SARAMAGO. Nada tenho contra José Saramago e até fiquei contente quando soube que ele tinha sido laureado com o Nobel. Nada tenho também contra o facto de Saramago ser comunista, doutrina que não me merece grande simpatia. O meu problema com o José é que eu nunca fui capaz de ir além de meia dúzia de páginas das suas obras, mas não estou seguro que a culpa seja dele. Mas não se conclua que eu parti para a leitura dos livros dele com quaisquer ideias pré-concebidas que me levassem a já estar de pé atrás. Julgo não sofrer desse mal e até sou capaz de reconhecer sem esforço uma virtude, uma única que seja, no mais medíocre dos homens. Vem o sermão a propósito de quê? Bom, vem a propósito de uma conferência de Saramago na Rutgers University (New Jersey, EUA), há duas semanas, e que, para mim, foi uma magnífica estopada. Intitulada «Três romances para o milénio», a conferência de Saramago centrou-se numa explicação minuciosa do Ensaio Sobre a Cegueira, Todos os Nomes e A Caverna, um tríptico que, segundo ele, constitui a sua visão do milénio. Após uma explicação abundante de pormenores, fiquei a saber, pela boca do próprio, que os livros citados são importantíssimos no combate àquilo que considera serem os grandes males do Mundo, o que, para mim, me soa pretensioso. Além disso, Saramago não se cansou de demonstrar que é um homem plenamente satisfeito com as suas obras, quando me parece que um verdadeiro criador costuma ser, por natureza, um insatisfeito. Fiquei também a saber que a modéstia não é uma das suas virtudes, apesar de se proteger com uma capa de pseudo humildade. Mas continuo a nada ter contra o homem. Só que deve ser por estas e por outras que eu, do Saramago, gosto mais do Alfredo. [Originalmente publicado em 13-11-2000]
MUITO OBRIGADO. Antes de mais, muito obrigado pelas centenas de cartas e e-mails que os meus queridos leitores não se têm cansado de me enviar querendo saber quando retomo os meus Desabafos. Bem, na verdade não foram bem umas centenas mas uma boa meia dúzia deles, mas a despesa é a mesma e merecem agradecimento na mesma. Imagino que, para além das saudades dos Desabafos, os meus estimados leitores quererão saber como foram as minhas férias lá na terrinha, de maneira que eu achei por bem fazer-vos o relato do primeiro dia. Tudo começou numa sexta-feira de meados de Agosto do presente ano da graça. A poucas horas de embarcar, sou informado no check-in que o voo Tap Newark-Lisboa vai sair com uma hora de atraso. Se tudo correr bem, acrescento eu para os meus botões. Pedidos de desculpa pelo incómodo? Para quê? Iria resolver alguma coisa? Além disso éramos todos portugueses e, provavelmente, emigrantes. Fazem o favor de me avisar do atraso e eu dou-me por feliz e agradecido. Já dentro da caranguejola, a tripulação faz de conta que nada aconteceu e eu esforço-me por pensar que se fossem duas ou três horas de atraso seria pior, muito pior. Chegado à Portela e apanhada a bagagem vou directo ao rent-a-car. Dez pessoas na fila? Nada do outro Mundo e que uma horita de espera e meia dúzia de cigarros não resolva. É claro que me passou pela cabeça recorrer a outra agência, ali mesmo ao pé e sem clientes à vista, mas considerei a parte da massa que já tinha desembolsado e concluí que me saía caro. Assentei ao terceiro cigarro que só me restava esperar e não me ralar, que esta vida são dois dias, e lá para o quinto cigarro até já estava radiante por não ser o último cliente da fila, que eu calculei ter que esperar mais de duas horas até chegar a sua vez. Chaves na mão, tralha na carripana e pé na tábua para o Norte. Ligeira hesitação na Rotunda do Aeroporto (para a esquerda?, em frente?) e umas buzinadelas de um taxista. Enfim, o costume. Mas o dia estava lindo e o resto que se lixe. Paremos, por isso, em Aveiras, e pensemos que está tudo na sua divina ordem. E estava. Uma mísera centena de pessoas aguardava a vez de ser atendida pelas duas empregadas de serviço e eu lembro-me de ter pensado que podia ser bem pior se fossem duas centenas e uma emprega só. Além disso as catraias não se mostraram impressionadas com tanta clientela, cumprindo a rotina da bica e do pastel a passo de caracol. Os clientes também não. Esperaram nas calmas a vez de serem atendidos e também não vislumbrei quaisquer sinais de impaciência ou reclamação. Bonito, o quadro, e eu de lá continuei até ao Norte novamente agradecido e já a pensar no leitão que fazia tenções de comer na Mealhada, desse lá por onde desse, que o estômago reclamava leitão. Só abre ao meio-dia, o restaurante? Mas isto não está aberto 24 horas por dia? Não, não está, só abre ao meio dia e eu fiquei de novo agradecido por faltarem apenas 20 minutos e só haver uma dúzia de pessoas à minha frente. Enfim, mais umas três horitas e hei-de estar em Vila Real, se tudo correr de feição, calculei eu enquanto atacava o animal. Uma hora depois estava eu parado num monumental engarrafamento, resultante de uma colisão entre uma mota e um ligeiro. Mas o dia continuava lindo e acabou por ser uma excelente ocasião para pôr à prova o ar condicionado do automóvel, que funcionou na perfeição durante os três quartos de hora que por ali fiquei parado ao sol e que me fez de novo ficar agradecido. Excelente ocasião também para ouvir os conselhos de uma loura, ali parada ao meu lado e a chamar-me a atenção para debaixo do meu carro. «O seu carro está a verter água», diz ela, e realmente eu vi um fio que saia debaixo do motor que corria pelo alcatrão. «É do ar condicionado», disse eu, tentando convencer-me de que não seria outra coisa e recordar-me de quem me tinha vendido tamanha erudição. Esquecido o incidente e mirada a loura, aproveitei para desentorpecer as pernas e observar os nossos patrícios a caminho do local do acidente como se fossem a caminho de uma romaria. E estava eu a pensar que só faltavam meia dúzia de foguetes para que o cenário fosse perfeito quando vi uma carrinha de Rans, mesmo colada à traseira do meu carro, com três fulanos lá dentro e com o rádio nas alturas. De Rans? Sim, de Rans, mas não me pareceu que nenhum deles fosse o Tino, que haveria logo de fazer um discurso condizente com a ocasião e que era só o que me faltava. Enfim, com três ou quatro horas de atraso em relação ao previsto e umas quantas transgressões ao Código da Estrada cheguei, finalmente, à terrinha, mesmo a tempo do Porto-Benfica. Lembro-me vagamente que levámos dois secos, mas eu só tenho que agradecer não termos levado uma cabazada e, além disso, eu até já estava mais p'ra lá de que p'ra cá, graças ao adiantado da hora e ao tinto de Santa Marta. Além disso, o meu primeiro dia de férias tinha corrido em beleza, pelo que não seria um jogo de bola que iria deitar tudo a perder. De maneira que eu, com a devida licença dos meus estimados leitores, aproveito os meus Desabafos para agradecer à TAP e à Europcar, ao taxista e aos restaurantes de Aveiras e Mealhada, aos dois protagonistas da colisão, ao glorioso Sport Lisboa e Benfica e, é claro, à Adega de Santa Marta de Penaguião, que já fez melhor vinho mas continua a não desmerecer. A todos vós muito obrigado por me terem proporcionado um dia de férias inesquecível. [Originalmente publicado em 7-11-2000]
ATÉ AO MEU REGRESSO. Pois é. Isto de querer dizer alguma coisa e nada ter para dizer tem muito que se lhe diga. Está bom de ver que as férias vêm mesmo a calhar, e também eu já estou de malas aviadas e sem vontade de espremer os miolos. Além disso, é mais de que provável que os meus leitores já se encontrem a banhos nos algarves e a marimbar-se para os meus desabafos. Assim sendo, não vou comentar a promessa do doutor Carrilho de escrever um livro onde pretende contar os motivos que o levaram a demitir-se ou a mais recente proeza do doutor Alberto João, lá no Chão da Lagoa, onde disse que Lisboa está a mando da comunicação social, dos gays e da droga, e que levaram o senhor Junqueiro a dizer que a criatura foi vítima de «delírios báquicos». Não, também não vou comentar a transferência do Figo para o Real Madrid e a presumível traição aos catalães, que se esqueceriam dele de um dia para o outro caso por lá permanecesse e tivesse o azar de ser vítima de uma lesão prolongada ou de uma quebra de forma. Nada de comentários elaborados e muito menos prolongados, que a época não vai bem com essas coisas. A única coisa que vos quero dizer é que conto voltar lá para Setembro, se entretanto não tiver encontrado a barata que uma empresa de New Jersey decidiu soltar aqui perto e que dá direito a um milhão de dólares a quem a encontrar. Seja lá como for, desejo-vos boas férias e que deus vos abençoe. E que não encontrem a barata, evidentemente. [Originalmente publicado em 1-8-2000]
CONFESSIONÁRIO. Uma astróloga francesa divulgou recentemente gravações das suas conversas mantidas com o antigo presidente François Miterrand durante cinco anos com o objectivo de sublinhar o papel da astrologia na política. As conversas, supostamente gravadas com a autorização do ex-presidente francês, foram divulgadas por uma estação de rádio e por um canal de televisão. Não sendo propriamente uma novidade, sem dúvida que a ideia é brilhante. Muito ao estilo Benetton, cujas campanhas, com meia dúzia de patacos, fazem correr rios de tinta e alimentam discussões exacerbadas. Publicidade de borla, portanto. Haverá ali mão do Toscani? Não sei, mas eu já alimento a esperança de, muito em breve, poder assistir, via rádio ou TV, à confissão de umas quantas figuras públicas, de preferência os mais altos responsáveis pelos destinos da Pátria, que um padre achar por bem divulgar com o altíssimo desígnio de sublinhar o papel da Igreja Católica na política. Claro está que depois de eliminados os pecadilhos menores, do género eu prometi isto e aquilo mas não cumpri, que não temos paciência para miudezas e as rádios e TVs têm mais que fazer. [Originalmente publicado em 27-7-2000]
SEXO EM COMPETIÇÃO. Como devem estar recordados, o treinador da selecção sueca proibiu os seus comandados de terem actividade sexual durante todo o Europeu de Futebol. Que se saiba, a proibição não causou protestos dos jogadores e alguns até acharam bem. Um deles veio mesmo dizer que, «depois de ter sexo na noite anterior a um jogo», perde «completamente a sensibilidade nos pés», não conseguindo controlar a bola. É, portanto, contra o sexo antes dos jogos. E avançou uma receita caseira para atenuar o período de abstinência: «assisto a filmes eróticos», porque «isso não afecta a minha força». O técnico argumentou que a ausência de sexo durante o Europeu tinha como objectivo ajudar a equipa a melhorar a performance do campeonato anterior, onde os suecos nem sequer se qualificaram. A Suécia terminou o Europeu deste ano com um ponto em três jogos. Muito melhor, como se vê. Entretanto, um estudo divulgado há uns dois meses diz que fazer sexo no dia anterior a uma prova aumenta a performance dos atletas. O achado é da Universidade de Oxford e provou que a coisa é válida para ambos os sexos. Pelos vistos a pesquisa não era do conhecimento do treinador sueco, ou será que os resultados do estudo apenas são válidos para o atletismo? Ignoro se ao corrente do assunto, o nosso Humberto Coelho não foi na teoria do sueco e permitiu rebaldaria aos nossos jogadores, embora só uma vez por semana. O resultado foram quatro vitórias: demos cabo dos ingleses, humilhámos os alemães, ganhámos aos romenos e demos baile aos turcos. Infelizmente os franceses também não foram na teoria do sueco e deram cabo de nós, pelo que há razões para suspeitar que eles seguiram à risca a teoria de Oxford ou outra mais avançada, igualmente patrocinada por uma respeitável universidade, que isto do sexo tem muito que se lhe diga. [Originalmente publicado em 21-7-2000]
BAILINHO DA MADEIRA. Segundo o Público, o Tribunal de Contas afirmou que a Conta da Madeira apresenta, em 1998, «um défice oculto de 24 milhões de contos», e aponta infracções financeiras ao governo de Jardim, que continua a revelar «falta de rigor, de eficácia e de total transparência» na administração pública regional. Ainda segundo o Público, o Tribunal Constitucional, que já tinha detectado infracções em auditorias anteriores e terá feito recomendações para que não voltassem a repetir-se, acusa o executivo de Jardim de falta de transparência «na concessão de comparticipações financeiras, não só a entidades privadas e públicas, como também, e especialmente, ao futebol profissional». Perante a evidência, o doutor Jardim admitiu existirem «ilegalidades», mas apressou-se a remeter para a Assembleia da República a responsabilidade de criar legislação que acompanhe o «desenvolvimento» que, segundo ele, não se compadece com a falta de tempo para cumprir as formalidades legais. Pagar as dívidas, ele? Nem pensar! Como observou ao Público, porque haveria ele de pagar as dívidas se, «durante 550 anos», Lisboa andou a «sacar constantemente dinheiro à Madeira»? Uns dias depois, a Lusa dizia que o doutor Alberto João não aceita a actual subordinação «às denominadas leis gerais da República» e que o cavalheiro exigiu «as transferências de competências que ainda faltam para uma melhor concretização de Portugal no Atlântico». Entre outras, Alberto João afirmou pretender «criar uma agência de notícias regional», presumo que sob a tutela do Governo da Madeira que, por mero acaso, é presidido por ele próprio. Entretanto, os «cubanos» do continente não deixarão de continuar pagar os seus impostos para que o doutor Alberto João por lá continue a gastar como muito bem lhe apetecer. Cumprindo a lei ou fazendo de conta que ela não existe, porque o «desenvolvimento» não se compadece com mariquices dessas. Além disso toda a gente sabe que os governantes de Lisboa não deixarão de fazer de conta que não é nada com eles. [Originalmente publicado em 16-7-2000]
A VÍTIMA. O doutor Durão Barroso regressou à ribalta política com um trambolhão memorável. Foi na Assembleia da República, no debate sobre a moção de censura ao governo apresentada pelo PP. Tudo porque o primeiro-ministro resolveu dizer o que já toda a gente tinha dito, militantes do PSD incluídos: que o partido laranja anda a reboque do PP. Supõe-se que genuinamente exaltado, o doutor Barroso exigiu ao primeiro-ministro que retirasse o que tinha dito, ou coisa que o valha. O primeiro-ministro fez que não ouviu e o doutor Barroso resolveu amuar e não mais abrir a boca em sinal de protesto. Mais tarde, depois de ameaçar cortar relações com o PS e com os deputados do seu partido divididos entre a perplexidade e o embaraço, o líder laranja diria que foi «forçado a defender a honra» da sua bancada. No dia seguinte, o Diário de Notícias citou opositores de Barroso que disseram ter sido a intervenção «mais desastrosa de sempre» do líder do PSD e que o amuo poderá ter sido um «pretexto para ficar fora do debate». Para o Público, Barroso «marcou um penalti na própria baliza» perante milhões de portugueses a assistir ao lance pela televisão. Marques Mendes disse ao Diário Digital que o líder do PSD «colou-se ao lugar e colocou os seus interesses pessoais à frente dos interesses do partido». Alberto João Jardim ameaçou atacar, mas só em Outubro, depois das eleições regionais. Estranhamente, ou talvez não, Santana Lopes veio dizer que Barroso «deve ter mais tempo para afirmar a sua liderança» e que se sentiu bem defendido por ele (Barroso) durante o debate da moção de censura. Entretanto, o homem de quem se fala fez de conta que nada se passou e apressou-se a dizer que não se demitirá. O PS e o PP esfregam as mãos de contentes. O primeiro porque pode continuar a dormir descansado; o segundo porque pode continuar a engordar à custa do PSD. [Originalmente publicado em 11-7-2000]
PORCA MISÉRIA. Os dois principais candidatos à Presidência do México resolveram questionar, em público, a masculinidade um do outro. Vicente Fox, candidato da oposição que acabou por vencer a contenda, insinuou que o seu principal rival, um tal Labastida, era de sexualidade indefinida, para não dizer que era gay. Os partidários de Lebastida pagaram na mesma moeda. Segundo eles, os quatro filhos de Fox são adoptados, prova mais do que evidente que o candidato «não foi homem o bastante para ter filhos biológicos». Para um país com fama de machista e onde se faz de conta que a homossexualidade não existe, não está nada mau. O problema é que os candidatos estavam longe de imaginar que a graçola provocasse tantos estragos, com meio mundo a aconselhar os cavalheiros a discutirem assuntos mais importantes. De facto, os candidatos resolveram ignorar os cerca de 30 mil eleitores que, segundo estimativas, participaram na maior parada gay da história do México e, pelos vistos, deram-se mal, acabando a fazer mea culpa e a defender os gays e outras minorias. Observadores disseram que os candidatos acabaram por fazer história, já que foi a primeira vez que os políticos discutiram o assunto em público. Só não disseram quantos mais sacos de arroz os cavalheiros tiveram que dar para calar uns e comprar outros, prática muito comum num país onde a miséria é o pão nosso de cada dia. Tudo nas barbas de oitocentos e tal observadores estrangeiros que, ao que parece, consideraram as eleições livres e justas. [Originalmente publicado em 5-7-2000]