbvio. Incomoda-me que um padre seja obrigado a recorrer a um «truque» para chamar a atenção de uma evidência, e que os padres «liberais» façam passar a ideia de que aceitam o que, de facto, condenam. Incomoda-me, por último, a mentira generalizada, o faz-de-conta que está tudo bem e assunto encerrado. Incomoda-me porque estou convencido de que estamos perante um caso em que mais vale mexer no que pode não cheirar bem que suportar o cheiro da hipocrisia. [Originalmente publicado em 10-3-2005]
O CÓDIGO. Você já leu O Código da Vinci?, perguntaram-me um dia destes. Apeteceu-me responder que tinha mais que fazer, tomara eu tempo para ler outras coisas, mas achei mais prudente dizer que não li. Ou melhor, respondi que ainda não tinha lido, deixando a ideia de que ia ler. As razões da defensiva foram duas: porque não estava para me chatear (o meu interlocutor tinha lido e gostado do livro); porque me faltam argumentos para dizer que O Código faz parte de um género de livros que não me interessa. É claro que qualquer investigaçãozita chegaria para exibir meia dúzia de argumentos em defesa da minha ideia, mas eu acho que o assunto nem isso merece. Mas não é esta a questão que aqui me traz. O que realmente me interessa salientar sobre este episódio é o seguinte: o que haverá de tão interessante nas chamadas teorias da conspiração? Por que será que todas elas assentam em factos errados, deturpações, mentiras, omissões, suposições? Por que será que as teorias da conspiração partem da conclusão para os factos e não o contrário? Um mistério que talvez se explique com o facto de a maioria das pessoas estar mais predisposta a acreditar na mais tosca mentira que na mais flagrante verdade — além de preferirem uma mentira a ficar na dúvida. Seja lá como for, um negócio de milhões em que os leitores são, seguramente, os que menos ganham. [Originalmente publicado em 23-2-2005]
BOATOS E INSINUAÇÕES. Tirando as organizações que fazem questão de alardear o orgulho de ser isto ou aquilo, toda a gente concorda que a orientação sexual de cada um só a cada um diz respeito. Mas todos sabemos, também, que assim não acontece, pois toda a gente quer saber da sexualidade de toda a gente — e a mais leve insinuação ou boato de que alguém não é «normal» transforma-se logo em certeza, especialmente se o visado optar pelo silêncio. Se um vizinho é suspeito de ser homossexual, o bairro inteiro não tem dúvidas de que o vizinho é homossexual. Se uma colega é suspeita de ser bissexual, ninguém tem dúvidas de que é bissexual. Ora, se isto é verdade para cidadãos anónimos, quando se trata de figuras públicas não há fronteiras. Nem fronteiras, nem limites. Assim sendo, pouco ou nada havendo a fazer para contrariar situações destas, resta aos visados minimizar os estragos. E, para minimizar os estragos, eu só vejo uma de duas saídas: desmentir de forma clara e inequívoca a acusação de que se é alvo, ou assumir a condição de que se é acusado. Como nada disto sucedeu até agora no caso José Sócrates — o líder do PS limitou-se a dizer que era tudo mentira, mantendo em reserva a sua orientação sexual —, estão criadas as condições para que as insinuações e boatos prossigam e continuem a render audiências — além de que sempre haverá situações que se prestem a ser interpretadas como insinuações e gente mal-intencionada disposta a tudo. Com certeza que o líder do PS tem toda a legitimidade para não revelar a sua orientação sexual, mas é bom não esquecer que o direito de reserva acaba por ser, também ele, uma forma de alimentar insinuações e boatos. Daí que a fuga para a frente me pareça infinitamente melhor que o silêncio, pois o silêncio deixa tudo como está. E, como está, a situação não dignifica ninguém. Não dignifica quem se mete a fazer insinuações, nem dignifica quem é alvo delas. Mais: contrariamente ao que julgo ser o pensamento dominante, ninguém ganha com isso. Não ganha quem insinua, nem ganha quem é vítima. Pelo contrário: ambos perdem. [Originalmente publicado em 7-2-2005]
FOGUETÓRIO. «Os portugueses não percebem que os clubes tenham milhões de euros para comprar jogadores e não tenham para pagar as dívidas ao Fisco», disse o ministro das Finanças. Vai daí, decidiu obrigar a Federação Portuguesa de Futebol e a Liga dos Clubes a cumprir o estabelecido há meia dúzia de anos, alegando que o acordo então alcançado (o famoso «totonegócio») estipula que os dois organismos paguem a diferença caso as receitas provenientes do Totobola não sejam suficientes para liquidar metade da dívida dos clubes até ao segundo semestre do ano transacto. Quer isto dizer que a Federação e a Liga poderão ter que pagar as dívidas em atraso acrescidas de juros, isto na melhor das hipóteses. Na pior, poderão ver penhorados alguns bens, nomeadamente os «passes» dos jogadores. Porém (há sempre um porém nos negócios da bola), o ministro foi dizendo que está disposto a dialogar, uma maneira de dizer que está pronto a ceder. Pior: Bagão Félix admitiu que se fosse presidente da Federação ou da Liga não pagaria um tostão. Do lado da Federação, o sr. Madaíl fez logo saber que a organização que dirige ficou «estupefacta pela falta de diálogo», e acusou o ministro de tomar uma medida «popular». O presidente da Federação alega que o Estado «nada fez para evitar o descalabro das receitas» do Totobola — que os responsáveis dizem ter perdido em abundância e que os clubes, segundo o tal contrato, vão ter que pagar. Pinto da Costa disse que as declarações do ministro são uma forma de desviar as atenções, que as verbas devidas pelos clubes são «uma gota no oceano», e que Bagão Félix é «ignorante». Isto há umas semanas. Agora, quando já se pensava que o assunto estava encerrado, o ministro veio lembrar que «os clubes não terão um tratamento favorável», e que o Ministério das Finanças não abdicará da cobrança da dívida — a bem, ou a mal. Demagogia pura e simples? Eu tenho Bagão Félix como um homem sério, sensato e competente. Mas como está de abalada, confesso que isto me cheira a foguetório, tanto mais que o presidente do Sporting acabou de dizer que os clubes «não devem nada» à administração fiscal. Assim sendo, está-se mesmo a ver que a questão vai sobrar para o sucessor — ou talvez para o sucessor do sucessor. Quando a questão se tornar inadiável, é só mudar de modo a ficar tudo na mesma. [Originalmente publicado em 22-1-2005]
A LAMÚRIA. Como toda a gente sabe, o governo de Santana Lopes era mau. Como era mau o anterior, o anterior do anterior, e o anterior do anterior do anterior. Alguém conhece algum governo que tenha sido bom? Eu não conheço. Quer dizer, não me lembro de um governo que a oposição tenha dito que era bom. Isto não só em Portugal, está bom de ver, pois não é diferente no resto dos países onde vigoram regimes democráticos. Quer isso dizer que não há governos bons? A resposta é sim para quem acha que os governos agiram correctamente, não para quem acha o contrário; sim para quem é da mesma cor de quem está no governo, não para quem está na oposição; sim quando os governos tomam decisões que nos beneficiam, não quando nos prejudicam. E por aí fora, pois razões não faltarão para demonstrar que sempre foi assim, e sempre assim será. Tudo isto para dizer que fico de pé atrás sempre que ouço alguém dizer que o governo é uma «catástrofe», uma «tragédia» ou calamidade do género. Este ou outros governos, e pela simples razão de que andamos a ouvir isto há séculos e Portugal ainda não foi varrido do mapa — além de que não me lembro de ver uma oposição elogiar uma medida tomada por um governo. Quando muito, isso acontece quando o governo passou à história, e só uma vez na vida. Aliás, chega a ficar a ideia de que o papel da oposição nos regimes democráticos se resume a falar mal do governo — não porque o governo faça tudo mal, evidentemente, mas porque é preciso criar a ideia de que está tudo mal para chegar ao poder. Esta é a lógica que me faz pensar duas vezes quando sinto vontade de falar mal do governo, deste ou doutros governos. Além de que é bom não esquecer que falar mal do governo é um óptimo assunto quando há falta dele, e um verdadeiro desporto. Mas já não tenho tantos escrúpulos quando se trata de falar mal dos políticos, estejam eles no governo ou na oposição. Afinal, tirando um ou outro, os políticos são aldrabões, incompetentes, medíocres. E gente assim não merece contemplações. [Originalmente publicado em 6-1-2005]
UM CLÁSSICO. Raramente vou a um concerto de música clássica cuja principal finalidade é inaugurar (ou encerrar) um evento. Para ser mais preciso, fujo destes concertos como o diabo foge da cruz. Como os apreciadores de música clássica saberão, há demasiados assuntos laterais num concerto do género que perturbam a fruição musical, e já foram algumas as vezes que de lá saí com os nervos em franja. Isto porque grande parte do público não vai ao concerto pela música mas pelo acontecimento social, pois toda a gente sabe que é de bom-tom ir a um concerto de música clássica — e é preciso não esquecer que um concerto de música clássica é um excelente local para ver e ser visto. Escusado será dizer que, para esta gente, a pior parte do concerto é o concerto propriamente dito. Dez minutos chegam e sobram para ficarem a suspirar e a olhar para o relógio — e é precisamente isto que me chateia. Sentir gente à minha volta a suspirar e a olhar para o relógio, enerva-me — e uma vez enervado já não consigo fruir o concerto. Bem sei que o concerto propriamente dito acaba por ser um castigo (inteiramente merecido) para essa gente, o que não deixa de ter a sua graça. O problema é que eu já vi vezes de mais esse filme, e mesmo o que é bom cansa quando ingerido em doses exageradas. Além de que sempre me deixam com uma dúvida: o que sentirão os concertistas quando sabem (e tenho a certeza que não ignoram) que o público está ali por outras razões que não a música que eles vão executar? Será que não os incomoda o facto de saber que aquela gente está ali pelos cabelos, mortinha que aquilo acabe? Ou será que, perante um cenário desses, chega a haver músicos que sentem prazer em massacrar aquela gente? Um mistério. Um mistério em que eu prefiro não pensar quando vou a um concerto de música clássica. Mas, se penso, não vou. [Originalmente publicado em 17-12-2004]
ANTES QUE SEJA TARDE. Consta que o Benfica tem um sábio ao seu serviço — um tal Dembo Cassama —, que terá dito umas coisas que não devia por não lhe terem pago o que diz ter direito. Eu acho bem. Não que não paguem ao sábio o que ele diz ter direito, mas que o Benfica tenha um sábio ao seu serviço — mesmo em part-time ou pago à peça. Afinal, o que distingue o trabalho deste cavalheiro do trabalho dos psicólogos que tratam os jogadores? Mais: um psicólogo não promete vitórias (julgo ou). Já um sábio como o sr. Dembo, se lhe pagarem a tempo e horas, não só promete como é capaz de cumprir. Mais ainda: o sábio às vezes acerta, coisa que o psicólogo nem se atreve a tentar (julgo eu) — e só dá despesa. Além disso, o sr. Dembo trabalha por objectivos, e isso é uma vantagem de monta. Se o objectivo for atingido, desembolsa-se a maquia. Se não for, um manguito para o cavalheiro. Bem sei que os alhos que o sr. Oliveira terá mandado espalhar no balneário da selecção portuguesa no último Mundial de Futebol antes de não sei que jogo não trazem boas recordações aos portugueses, mas já não se pode dizer o mesmo com a Senhora de Caravaggio do «nosso» Felipe. De maneira que eu acho muito bem que o Benfica pague ao sr. Dembo o que ele achar que lhe é devido. Se não houver dinheiro, vendam o sr. Veiga. Seguramente que não faltarão compradores para o sr. Veiga, e certamente que os benfiquistas não se importarão de gastar algum para se verem livres dele caso não haja. Além disso, não é boa política viver sob a ameaça de um sábio descontente. Pelo sim, pelo não, paguem-lhe o que ele diz ter direito. Antes que seja tarde. [Originalmente publicado em 1-12-2004]
O MEDO. Uma sondagem divulgada esta semana indica que 90% da população holandesa quer ver reforçada a luta contra o terrorismo, mesmo à custa das liberdades individuais. Mais: 40% dos holandeses veriam com muito bons olhos que os muçulmanos (os muçulmanos, repare-se, não os fundamentalistas islâmicos) fossem expulsos do país. Tudo isso por causa do assassinato de um cineasta por um fundamentalista islâmico, que já provocou uma onda de violência cujas consequências ainda é cedo para avaliar. E porque a Europa continua a ignorar o fundamentalismo islâmico no seu território, apesar de os fundamentalistas não se inibirem de dizer que, se pudessem, trocariam a lei dos países onde vivem pela lei islâmica, obviamente de forma violenta. Como julgo ser claro, os resultados da sondagem demonstram que as pessoas têm medo, o mesmo medo que terá levado os americanos a preferir Bush em vez de Kerry — para usar o argumento mais comum dos que procuraram explicar a vitória do presidente Bush com o factor medo e que é, em parte, verdade. Evidentemente que não é agradável viver num clima de medo, e menos ainda quando se sabe que o medo pode levar a que se cometam abusos. Mas não basta dizer que não há razões para se ter medo para deixar de o ter. Bem pelo contrário: é preciso que se faça alguma coisa, e que se apresentem resultados. É bom não esquecer que, além de outras razões, o 11 de Setembro resultou do desleixo, e que os americanos acordaram para o pesadelo islâmico ao cabo de três mil mortos — tal como, agora, os holandeses acordaram para o pesadelo islâmico após a morte de Theo van Gogh e a violência que daí resultou. Por outras palavras, seria bom que isto servisse de lição aos que estão convencidos de que o fundamentalismo islâmico se resume a casos isolados, como se o fundamentalismo islâmico já não tivesse dado mostras de que não se limita a casos isolados e que é demasiado perigoso para que fiquemos de braços cruzados. Contrariamente ao que dizem alguns iluminados, não foi o presidente Bush que convenceu os americanos a ter medo. O que convenceu os americanos a ter medo foram os factos. Tal como, agora, os holandeses. [Originalmente publicado em 14-11-2004]
PEIXEIRADAS. Um golo que terá sido golo mas não foi assinalado, a que se juntaram dois penáltis que terão ficado por marcar, deixaram os dirigentes do Benfica à beira de um ataque de nervos, a ponto de pedirem que os árbitros sejam «responsabilizados civil e criminalmente pelos seus actos» e de recorrerem a ataques pessoais. Em causa está uma derrota que poderia não ter sido caso o tal golo fosse validado e os penáltis assinalados, e os dirigentes benfiquistas não acreditam que foi por acaso. Acresce que a «guerra» intestina entre Porto e Benfica já vinha de trás, com trocas diárias de acusações entre os dirigentes dos dois clubes até à hora do jogo. Jogo que, se bem se lembram, esteve a um passo de não se realizar, e ainda hoje me espanto como não acabou em tragédia. Escusado será dizer que o comportamento dos dirigentes do clube nortenho não teria sido diferente caso a situação fosse inversa, e francamente não vejo outros clubes comportarem-se doutro modo. Tirando excepções (que não conheço), os dirigentes da bola são mesmo assim: broncos, sempre prontos para mais uma peixeirada e atear o fogo quando deviam ser os primeiros a evitá-lo. Nada a opor se daí não pudessem resultar prejuízos para terceiros. Como aquilo podia ter acabado mal, passa a ser um assunto que diz respeito a todos nós, adeptos da bola ou não. Assim sendo, causa repulsa o silêncio que, uma semana depois, se abateu sobre o caso, ficando a ideia de que foi varrido para debaixo do tapete. E não basta que a Liga dos Clubes venha, agora, dizer que vai instaurar um processo a não sei quem, pois daí não resultará coisa que se veja. Pior: o caso nem sequer vai servir de lição. Para não variar, vão ser precisos mortos ou feridos para que se mude alguma coisa. [Originalmente publicado em 28-10-2004]
MARCELO. Ainda não são conhecidos os motivos que levaram o prof. Marcelo a abandonar os comentários políticos na TVI, e provavelmente nunca serão. Até ver, tudo o que se tem dito sobre o caso é pura especulação. Pura especulação e aproveitamento descarado, nomeadamente por parte da classe política, que se finge indignada quanto suspira de alívio por se ver livre de Marcelo. Contrariamente ao que julgo ser a maioria, não vejo porque razão o Governo não haveria de protestar caso entenda haver razão para protestar. Se o Governo se sente lesado com o que diz serem «mentiras» e «falsidades», o mínimo que se pode dizer é que lhe assiste o direito de protestar. Digo protestar porque, até ver, é de protestos que se trata. Houve pressões do Governo junto da TVI? Se houve, de que natureza e com que alcance? Ninguém sabe responder. E porque haveria a TVI de ceder a pressões do Governo? Também ninguém sabe responder. Mas admitamos que houve pressões. É grave? Com certeza que é grave, mas quem se lembra de um Governo que não tenha sido acusado de pressionar este ou aquele? Eu sei que não custa nada criticar o Governo e falar em delito de opinião, mesmo que disso se trate no caso em apreço. É o caminho mais fácil, além de politicamente correcto. Mas eu não estou seguro de que as «represálias» às diatribes do prof. Marcelo tenham partido do Governo, como toda a gente diz por aí, e também não sou adepto das teorias da conspiração. Até ver, os únicos factos que se conhecem são os protestos de um ministro — que notoriamente se excedeu e demonstraram falta de chá — e os silêncios de Marcelo e da TVI, que dão azo a especulações muito convenientes para uma das partes e a que cada um interprete o episódio da forma que mais lhe convém. Tudo o mais é foguetório, gritaria e suposições. Até porque é por demais evidente que se o Governo quisesse pressionar a TVI não o faria publicamente, muito menos de forma atabalhoada. Evidentemente que o Governo, culpado ou inocente, saiu mal desta estória, e pela forma como se comportou não merecia outra coisa. Já no que toca ao prof. Marcelo, ainda é cedo para o canonizar. [Originalmente publicado em 10-10-2004]
SEM PERDÃO. Segundo Pedro Mexia, Miguel Sousa Tavares é o cronista mais lido da nossa imprensa. Não conheço os factos em que Mexia se baseou para dizer o que disse, mas não me custa acreditar que assim seja. Miguel Sousa Tavares é uma figura que toda a gente conhece da televisão. É conhecido pela frontalidade, e pela coragem em dizer o que muita gente não é capaz. Tudo isto faz dele uma figura popular, acabando a popularidade por traduzir-se em leitores e/ou espectadores. São as leis do mercado, e nada a opor. Mais: certamente que a popularidade de que ele goza se deve, em parte, a mérito próprio. Mas, se me dão licença, eu tenho algumas reservas. Miguel Sousa Tavares já deu mostras de que é pouco rigoroso com os factos, e não foi só uma ou duas vezes que o demonstrou. Pior: é frequente fazer passar a sua opinião como de factos se tratasse, e não hesita em os manipular de molde a servirem o que pensa. Quem seguir com atenção os assuntos por ele abordados nos comentários televisivos ou na imprensa, facilmente descobrirá do que falo. E para isso, caros amigos, não há desculpa. Factos são factos, opiniões são opiniões. Misturar as duas coisas e servi-las como se de factos se tratasse, é pura aldrabice. E quem é apanhado a aldrabar uma vez e não se emenda, não merece perdão. Nem perdão, nem credibilidade. [Originalmente publicado em 24-9-2004]
A TRISTE REALIDADE. Tirando os directamente envolvidos (russos e chechenos), ninguém sabe ao certo o que opõe uns a outros. Por junto, sabe-se apenas que um comando checheno tomou como reféns centenas de pessoas num teatro de Moscovo, há coisa de dois anos, e que a operação para os libertar terminou com mais de uma centena de mortos. E, agora, que um comando checheno fechou centenas de pessoas numa escola, entre elas inúmeras crianças, e que o plano para as libertar causou ainda mais mortos (três centenas e tal, até ver). Se houvesse uma conclusão a tirar, a conclusão só podia ser esta: a grande maioria das pessoas tomou conhecimento da causa chechena pelas piores razões, o que não ajuda quem pretende chamar a atenção e ganhar simpatia para a causa. Pior: se alguma razão assiste a esta gente — e certamente que alguma razão assistirá —, os últimos acontecimentos vieram retirar-lha. Como compreender que metade dos reféns fosse crianças? Como compreender os maus-tratos a que essas crianças foram sujeitas durante o cativeiro? De facto, não se percebe. Já o desfecho do caso parece mais claro: as autoridades russas não estão preparadas para lidar com casos destes. Por pura incompetência ou nula preocupação com a vida humana, o plano montado para libertar os reféns (se é que houve um plano) revelou-se um desastre. Como compreender a presença de populares no local, ainda por cima armados, que terão precipitado o assalto final e a consequente tragédia? Como compreender que não tenha sido montada uma infra-estrutura (médicos, ambulâncias, psicólogos) de apoio às vítimas? Está visto que, por aqueles lados, a vida humana tem pouca importância. Nem para quem ataca, nem para quem se defende. É a triste realidade, mas é assim. [Originalmente publicado em 9-9-2004]
FAHRENHEIT 9/11. Não tenciono ver o sucesso do ano em Havana, muito menos confrontar as teses de Michael Moore com a verdade dos factos. O que já li sobre o dito chegou e sobrou para ver que aquilo não passa de um embuste miserável com a finalidade de convencer os incautos — ou quem já está convencido. Certamente que há razões para questionar a administração Bush face ao 11 de Setembro, e há erros que são por demais evidentes. Mas chegar ao ponto que chegou o sr. Moore, só mesmo de uma mente doentia. Reparem que o cavalheiro nem sequer tem coragem para assumir frontalmente o que pensa, pois insiste em dizer que Fahrenheit 9/11 é uma «comédia» sempre que alguém lhe aponta os factos que desmentem as suas teses. Nada de especial importância caso o filme fosse visto como uma «comédia», mas já não se pode dizer o mesmo quando pretende passar por documentário — onde se presume que é revelada a verdade dos factos. «Factos» que muitos acreditam ser verdadeiros, ou sabem não ser mas não hesitam em usá-los como se fossem. E usá-los contra quem dizem estar a mentir, é bom não esquecer. O que me leva a perguntar: quem será o maior mentiroso? Quem é acusado de mentir, ou quem acusa faltando à verdade? [Originalmente publicado em 12-8-2004]
RESSENTIMENTO. Qualquer pessoa medianamente informada saberá que não se pode considerar anti-americano quem foi contra a intervenção americana no Iraque, ou por discordar da política do presidente Bush para o Iraque (e não só para o Iraque). Mas qualquer pessoa medianamente informada saberá, também, que não falta quem tenha sido contra a guerra no Iraque ou contra Bush pela simples razão de que ser contra a guerra ou contra Bush é ser contra a América, porque a América é a origem de todos os males. Ora, se os primeiros não se podem considerar anti-americanos, os segundos são-no claramente. Anti-americanos ou anti-americanos primários, para o caso de haver diferença e de uma coisa não implicar a outra. É claro que esta gente não gosta que lhe chame aquilo que é, pois alegam não ser contra a América mas contra Bush — como se já nos tivéssemos esquecido de que ontem foram contra Clinton, Bush-pai ou Reagan, e só para falar de políticos. Já quanto a «seguidistas» e «papagaios da administração Bush», que estes senhores tanto gostam de chamar a quem esteve com a administração americana na questão do Iraque, são argumentos tão toscos que chegam a ser confrangedores. Não será necessário estar informado por aí além para saber que o problema desta gente é outro. Como bem diagnosticou Vasco Pulido Valente, o problema desta gente é a América ser «rica, forte e livre», e «coisas destas não se desculpam». E não se desculpam porque o sucesso dos americanos (e não só dos americanos) deixa à vista os nossos fracassos, nomeadamente o fracasso de um certo modelo de sociedade que tanta gente acreditou ser o paraíso na terra e se desmoronou de um dia para o outro. E desmoronou-se de um dia para o outro com a ajuda da América, é bom lembrar, o que ajuda a explicar o problema desta gente. A questão é, portanto, puro ressentimento, além de não terem um modelo de sociedade alternativo em que realmente acreditem. Nada que qualquer psicólogo de vão de escada não seja capaz de explicar. [Originalmente publicado em 30-7-2004]
AS REGRAS DO JOGO. O dr. Ferro Rodrigues não se conforma com a «derrota pessoal» imposta pelo Presidente da República, apesar da «amizade» que os une. Ana Gomes está «profundamente arrependida» de ter apoiado Jorge Sampaio nas duas vezes que este se candidatou à Presidência da República, porque o PR teve «falta de coragem» para seguir outro rumo. Carlos Carvalhas prevê um cenário de «instabilidade social e colapso» a curto prazo, para o qual se presume que irá contribuir com tudo o que puder. Francisco Louçã também não surpreendeu: o PR «fracassou» e o governo não tem representatividade. Fora dos dirigentes partidários, Boaventura Sousa Santos disse que o dr. Sampaio fez um «discurso patético e incoerente», além de ter cometido uma «traição ao 25 de Abril». Tudo isto porque o Presidente Sampaio resolveu convidar o PSD a formar um novo governo após a saída de Durão Barroso, quando a esquerda já se preparava para eleições antecipadas. E já se preparava porquê? Muito simplesmente porque Sampaio é um homem de esquerda; porque qualquer outra decisão seria «ilegítima» e «anti-democrática»; e porque convidar os social-democratas a formar um novo governo contraria a vontade popular. Ora, acontece que só a premissa da cor política é verdadeira. Jorge Sampaio é, realmente, um homem de esquerda, mas a ideia de que o PR deveria ter decidido com base nesse pressuposto e não em função do interesse nacional é tão irresponsável que custa a crer que alguém a tenha defendido. Quanto ao resto, é evidente que não existe falta de legitimidade, que não viola as regras democráticas ou contraria o voto popular, como foi amplamente explicado com abundância de pormenores. Já o contrário — dissolução da Assembleia da República e convocação de eleições antecipadas — deixaria dúvidas quanto à legitimidade e quanto à vontade popular, além de ser necessária alguma boa-vontade para se poder considerar uma solução constitucionalmente fundamentada. É certo que ficou a ideia de que Santana Lopes (e o PSD) ganhou o jogo na secretaria, o que é verdade e não se recomenda. Mas o contrário seria subverter as regras do jogo, o que diz a Constituição, as regras da democracia. Como, aliás, chegou a haver quem defendesse, nomeadamente os que sempre aparecem a dizer que a democracia está em perigo quando os resultados não lhe convêm. [Originalmente publicado em 14-7-2004]
BANDEIRAS. Vocês não imaginam o que eu me tenho divertido com as reacções dos que não se conformam com a «epidemia de bandeiras» portuguesas, como alguém já lhe chamou. E digo divertido porque ainda não vi quem fosse capaz de explicar que mal tem isso, e até me parece que são precisamente estes cavalheiros que se fazem passar por espanhóis ou italianos logo que se apanham fora de portas. A onda de «patriotismo moderno» faz esquecer os males que nos apoquentam? Pois ainda bem que assim é, que isso só nos faz bem e não tem contra-indicações. Pelo menos as contra-indicações que os senhores dizem ter, embora não digam quais nem expliquem porquê. Qualquer patego sabe que a euforia da bola não vai durar sempre, mesmo imaginando o cenário mais prolongado. Logo regressarão os males que nos afligem, a mesmíssima pasmaceira, a falta de auto-estima. De maneira que não se percebe o que consome estes cavalheiros, que parecem incomodar-se por ver toda a gente feliz e a dar largas ao patriotismo — mesmo que a felicidade lhes pareça um exagero e o patriotismo roce o patético. Eu sei que é fino não gostar de futebol, não perceber nada de futebol. Porque o futebol é um desporto de massas, e contam-se pelos dedos as elites que se interessam por futebol. Além de que a bola desvia a atenção de coisas bem mais importantes, nomeadamente as coisas que os cavalheiros consideram mais importante mas que os portugueses, com futebol ou sem ele, teimam em ignorar. Mas o futebol não é só alienação ou instrumento usado por ditaduras (e por democracias, já agora) para amansar o povo. O futebol é, também, motivo de alegria e de festa. Como está a sê-lo para os portugueses no momento presente, e só não percebe isto quem não quer. Ou, então, quem julga que o povo só deve entusiasmar-se com o que os cavalheiros muito bem entendem, e ainda bem que o gosto não se institui por decreto. Mas eu suspeito que o inconformismo não passa de foguetório, pois estou convencido de que esta gente vibra com a selecção — e, até, com as bandeiras. Só que o fazem a recato, longe de olhares curiosos, como os maridos que compram a Maria para as esposas e acabam a ler à socapa. E, nesse caso, o problema é outro. [Originalmente publicado em 29-6-2004]
CASA PIA. Já toda a gente aplaudiu a decisão da juíza Ana Teixeira e criticou a decisão do juiz Rui Teixeira, alegando que a primeira agiu certo e o segundo errou. Ora, eu tenho dúvidas. E quando digo dúvidas, quero dizer isso mesmo: dúvidas. Tenho dúvidas que o juiz Rui Teixeira tenha agido mal no processo Casa Pia, porque tenho dificuldade em acreditar que o juiz Rui Teixeira tenha mandado prender inocentes. Mais: tenho dúvidas que o juiz Rui Teixeira tenha mandado prender quem sabia que lhe iria causar problemas sem ter a certeza absoluta do que estava a fazer. Mas longe de mim sugerir que Ana Teixeira não tenha agido dentro da lei, mesmo contradizendo decisões cruciais do seu colega. Tenho dúvidas, e só dúvidas. Contrariamente às «certezas» que toda a gente diz ter sobre o caso, geralmente com base em meros desejos e nenhuns argumentos. E mantenho a suspeita de que ainda vamos ver as vítimas — pelo menos parte das vítimas — transformadas em culpados, pois é provável que haja quem venha a ser incomodado por ter acusado este ou aquele e não tenha meios para se defender. É uma mera suposição, mas quem atacou um juiz e defendeu outro também não foi além disso. [Originalmente publicado em 13-6-2004]
SADDAM. Não será preciso ser perito em guerra — ou ter andado nela — para perceber uma coisa elementar: as circunstâncias em que Saddam Hussein foi capturado pelas tropas da coligação podiam muito bem ter resultado na morte do ditador, pois ele era um homem perigoso e encontrava-se armado. Os captores podiam muito bem tê-lo matado e alegar que o ditador resistiu à prisão — ou justificar a morte do ditador como um mero acidente. Se assim fosse, dois dias de discussão sobre as circunstâncias que rodearam a operação militar e assunto arrumado. Mas nada disto aconteceu. Saddam Hussein foi preso e, agora, vai ser julgado. Perante isto, no dia seguinte à captura choveram vozes a dizer que a prisão de Saddam foi «humilhante» e «desumana». Agora, que uma resma de advogados se prepara para o defender, alega-se que e que. Ora, tendo em conta que Saddam Hussein foi um ditador particularmente repugnante, não deixa de ser comovente assistir a tanta «preocupação». Hipocrisia pura e simples? De maneira nenhuma. Defender o homem que não hesitou em eliminar milhares dos seus concidadãos é uma forma de ser contra a América, e contra a América vale tudo: hoje é o terrorismo, ontem foi o comunismo, amanhã sabe-se lá o que será. De facto, esta gente tem-se esmerado em fazer passar a ideia — e, até ver, com um sucesso notável — de que é mais perigosa a América que o fundamentalismo islâmico. Pior: esta gente está convencida de que a América e Israel são os responsáveis pelo fundamentalismo islâmico, como se o fundamentalismo islâmico já não tivesse dito e repetido, de forma clara e inequívoca, qual é o inimigo do Islão. Escusado será dizer que o «equívoco» vai sair caro. Aliás, já está a sair caro. Chamem-me papagaio da administração Bush, seguidista, o que quiserem, que não será por isso que as coisas deixam de ser o que são. Infelizmente. [Originalmente publicado em 24-5-2004]
O SISTEMA. A história do «Apito Dourado» e da corrupção no futebol — ou da suposta corrupção no futebol, para ser mais rigoroso — não espantou ninguém. Como não espantará ninguém caso a justiça decida prender mais uns quantos, conhecidos ou não, e a Judiciária até já avisou que a coisa não vai ficar por aqui. Mas já espanta que as autoridades tenham actuado com base em escutas telefónicas, que terão registado conversas comprometedoras entre os suspeitos efectuadas com o maior dos à-vontades. É que, tendo em conta o que se vem insinuando — sacos azuis, promiscuidade entre política e futebol, financiamento ilegal dos partidos, tráfico de influências, corrupção pura e simples —, não deixa de ser espantoso que esta gente não tivesse suspeitado de que pudesse estar sob escuta. Será que estavam convencidos de que ninguém lhes tocava? Provavelmente. Já bem mais clara é a conclusão de um estudo divulgado recentemente, ao dizer que a situação financeira dos principais clubes da bola é «preocupante». E preocupante porquê? Preocupante porque os clubes apresentam despesas largamente superiores às receitas, além de que a assistência aos jogos é cada vez menor. Quer dizer, preocupante é uma maneira de dizer, pois há anos que andamos a ouvir a cantiga sem que alguém se tenha preocupado ou os clubes tenham deixado de gastar o que não têm. E continuam a gastar o que não têm por uma razão simples: quando as coisas correrem para o torto, lá estarão os fanáticos do costume dispostos a desencantar mais umas massas. Depois, sempre se arranjará um expediente para que o poder (o governo, as autarquias) entre com mais uns cobres — ou com «facilidades» que rendam mais uns cobres, o que vai dar ao mesmo. Para o ano haverá mais estudos, igualmente «preocupantes», a que ninguém ligará. Afinal, esta estória de os clubes viverem acima das possibilidades já tem barbas, e já se percebeu que não morrerá de velha. A não ser que as autoridades resolvam prender todos os suspeitos de beneficiar com o «sistema», mas nisso eu não acredito. E não acredito por uma razão: isso paralisaria o país. [Originalmente publicado em 7-5-2004]
EUROPEIAS. Uma sondagem do Correio da Manhã revelou que 70 por cento dos portugueses se está nas tintas para as eleições europeias. Isto é, 70 por cento dos portugueses não tenciona votar nas próximas eleições europeias, o que significa uma subida de nove por cento em relação a 1999. Como seria de esperar, a revelação desta sondagem deu lugar a um coro de preocupações. O Presidente da República veio logo dizer que ficou «aterrado». Vital Moreira não tem dúvidas de que é preciso «analisar as razões para esta verdadeira alienação dos cidadãos». E houve mais preocupações, muitíssimas mais, mas já não me lembro de quem e o que disseram. Ora, admitindo que são genuínas, o mínimo que se pode dizer é que já ouvimos estas preocupações um cento de vezes sem que nada tenha mudado. Bem pelo contrário. Mesmo depois de conhecida esta sondagem, os políticos continuam a fazer tudo para que aconteça exactamente o contrário. As presidenciais de 2006, onde os candidatos a candidatos tudo fazem para aparecer, são um bom exemplo. No espaço de uma semana, Cavaco Silva apresentou não sei que volume da sua Autobiografia Política e Santana Lopes foi recebido pelo Papa. Tudo isto numa altura em que as eleições europeias — precisamente as eleições em que os portugueses estão pouco interessados em votar — deviam dominar as atenções. Para ajudar à festa, o socialista José Sócrates lembrou que as eleições europeias serão «uma boa oportunidade» para fazer um juízo político sobre os dois anos de governo de Durão Barroso. Outro socialista, António José Seguro, disse que vai pedir «um cartão amarelo» ao Governo, e já avisou que pretende fazer das europeias um «trampolim» para outros voos. Francisco Assis, candidato socialista ao Parlamento Europeu, sonha candidatar-se a uma autarquia — e já avisou que, caso vença, abandonará o cargo em Bruxelas. Nos comunistas, a cabeça de lista às europeias não tem dúvidas de que as eleições de 13 de Junho devem ser encaradas como uma oportunidade para dizer não às políticas do executivo. Como se vê, as europeias não têm qualquer importância — excepto se forem um «cartão amarelo» ao governo ou um compasso de espera para outros voos. E, depois, ficam aterrados quando vêem sondagens como a do Correio da Manhã, como se não fosse evidente que comportamentos desses só poderiam acabar em resultados desses. Há outras razões que afastam os portugueses das eleições para o Parlamento Europeu? Sem dúvida que há. Mas, com razões como estas, nem são precisas mais. [Originalmente publicado em 21-4-2004]
O CIRCO. A RTP mudou não sei para onde e fez um escarcéu que só visto. Ainda por cima um escarcéu disfarçado de informação, como não saltasse à vista que aquilo era um programa de variedades sem música pimba (pelo menos eu não vi música pimba). E houve suspense e tudo, por alma de um segredo muitíssimo bem guardado e não menos publicitado. E qual era o segredo? Bom, eu não vi tudo mas presumo que o segredo era um estúdio de televisão com uma porrada de metros quadrados e mais não sei quê que o tornava num dos maiores da Europa (ou seria do Mundo?). Por mera coincidência, vi parte do programa numa altura em que tentava retomar a leitura de Dinossauro Excelentíssimo, um belíssimo conto de Cardoso Pires que faz uma caricatura do dr. Salazar. Mas o cardeal Policarpo e a água benta insistiam em misturar-se com o conto (e que bem que se misturavam), de maneira que eu cheguei a um ponto que já não distinguia o que era realidade e o que era ficção. Não que o circo montado pela televisão não estivesse bem, pelo menos a parte que eu vi. O meu problema é que aquilo não tinha sido anunciado como tal e eu contava com uma coisa mais ou menos sóbria, mais ou menos discreta, mais ou menos informativa. Não estava a contar com jornalistas disfarçados de entertainers a engonhar para manter a pantalha no ar durante horas a fio. Além de que tudo aquilo me pareceu uma manifestação de novo-riquismo verdadeiramente terceiro-mundista. [Originalmente publicado em 6-4-2004]
O TERRORISMO. A 11 de Setembro de 2001, a Al-Qaeda atacou a América — porque a América estava mesmo a pedi-las. Depois foi a vez da Tunísia, do Paquistão, das Filipinas, do Iémen, da Indonésia, do Quénia, da Arábia Saudita, de Marrocos, outra vez da Indonésia, outra vez da Arábia Saudita e da Turquia. Tirando o Iraque, onde os ataques da Al-Qaeda já se tornaram rotina, temos, agora, a Espanha — porque a Espanha apoiou a intervenção no Iraque ou porque há contas a ajustar com a Espanha. Perante isto, nomeadamente os atentados de Madrid, os líderes europeus descobriram que a Europa tem um problema com o terrorismo — e ameaçam tomar medidas. E que medidas ameaçam tomar? Tirando os países que têm vindo a apoiar a actual luta ao terrorismo, estou para ouvir o primeiro líder europeu anunciar uma medida concreta. Até agora, a única coisa que os cavalheiros fizeram foi dizer o que não se deve fazer: não se deve usar a força — porque a força nada resolve; não se pode esmagar o terrorismo — porque não se chega a lado nenhum; não se pode retaliar — porque retaliar é entrar no jogo deles. E assim por diante. Como se o terrorismo se combatesse pregando o que não se deve fazer. Quanto à defesa da Europa, tirando o óbvio não sabem o que fazer — muito menos como combater o terrorismo. Estarão a pensar na tese do dr. Soares, que se deve negociar com os terroristas? Não me surpreenderia. E tudo isto porque, até ao 11 de Março, os ilustres senhores estavam convencidos de que o terrorismo islâmico era coisa dos outros, nomeadamente dos americanos, e eles que se virassem. Como se vê, a irresponsabilidade não tem limites. Como, aliás, demonstra bem a principal medida contra o terrorismo tomada na última reunião de não sei que ministros da UE: pedir que lhes seja apresentada uma proposta para a criação de uma tal «instância operacional» que tem por objectivo recolher e fazer circular informações entre os países da UE. Vejam bem: uma mera proposta. Que lhes deverá ser apresentada... daqui a seis meses. [Originalmente publicado em 22-3-2004]
FERREIRA TORRES. O presidente Sampaio quer a intervenção das autoridades para evitar incidentes semelhantes ao protagonizado por Ferreira Torres. O primeiro-ministro quer maior «contenção e elegância» dos intervenientes no futebol. O PS quer saber se a GNR deu voz de prisão a Ferreira Torres, porque «o comportamento do presidente da Câmara do Marco não pode ser branqueado por alguns responsáveis políticos e desportivos». O líder parlamentar do PP classificou de «infeliz e inaceitável» o comportamento do autarca e Pacheco Pereira perguntou: «Porque é que um arruaceiro e um hooligan que faz as coisas que Ferreira Torres (...) não foi imediatamente preso pelos guardas que o agarraram?» O senhor Madaíl nunca imaginou que «situações destas pudessem acontecer no Portugal de 2004», e não tem dúvidas de que «a nenhum adepto seria permitido fazer o que ele fez». A Associação dos Árbitros quer um «rigoroso inquérito» e mais não sei o quê. Ora, eu também gostava que o sr. Avelino fosse punido por aquilo que fez, até porque a criatura ainda teve o desplante de andar por aí a vangloriar-se da proeza e ninguém duvida que um cidadão anónimo teria sido punido na hora. Acontece que o presidente da Câmara do Marco tem sido acusado de coisas mais graves, como lembrou a última edição do Expresso e não há jornal que o não tenha dito e repetido com abundância de pormenores sem que tenha havido desmentidos ou consequências. Ser punido por causa de um pontapé numa mesa ou de uns vagos insultos a um árbitro e permanecer impune por tudo o resto de que é acusado — e, sobretudo, por aquilo que não há coragem para o acusar — chega a ser obsceno. Sem dúvida que Ferreira Torres é inocente até prova em contrário. É a lei que o diz e eu não me atrevo a duvidar. Até porque dúvidas destas costumam sair caras. [Originalmente publicado em 5-3-2004]
TENHO DÚVIDAS. Não sei se o regime de Saddam Hussein tinha armas de destruição maciça (ADM). Digo não sei porque não há factos que o comprovem — ou que demonstrem o contrário. Tinha dúvidas da sua existência antes da guerra, continuo a tê-las depois da guerra. Mas, se bem me lembro, havia uma resolução da ONU que obrigava o regime de Saddam a demonstrar que as tinha destruído. Ora, como isso não aconteceu, é razoável concluir que as tinha. Não é? É bom não esquecer que Saddam Hussein jogou ao gato e ao rato com os inspectores da ONU durante anos a fio, facto que agora se pretende esconder e que, por si só, justificava uma intervenção militar — precisamente uma intervenção militar à luz do direito internacional, como os «pacifistas» não se cansaram de exigir. O facto de não terem sido encontradas ADM não quer dizer que o ditador não as tinha, como se começou a dizer a seguir ao fim da guerra. Pode ser que assim seja, mas é uma mera suposição. Também não sei se foi mentira ou engano, como agora se diz. Para mim, a questão da intervenção militar no Iraque sempre esteve para além das ADM. Ou melhor, para além de o regime iraquiano as ter ou não ter, pois se as não tinha procurava adquiri-las e eu nunca duvidei que Saddam as usaria contra os americanos logo que lhe fosse possível. Assim sendo, seria um suicídio esperar que o regime iraquiano as utilizasse para assim se provar que as tinha. Mais: eu sempre achei que um dos erros da administração Bush na questão do Iraque foi agarrar-se em demasia às ADM, quando havia outras razões que justificavam uma intervenção militar. Depois, quem foi contra a guerra só disse disparates e demonstrou sê-lo pelo mais puro anti-americanismo. Ou, então, serviu-se do caso como um mero expediente para afirmar uma pretensa importância perante terceiros — como o caso do presidente Chirac mais a sua arrogância bacoca. Acusem-me do que quiserem que eu não me importo. As ADM não são tudo e os factos conhecidos são demasiado escassos. Contrariamente às mentiras e suposições sem pés nem cabeça, que proliferam como cogumelos desde a primeira hora. Não digo que não mudarei de opinião. E, se mudar, não será a primeira vez. Mas certamente que não será com preconceitos, suposições ou mentiras. [Originalmente publicado em 19-2-2004]