SEM REMÉDIO. O Serviço de Informação e Segurança está «minado por desconfianças», «politicamente desprezado», «publicamente humilhado» e «não pode descer mais na escala da descredibilização». Os serviços de informação militares idem aspas. A PJ é uma «quinta de poder pessoal» e «uma rede de ilhas em que cada soba dita a vontade que mais lhe convém». O retrato é de Moita Flores (DN de 1 de Outubro). Dois dias depois, ainda no DN, Graça Moura dizia que «as Forças Armadas estão insatisfeitas e a braços com uma crise profunda». Que as forças da ordem estão descontentes e os serviços secretos não funcionam. Enfim, um cenário que me fez lembrar o retrato que Eça de Queirós, n'As Farpas, traçou do então exército e marinha portugueses. Questionando os milhares de contos atribuídos pelo Orçamento de Estado às forças armadas, Eça começa por dizer, do exército, que o armamento «é inteiramente ineficaz». E logo a seguir acrescenta: «Está provado cientificamente que, depois de meia hora de fogo, as espingardas do exército passariam para o inimigo — rebentadas em estilhaços. Quando não rebentem, o seu alcance é humanitário. Queremos dizer — as balas ficam a meio caminho do inimigo.» Prossegue o retrato demolidor: «Verdadeiramente o nosso exército só poderia alcançar o inimigo — correndo atrás dele: mas para isso faltam-lhe sapatos!». A artilharia, por exemplo, era uma vergonha: «(...) há um só meio de ela prejudicar o inimigo: é fazê-lo prisioneiro, colocá-lo amarrado a quatro palmos da peça, procurar não errar o tiro, e conseguir assim inutilizar-lhe a barretina!». Pouco ou nada havia que se aproveitasse: «O equipamento é nulo. Nem tendas, nem cantinas, nem transportes.» Para cúmulo, os regimentos não tinham instrução nem pontaria. Restava «o bom senso fechado, a fronteira aberta, e umas peças de artilharia a que deu fogo Camões — o que é poético, mas frágil!». Na marinha, pouco mais havia que «uns poucos de navios defeituosos, velhos, decrépitos, quase inúteis, sem artilharia, sem condições de navegabilidade, com cordame podre, a mastreação carunchosa (...)». As embarcações estavam uma lástima. A Pedro Nunes, por exemplo, estava em tal estado que, vendida, dava «uma soma que o pudor nos impede de escrever». Mas foi dando uma ideia: «O Estado pode comprar um chapéu no Roxo com a Pedro Nunes — mas não pode pedir troco.» Havia outras com estranhas manias: «A Mindelo tem um jeito: deita-se. No mar alto, todas as suas tendências, todos os seus esforços são para se deitar. Os oficiais de marinha que embarcam neste vaso fazem disposições finais. A Mindelo é um esquife — a hélice.» E as que se cansavam depressa: «A Napier saiu um dia para uma possessão (...) mas exausta, não quis, não pôde voltar. Pediu-se-lhe, lembrou-se-lhe a honra nacional, citou-se-lhe Camões, o Sr. Melício, todas as nossas glórias. A Napier insensível, como morta, não se mexeu.» Enfim, a esquadra portuguesa estava reduzida a «uma colecção de jangadas disfarçadas!». Uma humilhação nacional: «(...) este grande povo de navegadores acha-se reduzido a admirar o vapor de Cacilhas!». Ainda se tentou modernizar a frota. O Governo português, «morgado de província ingénuo e generoso», comprou por mil libras a corveta Hawks aos ingleses, que a tinham posto à venda pelo valor da madeira. Mas quando a quis usar, «desfez-se-lhe nas mãos!». Tentou-se, depois, construir, mas o Arsenal não tinha «nem oficinas, nem instrumentos, nem engenheiros, nem organização, nem direcção». O resultado seria um desastre: com «idade de meses, tinha o fundo podre!». Gastou-se 87 contos no conserto mas, estranhamente, o fundo voltou a apodrecer. Podridão que, recorda, «começava a apresentar-se com um carácter de insistência verdadeiramente antipatriótica!». Enfim, a fama dos portugueses chegou longe: «Os engenheiros em Inglaterra já se não aproximavam dos navios portugueses senão em bicos de pés — e com o lenço no nariz.» Humilhado, o Arsenal tentou a modalidade da lancha. Novo desastre: «Lança-se ao Tejo, alegria nacional, colchas, foguetes, bandeirolas... E a lancha não anda!» De repente começou a mover-se. Só que não como se esperava: «A lancha recuava. Era uma brisa que a repelia. Em todas as experiências a lancha recuava com extrema condescendência: brisa ou corrente tudo a levava, mas para trás. Para diante, não ia. (...) O Arsenal tinha feito uma lancha a vapor que só podia avançar — puxada a bois. O País riu durante um mês.» [Originalmente publicado em 23-10-2001]