PORNOGRAFIA II. É um facto que só uma minoria se interessa por arte, provavelmente uma minoria muito reduzida. Só essa minoria estará, portanto, em condições de distinguir um Picasso de um habilidoso, um Schönberg de um chico-esperto, ou um Eça de uma «besta célere»(*). Não é assim? O recente episódio de Braga (a PSP local apreendeu meia dúzia de exemplares de um livro que na capa reproduzia uma obra de um pintor francês julgando tratar-se de pornografia) demonstra que não é assim. Como se viu por aquilo que então se disse, toda a gente conhece a obra do pintor, nomeadamente a obra que causou o incidente, excepto os nossos rapazes da PSP, unanimemente considerados umas bestas, e prontamente acusados de não estarem à altura da nossa imensa cultura. Mas o mais impressionante neste género de casos é constatar-se que qualquer analfabruto que queira botar figura e impressionar os pategos tem a arte como coisa importante, e como tal considera lacuna de monta não ter conhecimentos sobre a dita. Daí que jamais dirá que não conhece, que não sabe, que não viu. O lamentável é que o sujeito invista a esconder a ignorância em arte em vez de investir a interessar-se por ela, pois o interesse valer-lhe-ia, seguramente, a pena — além de que evitaria deixar o rabo de fora, como sempre acontece quando se escondem estas coisas. Infelizmente, não é assim que ele pensa. As aparências são, para ele, mais importantes que tudo o resto, e nos tempos que correm ninguém se espanta que a montra não corresponda ao armazém. Como se viu, aliás, pelos concertos para violino que Chopin nunca compôs e pelo livro que Sartre nunca escreveu, que um ex-primeiro-ministro nos garantiu ter ouvido e um candidato a primeiro-ministro jura ter lido — episódios que só não passaram completamente despercebidos (ou por manifestações de alta cultura) porque os adversários políticos de Santana Lopes e de Passos Coelho observam à lupa o que eles dizem, e não perdoam deslizes destes. Não porque atribuam grande importância a estas minudências, escusado será dizer. Até porque geralmente não são, nessa matéria, melhores do que eles. [Originalmente publicado em 1-4-2009]
(*) Bestseller «traduzido» por Alexandre O’Neill