A CARTA. Naquele dia levantei-me decidido a renovar a carta de condução portuguesa, custasse lá o que custasse. O primeiro passo a dar, tinham-me dito, era dirigir-me a um escritório da Direcção-Geral de Viação. Uma vez lá chegado e esperada meia hora na fila, uma simpática menina informou-me que eu necessitava de um atestado médico passado pelo delegado de saúde, presumo que a garantir que eu via bem e estava bom da cabeça. Lá fui em busca da Delegação de Saúde, que eu já não sabia onde era. Parei o automóvel logo que avistei um polícia, a quem pedi que me avivasse a memória. O polícia consultou um livrinho durante alguns segundos, coçou generosamente a careca por debaixo do chapéu e decidiu que não sabia. Mas comunicou com a esquadra pelo rádio e lá conseguiu dizer-me onde era. Já dentro da repartição, uma funcionária informou-me que eu necessitava de preencher o impresso modelo x à venda na livraria y, ao qual deveria juntar mais não sei quanto de selos. Depois era só entregar a papelada e dali a dois dias apresentar-me para ser visto pelo médico. Ocorreu-me perguntar-lhe porque razão não tinham eles ali os impressos de que eu necessitava, mas achei melhor calar-me ao imaginar que ela me ia responder que não sabia, que não era nada com ela, e às tantas ainda me ia emperrar o processo por causa do atrevimento. Perguntei-lhe apenas a que horas devia eu estar ali para ser visto pelo médico e se ela achava que eu iria ter que esperar muito tempo. Respondeu-me que o ideal seria logo pela manhã e que o médico tanto podia chegar de manhã como de tarde. Consultei o relógio já a descer as escadas da repartição e concluí que, para apanhar o tal impresso na livraria y, tinha que me apressar, pois estava a fechar para almoço e depois só dali a duas horas. Já a caminho da dita imaginei-me umas horas na delegação à espera que o cavalheiro se dignasse pôr lá os pés e assinar-me a papelada, provavelmente sem se dar à maçada de me consultar, e decidi logo ir almoçar e a carta que se lixasse. Já quase esquecido da aventura, cruzei-me com um amigo meu que eu não via há anos e a quem acabei por contar a minha desgraça. O meu amigo ouviu a estória calado e no fim perguntou-me: «Tens a papelada contigo?» Não tinha mas podia-se arranjar. «Então arranja lá os papéis que eu trato-te disso», rematou. Ainda me ocorreu perguntar-lhe se me estava a dizer que eu não necessitava de ser visto pelo delegado de saúde, mas achei melhor meter a viola no saco. Quis apenas saber quando poderia eu ter o processo de volta. «Se me deres hoje os papéis, fica pronto amanhã. Serve?» Servia. Despedi-me do meu amigo e fiquei a cismar no assunto. Realmente assim era tudo muito mais simples e eu não tinha que me incomodar. Além disso era uma maneira muito portuguesa de resolver este tipo de coisas, convinha não esquecer. A verdade é que fiquei tão revoltado que ainda hoje não tratei do assunto. Mas já tratei de saber onde encontrar o meu amigo. [Originalmente publicado em 4-3-2002]