CÉSAR AUGUSTO. Na sua última crónica no Diário de Notícias, João César das Neves fez uma longa dissertação acerca da imprensa que merece alguns reparos. Segundo ele, «o problema central da imprensa» de hoje resume-se na palavra «verdade», que procura com obsessão e de forma dramática. César das Neves disse mais sobre a verdade: «(...) para ser conhecida, tem de ser amada. Quem busca a verdade de forma neutra, asséptica, desapaixonada, nunca a encontrará». Se me dá licença, eu discordo. Parece-me óbvio que, mesmo que nunca se chegue a alcançar, é menos difícil encontrar a «verdade» quando ela se procura de forma neutra, asséptica e desapaixonada, como o senhor diz, do que com a sua romântica história de amor. É sabido que o amor nem sempre é bom conselheiro quando se procura a verdade, já que, por regra, este não deixa grande espaço para um sempre recomendável distanciamento. Mais adiante, César das Neves meteu-se num terreno armadilhado. Segundo ele, «a imprensa, procurando ouvir todos os lados, mesmo os irrelevantes, dá um protagonismo aos pequenos partidos marginais, PCP e PP, muito para além do seu real significado político. E isso é ainda pior nos partidos microscópicos, como o Bloco de Esquerda, que têm menos apoio e relevância que um clube da III Divisão.» Eu volto a discordar. Não é função da imprensa dar maior ou menor protagonismo a quem quer que seja. A função da imprensa é divulgar o que achar relevante e, em última análise, destacar os assuntos que mais interessam ao seu público-alvo, atribuindo importância menor, ou até mesmo nenhuma, ao que não interessa aos seus leitores. Se este critério resultar num maior protagonismo dos «partidos marginais», é uma consequência e não um fim em si mesmo. A imprensa não tem que dar um tratamento proporcional às diversas forças políticas ou outras forças sociais. A sua missão é informar o que interessa aos seus leitores. Se a notícia está no PSD ou no Bloco de Esquerda, é irrelevante. A seguir, César das Neves meteu-se por um caminho que é, no mínimo, curioso. Diz ele sobre o tratamento que deve ser dado à informação: «O maior falhanço da nossa imprensa honesta vem nos casos em que os assuntos têm apenas um lado. Em muitos dos temas da actualidade há apenas uma forma natural e razoável de os abordar. Aí é que o princípio de 'ouvir sempre os dois lados da questão' cria os piores resultados. O esforço de gerar polémica, de abrir conflito, de suscitar dúvida, para assim poder cumprir a sua função de «forma equilibrada», torna-se gravemente prejudicial, como nos casos da especulação cambial, crime, droga e tantos outros recentes.» Infelizmente César das Neves foi muito genérico sobre os assuntos que têm apenas um lado e não explicou qual é a «forma natural» de os abordar. De qualquer modo, se o esforço da imprensa consegue gerar polémica, abrir conflitos e suscitar dúvidas, onde é que está o problema? Eu acho muito bem que a imprensa gere polémica, abra conflitos e suscite dúvidas. Gravemente prejudicial porquê? Confesso que isto me cheira a Estado Novo, tanto mais que, logo a seguir, acrescenta: «Quando, por exemplo, o senhor primeiro-ministro inaugura um hospital ou uma escola, isso é informação. Mas se nesse dia um idiota qualquer do Governo ou da oposição fez uma declaração bombástica, essa notícia irrelevante sobrepõe-se à informação interessante. Aquilo que interessa ao jornalista não é informar, mas dar o prisma estranho.» Descontando «o prisma estranho», que eu não percebi, este exemplo resume bem o que o senhor César das Neves pensa acerca do que deve ser a imprensa séria. O senhor quer dizer que, no caso em apreço, o mais importante é a inauguração do senhor primeiro-ministro, quando toda a gente sabe que uma inauguração como a que referiu é, por regra, um assunto sem grande interesse informativo (para os jornais e para os leitores). Mas não acontece o mesmo se «um idiota qualquer do Governo ou da oposição faz uma declaração bombástica», porque, como o senhor diz, se a declaração é bombástica toda a gente vai querer saber. Para além de que uma declaração bombástica não é necessariamente um disparate ou um fait divers, como é óbvio. Como se vê, o exemplo é péssimo, além de me cheirar a parentes falecidos. Seguramente que há razões para criticar o que se publica por aí na chamada «imprensa séria» e é mais do que saudável (e importante) que isso aconteça. Mas assim não vamos a lado nenhum. [Originalmente publicado em 23-5-2000]