UM NOJO. Após uma operação policial que meteu armas automáticas, gás lacrimogéneo e distúrbios vários, o pequeno náufrago Elián González foi, finalmente, entregue ao pai. Os pormenores da operação são ainda escassos mas já deu para concluir que o petiz passou mais um mau bocado. Como se não bastasse ter visto a mãe morrer afogada e passar três dias à deriva numa câmara de ar, o pequeno cubano de seis anos viu agora um comando policial armado até aos dentes entrar na casa dos seus parentes de Miami e levá-lo à força. O pedido de asilo apresentado pelos parentes de Miami impede que o miúdo possa sair dos Estados Unidos enquanto não houver uma decisão do tribunal. Como se calcula, o caso está longe de terminar e não espantará que a criança venha a passar outros maus bocados. Contrariamente ao que muita gente pensa, o governo dos Estados Unidos portou-se bem neste caso, embora a operação de resgate me pareça pecar por alguma brutalidade desnecessária. O governo alegou existirem fortes indícios de que haveria gente armada pronta para impedir que o miúdo fosse retirado à força aos seus familiares. Seja como for, a verdade é que toda a gente viu que os cubanos anti-castristas de Miami não estavam propriamente a brincar quando ameaçaram «incendiar a cidade» caso o governo dos Estados Unidos se atrevesse a retirar o pequeno à força. Certamente que qualquer pessoa minimamente sensível ficou chocada com as imagens da operação policial e imaginará o pânico daquela criança. Eu tenho um filho mais ou menos da mesma idade e senti todo o processo com intensidade, não só a operação de resgate mas a evolução do caso desde a primeira hora. Vi como os activistas cubanos de Miami rapidamente adoptaram o miúdo como bandeira na luta contra o regime de Fidel, demonstrando, desde a primeira hora, que os interesses do petiz nunca foram a sua principal preocupação. Vi como os parentes chantagearam o pequeno ao ponto de este vir dizer em vídeo umas coisas muito convenientes que depois as televisões tiveram o despudor de exibir. Vi como um produtor de Hollywood veio anunciar, com a maior naturalidade, que já havia um acordo com uma das principais televisões americanas para fazer um filme que deverá ser visto por 50 milhões de pessoas. Vi como o vice-presidente americano e candidato à Presidência se apressou a colocar-se ao lado dos fanáticos cubanos por razões claramente eleitoralistas e se esqueceu que no meio da história existe um pai legítimo que reclama o direito de decidir o destino de um filho legítimo. Enfim, vi uma sucessão de episódios nojentos explorados até à exaustão por políticos sem escrúpulos e gente que só pode ser doente, para gáudio dos média e do zé-povinho. Nada disto me surpreendeu, como calculam, embora me tenha causado uma profunda revolta. Num país de reality shows e de guerras em directo na CNN, a única surpresa foi saber que esta operação não foi transmitida em directo pela televisão, à escala planetária e a horas decentes. Como é bom de ver, o caso rende muitos votos e vende que se farta. Quanto ao pequeno Elián, ele é tão querido, não é? [Originalmente publicado em 24-4-2000]