CARICATURAS. O ruído à volta da publicação das caricaturas do profeta Maomé tem relegado para secundaríssimo plano a origem das mesmas, que vale a pena recordar. Tudo começou com a dificuldade de um escritor encontrar alguém capaz de ilustrar um livro sobre o fundador do Islão. Informado sobre a recusa de alguns ilustradores, que alegaram temer pelas suas vidas, um jornal dinamarquês resolveu desafiar algumas dezenas de artistas a fazerem as caricaturas. O resultado é conhecido: doze foram publicadas pelo Jyllands-Posten e o mundo desabou. Ora, como o episódio demonstra, o medo do Islão não nasceu com a polémica das caricaturas. Há quem pratique a autocensura (provavelmente a pior das censuras) com receio de ser morto, e não devem ser poucos. Com certeza que a provocação que a publicação das caricaturas acabou por tornar-se poderia ter sido evitada, mas é preciso sublinhar que não foi violada qualquer lei dinamarquesa ou europeia — e não publicar as caricaturas com receio de represálias seria pior. Francisco José Viegas dizia recentemente que, em nome dos valores muçulmanos, «desculpabiliza-se a tortura, a humilhação de mulheres ou de adúlteros, a excisão feminina, o apedrejamento de homossexuais ou a mutilação de adolescentes que praticaram sexo à margem da lei». E não só nos regimes islâmicos, embora não se vejam fóruns de Porto Alegre a protestar contra essas práticas. É que falar contra o Islão tornou-se politicamente incorrecto, perigoso. Se alguém se lembrar de satirizar Moisés ou Jesus Cristo, a coisa gera uns vagos protestos e dois dias depois já ninguém se lembra do episódio — além de que nunca se viu um governante pedir desculpas por coisa assim. Como se vê, há religiões que se podem caricaturar, outras que não. Pior só o comportamento das autoridades, nomeadamente portuguesas e europeias, que resolveram apelar ao respeito pelas religiões e se esqueceram do que está verdadeiramente em causa: a liberdade de expressão, pilar da cultura ocidental. Com certeza que o Islão tem todo o direito à indignação, mas também devia preocupar-se com a questão levantada pelo jornal jordano que ousou perguntar: «o que é que traz mais preconceito contra o Islão? Estas caricaturas, ou as imagens de um raptor a cortar a garganta de um refém em directo para as câmaras?» Aliás, quero crer que são cenas destas que ofendem verdadeiramente o profeta Maomé, embora não me conste que os muçulmanos ditos moderados se indignem por aí além com estas práticas. Pior: nunca vi os muçulmanos ditos moderados indignarem-se com as fatwas. Será porque receiam represálias? Ou será porque, no fundo, concordam? [Originalmente publicado em 14-2-2006]